"Cascando" de Samuel Beckett

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Tradução de Tatiana Faia

1


por que não apenas os desesperados
de ocasião de
derramamento de palavras 

melhor antes abortar do que ser estéril

as horas depois de te ires embora são tão de chumbo
começam sempre a arrastar-se demasiado cedo
as garras rasgam cegamente o leito da carência
trazendo ao de cima os ossos os velhos amores
cavidades preenchidas outrora com olhos como os teus
tudo sempre é melhor demasiado cedo que nunca  
a negra carência salpica-lhes os rostos
diz nove dias nunca fizeram flutuar o amado
nem nove meses 
nem nove vidas

  

2

diz de novo
se não me ensinares não aprendo
diz de novo há uma última
mesmo última das vezes
última das vezes para suplicar
última das vezes para amar
para saber não saber para fingir
uma última mesmo última das vezes para dizer
se não me amas não serei amado
se não te amo não amarei

palavras rançosas batidas no coração de novo
amor amor amor baque de um velho pistão
pisando o inalterável 

coalho de palavras
aterrorizado de novo
para não amar
para amar e não tu
para ser amado e não por ti
para saber não saber para fingir
para fingir
eu e todos os outros que te hão-de amar
se te amarem

3

a menos que te amem

Anne Sexton, "O peito"

Tradução: João Coles

O peito

É esta a chave.
É esta a chave para tudo.
Preciosamente.

Sou pior do que o encarregado das crianças
na apanha do pó e do pão.
E cá estou eu a angariar perfume.

Deixa que me deite no teu tapete,
no teu colchão de palha – o que estiver à mão –
porque a criança dentro de mim está a morrer, a morrer.

Não que eu seja gado para ser comido.
Não que eu seja uma espécie qualquer de rua.
Mas as tuas mãos encontram-me qual arquitecto.

Uma jarra cheia de leite! Era tua anos atrás
quando vivia no vale dos meus ossos,
ossos torpes no pântano. Pequenos brinquedos.

Talvez um xilofone com pele
em cima esticada desajeitadamente.
Apenas mais tarde se tornou em algo real.

Mais tarde medi-me com as estrelas de cinema.
Não tinha medidas. Havia alguma coisa
entre os meus ombros. Mas nunca o suficiente.

Sim, havia um campo,
mas nenhum jovem cantando a verdade.
Nada que cantasse a verdade.

Desconhecendo os homens quedo-me ao lado de minhas irmãs
e ao erguer-me das cinzas bradei
o meu sexo será trespassado!

Agora sou tua mãe, tua filha,
o teu brinquedo novinho em folha – um caracol, um ninho
Estou viva quando os teus dedos estão.

Visto seda – um véu para desvelar –
pois é em seda que quero que penses.
Mas não gosto do tecido. É demasiado austero.

Diz o que quiseres mas trepa-me como um alpinista
pois eis o olho, eis a jóia,
eis a excitação que o mamilo aprende.

Sou desequilibrada – mas não estou louca de neve.
Estou louca da mesma maneira que as jovens são loucas
com uma oferenda, uma oferenda...

Ardo como o dinheiro arde.


The breast

This is the key to it.
This is the key to everything.
Preciously.

I am worse than the gamekeeper's children
picking for dust and bread.
Here I am drumming up perfume.

Let me go down on your carpet,
your straw mattress - whatever's at hand
because the child in me is dying, dying.

It is not that I am cattle to be eaten.
It is not that I am some sort of street.
But your hands found me like an architect.

Jugful of milk! It was yours years ago
when I lived in the valley of my bones,
bones dumb in the swamp. Little playthings.

A xylophone maybe with skin
stretched over it awkwardly.
Only later did it become something real.

Later I measured my size against movie stars.
I didn't measure up. Something between
my shoulders was there. But never enough.

Sure, there was a meadow,
but no young men singing the truth.
Nothing to tell truth by.

Ignorant of men I lay next to my sisters
and rising out of the ashes I cried
my sex will be transfixed!

