Tumba de Nireu

Tumba de Nireu

à Tatiana Faia,

Junto à tumba de Nireu, encostada à sombra

Das paredes de pedra branca, dorme uma ovelha,

Dizem que se trata da tumba do rei de Simi,

A seguir a Aquiles, o segundo homem mais belo

Do exército grego, pretendente à mão de Helena

E do resto, nascido de ninfa, terá morrido

Numa ocasião ou noutra, dependendo de quem

Lhe cantou a vida, a ovelha é certa, mas o sono

É absoluto e obvio o ácido que se infiltra nas narinas

E desperta os olhos para uma desconcertante verdade,

À sombra das paredes cinzentas, a ovelha jaz morta,

Um manto de lã sobre ossos e carne ressequida,

Poderá ser ou não a tumba do rei Nireu, mas

É certamente o túmulo de uma anónima ovelha.

 

18/06/2023

 

Mar Egeu

Da importância da história

Ao longo dos tempos o homem pensou que era só um. Depois veio a Revolução Francesa e ficou tudo na mesma. Alguns até sabem a data de cor, que eu não sei, mas mesmo assim são capazes de assegurar que a partir daquele momento nada mais como aquilo se passou. Na verdade, na verdade vos digo: nunca se passou nada disso. O homem nunca foi à lua. Ou melhor: o homem foi à lua antes de ficar tudo na mesma. Que é o mesmo que dizer: o homem nunca foi à lua.

A lua não é um satélite, sabeis? Fica bem falar assim (sabeis), porque me distraio sempre do fundamental: ao longo da história tudo se repete, ainda que ninguém esteja disposto a admitir que algo se repetiu. Ora bem, vejamos, sim, os refugiados, coitados. Mas quais refugiados? Refugias-te em ti, refugias-te em mim, e depois dizes que nunca refugiste de ti. Ouve bem: “refugiste”. Soa-te estranho no cérebro? Ainda bem, é sinal que ainda tens algum senso de novidade. Voltaste a fugir, mas agora sabes que nunca pudeste fugir de ti, nem seria bom que o fizesses. Alguém disse - sei perfeitamente quem, só não estou para o dizer - que nunca ninguém fugiu de si, por mais exilado que fosse. Belo, é isso mesmo. Mas esqueçamos a individualidade: ninguém pode ser indivíduo, nunca, não, a indivisibilidade está só ao alcance dos superbusões ou de um qualquer elemento que nunca será visível. Eu divido-me. Agora, por exemplo, divido-me em história.

E quem é ela? Quem é?

Bom, genocídios.

Venham os genocídios. E contemos um a um.

Os Nazis?

Chamem os Romanos. Chamem todos. Todos eles genocidaram. E depois ficaram parados, porque morreram. Coitados dos refugiados - bem entendido - nós. Não sou de sublinhar palavras: mas aqui fica. NÓS.

Mas há sempre este grave problema. Nós não somos eles. A menos que a história existisse, e que soubéssemos que tudo o que vivemos já foi vivido de outra forma e noutra altura.

Mas isso, meu bom amigo, é impossível. Se vinte e cinco de Abril ou quarenta e quatro de Maio ou o trezentos e cinco de Março existiram foi para serem isso mesmo: uma data.

CALEM-SE DATAS.

Sabes que “data” (agora não me apetece investigar, estou a escrever um manuscrito isolado no monte Parnasso) é algo plural que foi dado. Mas sabes que nós, os que somos amiúde e frequentemente (passo o pleonasmo) presenteados esquecemos a dádiva. Daí que tudo seja dado pelo esquecimento.