Now I am your mother, your daughter,
your brand new thing - a snail, a nest.
I am alive when your fingers are.

I wear silk - the cover to uncover -
because silk is what I want you to think of.
But I dislike the cloth. It is too stern.

So tell me anything but track me like a climber
for here is the eye, here is the jewel,
here is the excitement the nipple learns.

I am unbalanced - but I am not mad with snow.
I am mad the way young girls are mad,
with an offering, an offering…

I burn the way money burns.

nights at the iron hotel

Da Vinci, Anunciação, pormenor.

Da Vinci, Anunciação, pormenor.

 

a partir de michael hofmann

olha gabriel
tão feroz a manhã
que de noite virás de novo a este quarto
com todos os frutos ainda nos bolsos
e para conto que me contes
uns quantos convencionais acordes
nem teus nem meus exactamente
que dedilharás com os dedos se puderes
mas com os dentes se tiver de ser
terra da mesma cinza que tu o meu corpo
afinal tão real e mortal como o teu  

mas aí onde aterraste sem mais terror
do que esperar-te agora uma chuva de sapos
vinda como uma alguma peste bíblica
directamente do panamá
e todos caindo rápido aos teus pés
que é toda tua a humidade desse ar
a amplitude dessas avenidas uma coisa
tirada à bolonha de de chirico
tanto tuas como dele
mais todas as histórias que não me contarás
algumas praças e também a nostalgia do infinito
que é esta coisa secreta árvore
cujo fruto abre para as primaveras
anunciada por flores derrubando-se como penas
todos os sapos do panamá te esperam gabriel
e são as luzes vermelhas dos quartos
de onde vais e vens que te fazem pensar em de chirico
são as luzes que não te anunciam
que não são nem os archotes
que anunciam a chegada do rei agamémnon
nem os luzeiros de alguma tróia a arder na distância
mas a pequena destruição diária confinada às unhas
de por exemplo teres de caminhar todos os dias
para o trabalho com um pé torcido
que assim nunca melhorará  

gabriel
olha que é quase meio dia num dia qualquer de junho
nas paisagens pós-industriais do século XXI
onde um exército de homens se arregimentou
com tanta paixão diante dos computadores
com este imperativo categórico
de trazer aos accionistas tanto lucro quanto possível
(porque é preciso ter um objectivo na vida
e olha como esta quieta ternura da rotina
tem dentes e afinal ferra tanto
quanto a minha mais feroz crueldade)
e onde como álvaro de campos
eu cantaria a sensualidade cosmopolita
de todas as facturas passadas por todas as casas comerciais
de todas as corporações do mundo
onde eu observaria em transe o selo a bater no papel
e o dedo passado pelo bigode do miguel da contabilidade
sentado mancamente três filas à frente da minha
este corpo que vai ao ginásio mas não se recorda
de como seria dançar um tango argentino
um tango argentino aqui e já
e tudo isto gabriel não seria a minha morte de tristeza
não fora saber de cor que fora da abstracção
existe o golpe da matéria cuja jurisdição é também
a mortalidade de um corpo
do teu do meu agora separados
por mais que meio continente
e a fala da minha desmesura
para a planície de um desmedido silêncio
como o crescimento do lucro das revistas científicas
está para o dos livros de filosofia
e eu olho-os de cima gabriel
a partir da janela do primeiro andar
e reacende-se no meu sangue a verdade simples
e bucólica e inquieta dos damascos
que um caeiro qualquer podia ter cantado
e acende-se no opressivo horizonte chuva a cântaros
nesta cidade onde vim para fazer o meu dinheiro
embora dia a dia convenhamos que isto esteja
algumas libras abaixo do que se pareça com ganhar a vida 

e eu vejo-os enquanto eles entram e saem
do autocarro que os traz ao parque
como entraram e saíram antes
dos autocarros que os trouxeram à escola
e eles trabalham na sua rotina com amarga indiferença
eles estão nas páginas de marx
e não querendo ver tudo a negro
talvez também nos mais apaixonados
poemas de d h lawrence 