Mas, desculpem, o tema de hoje (reparem na ambiguidade entre o tu e o vocês) é. História. A História não existe, a não ser que seja para nomear Júlio César como o grande general romano, e não como o filho da puta que destruiu o que restava do futuro da República. Sim, não se esqueçam, hoje podíamo-nos estar a esquecer de como Roma foi cada vez mais uma República até que se tornou numa república, com Cristo e tudo, até ao ponto em que foi sodomizada pelos Bárbaros (que só sabiam dizer bar-bar-bar), que vieram de algures, para depois serem por sua vez remasterizados pelos próprios pagãos-cristãos vindos de alhures que afinal era o mesmo sítio. E depois voltávamos a agora, num ponto talvez mais à frente, num ponto em que cristão-muçulmano-indígena-hindu fosse uma onomatopeia: “oh”, ou como dizem bem os ingleses: AWE (não, tu aí, não confundas com יהוה, olha que te podes tornar ecuménico).

Bom, tudo somado: não à história. Não há história.

A seguir ‘tás-me a dizer que o verbo estar não tem as vogais e consoantes que o iniciam, e isso sim, seria perder todo o universo, toda a gente sabe que a fonética sempre se sobrepôs à ética (basta ler o final do último parágrafo). Fonologia não, é outra coisa, é o estudo da mente, mesmo quando ela passa pelo som. Bom, de qualquer das formas escreve-te o grande poeta grandiloquente, Braga Falcão, que ninguém conhece, mas que quando conhecerem dirão: aquele é o Braga Falcão, para depois - estando eu já felizmente morto - o esquecerem. Melhor das hipóteses: uma placa de rua. Sabem (ou sabeis?), ah, awe, יהוה, θεέ, ॐ, como estou prostrado perante o crescendo da música e das palavras (usei “e” e não um genitivo) que denunciam que somos uma rua. Vivi numa rua chamada Rodrigues Sampaio, noutra chamado Engenheiro Miguel Pais, noutra chamada General Torres. Sabem o que gosto mais? Daquelas felizes e tão infelizes décadas em que vivia numa terra de nome sem nome numa rua tão estranha como “Estrada do Parque” (?, sim é mesmo assim), e em que é de supor havia uma vivenda que nunca teve uma placa a dizer que era uma vivenda. Chamava-se “O Pinhal”. Chama-se.

Mas deixem lá isso. Uma história é uma infância vivida a sós. Por isso nunca nos lembramos dela, por isso é tão difícil recordar. Se tivessem discernimento saberiam, como eu nunca fui capaz, amar o verbo recordar.

Tem um coração lá dentro. E isso é verdadeiramente lamechas, e tu sabes como é bom ser lamechas. É o mais próximo que tens de ser mãe ou pai.

Meteram-me neste tempo que tem a história que sempre o tempo teve. Ou esteve. As vogais e consoantes intrometem-se sempre, nímio. Gosto desta palavra que tu não conheces: nímio. Se a conheces, algo de errado se passa contigo, e devias-me escrever. Estarei cá para te escrever, nem que arranje (gosto deste coloquialismo, afasta-me do pai latim) um secretário (já me lixei, cá está ele em segredo).

Seja como for, amanhã haverá outra história. A de hoje: pessoas infelizes fogem, e as pessoas que se julgam a caminho de uma qualquer felicidade dizem que a infelicidade dessas outras pessoas está numa direcção oposta e contrária, digamos assim, em sentido contrário, e portanto mais vale que as lições de matemática estejam certas e que menos com menos, como é lógico, dê menos.

De resto, odeio hoje. Hoje é uma coisa nojenta. Ou vivemos na história, e assim ela nunca há-de morrer, ou vivemos hoje.

E hoje uma merda qualquer com um nome qualquer marcou uma merda de golo qualquer contra um genocídio qualquer, que gritou “coitadinhos”.

Coitadinhos. Deixa-me só aqui desligar o monitor (ah, é bonito não é, aquele que avisa, não estou outra vez para verificar esta raiz, estou certo que sim), e vou encetar esta próxima hipocrisia: a história existe.

A história tem importância. Pelo menos enquanto disciplina. Vá lá, é importante que saibamos algo acerca do antigamente.

E não ser que não.