tu gabriel
lembra-te do teu nome
que te foi dado por causa do anjo da anunciação
no momento em que a vida te tocou mais fundo
é dele ainda o florescimento de todos os meus frutos
o lugar para onde todos os versos pendem
até aquele escrito por o’neill que reza que não podias
ter ficado nesta cidade
nesta abjecta cidade comigo
de todos os homens o que mais te teria amado
nesta cidade mais um dos dormitórios do mundo
onde os homens por falta de imaginação e de revolta
por falta de amor e bom humor vieram recozer a depressão 

gabriel
fora deste ritual de mesquinhez e nada
está tu teres-me dito que durante seis meses
tentaste amar bem um homem que não te quis
gabriel ao alto de pé na noite mesmo quando
não sabes para onde ir mesmo quando for só
um entrar demasiado rápido na escuridão
eu canto gabriel
como safo em mitilene
a tua marginalidade
a velocidade solitária do teu pulso
tu que no esplendor da tua ternura até sabes
como cair bem de joelhos à frente da destruição

 

Milton, 13 de Junho de 2018

E. E. Cummings - poema nº 24, in "No thanks"

tradução: João Coles

24.

“vamos inaugurar uma revista
que se lixe a literatura
queremos algo tinto de sangue

reles de pureza
tresandando de crueza
e destemidamente obscena

mas muito limpa
estão a perceber
não a estraguemos
tornemo-la séria

algo autêntico e delirante
sabem, algo genuíno como uma borrada
na sanita

agraciada com as vísceras e visceralmente
graciosa”

aperta os tomates e dá a cara

― E.E. Cummings, poema nº 24, in No Thanks


24.

“let's start a magazine
to hell with literature
we want something redblooded

lousy with pure
reeking with stark
and fearlessly obscene

but really clean
get what I mean
let’s not spoil it
let’s make it serious

something authentic and delirious
you know something genuine like a mark
in a toilet

graced with guts and gutted
with grace”

squezze your nuts and open your face

― E.E. Cummings, poema nº 24, in No Thanks


Agradecimento a Joseph Frank

há anos atrás
vi-me
numa situação
desesperada
segui
durante muito tempo
um caminho
que achava bom
o do aluno diligente
que faz os trabalhos de casa
e não falta
a muitas lições
e de repente
onde devia estar
o meu futuro
encontro
um poço negro
e o peso
de contas por pagar

os trabalhos
escasseavam
e acabavam sempre
no silêncio
depois de mais
uma entrevista humilhante

era verão
e eu sentia
que toda a minha vida
tinha sido
um enorme desperdício

fiz então
o que costumo fazer
quando me encontro neste estado
voltei-me para Dostoiesvski
tinha comprado recentemente
Dostoyevsky
A writer in his time
de Joseph Frank
e os meus dias caíram
numa rotina
de manhã
ia à praia
nadava
até deixar
de sentir o corpo
e de tarde lia
a biografia de Dostoievski
isto durou uma semana
no final da qual
eu recordara
(envergonho-me
por admitir agora
por escrito
que alguma vez
o tivesse esquecido)
que o valor de um ser humano
não é determinado
pela sua função
num determinado sistema
e que uma vida passada
a ler bons livros
é uma vida
bem vivida

era
um homem feliz
tanto quanto se pode ser
naquelas circunstâncias

ao ponto de procurar
o endereço
do Professor Frank
e de começar
a escrever uma nota de agradecimento
por aquele milagre
de mais de 900 páginas
ao mesmo tempo
iluminado
e escrito
com o arrebatamento
de um romance de Dostoievski

nunca terminei o e-mail
o Professor Frank
é um homem ocupado
quem sou eu
para tomar o seu tempo?

ano e meio depois
a minha vida
tinha dado uma volta
mudei-me para outro país
arranjei um emprego
que não era
demasiado desagradável
quando vi no New York Times
o orbitário de Joseph Frank
não sei muito sobre o homem
94 anos
espero que tenha tido
uma vida boa

gostava de lhe ter escrito então
mas quanto a isso
não há nada
que possa fazer agora
para além
deste poema