Ésquilo, Agamémnon, 123-246

A minha tradução do Agamémnon de Ésquilo sairá com a edição de amanhã do jornal Público. Deixo aqui um dos meus passos preferidos. Tem lugar no párodo (o canto de entrada do Coro); o Coro, um grupo de anciãos, tenta interpretar um sinal que parece anunciar que o exército e o rei Agamémnon regressam triunfantes da guerra. Mas um temor incerto fá-los recordar um episódio que teve lugar dez anos antes, aquando a partida do exército, em que o rei sacrificou a própria filha para apaziguar a cólera de um deus e permitir que a experdição militar possa partir.
O párodo do Agamémnon é a secção lírica mais extensa que nos chegou da tragédia antiga. É também uma das mais belas.


CORO (Cantando e dançando)

Então, o prudente profeta do exército, vendo os dois, distintos em temperamento,
os dois belicosos Atridas, reconheceu nas devoradoras de lebres
os comandantes supremos do exército e assim falou, interpretando o prodígio:   
“Com o tempo esta expedição tomará a cidade de Príamo
e todos os numerosos
rebanhos das gentes[1] acumulados diante das muralhas o Destino saqueará
pela força.
Mas que ressentimento algum vindo dos deuses
obscureça com um golpe antecipado o grande freio de Tróia
pelo exército em formação. Em sua compaixão é aborrecida a casta Ártemis
pelos cães alados de seu pai
que a pobre lebre, antes que desse à luz a sua prole, sacrificaram.[2]
Ela abomina o festim das águias.”
Um triste canto entoai, um triste canto, mas que o bem triunfe!

epod.
“Tão graciosa é Hécate[3]
para com o orvalho indefeso dos feros leões
e para com as crias de leite
de todos os animais selvagens tão amável,
por isso pede que os prodígios se realizem,
a visão favorável, porém reprovável, †das aves†.
Mas suplico ao Péan[4] que acorre aos agudos lamentos
que contra os Dânaos nenhuns ventos adversos, retendo por longo tempo as naus em terra,
ela prepare, precipitando assim um outro sacrifício, sem música e sem festim,            
artífice de discórdias nado e criado na família,
que não teme homem algum[5] – pois permanece pronta a reerguer-se uma temível
e enganadora governanta, a Cólera que não esquece, vingadora dos filhos.”  
Estas palavras Calcas
proferiu, acompanhadas com a promessa de grandes bens,
quando leu no presságio das aves à partida o que estava destinado para a casa real.
Em consonância
um triste canto entoai, um triste canto, mas que o bem triunfe!

estr. 2
Zeus, seja ele quem for, se por este nome
lhe é caro ser chamado,
por este nome o invoco.
Com nada o posso igualar,
tudo pesando,
senão com o próprio Zeus, se do pensamento esta vã angústia                                   
é necessário realmente expulsar.

ant. 2
Daquele que outrora era grande[6],
transbordante de uma audácia capaz de tudo desafiar,
não se dirá sequer que foi.
E o que se lhe seguiu[7]
logo partiu ao encontrar o vencedor que o derrubou três vezes[8].
Mas aquele que de coração despojado o hino vitorioso de Zeus cantar
alcançará a suma sageza;                                                                                             

estr. 3
pois é Zeus que os mortais na senda do conhecimento
guia, que a aprendizagem por meio do sofrimento
estabeleceu como lei absoluta.
Goteja sobre o coração em lugar do sono
a mágoa que memora a dor. E, ainda que indesejada,
a sabedoria virá.
Onde é a graça dos deuses,
violentamente sentados no augusto assento do timoneiro?

 
ant. 3
E então o mais velho dos comandantes[9]
das naus dos Aqueus,
não recriminando adivinho algum,
conspirou com a sorte que o feria,
enquanto a demora devorava as provisões
e oprimia a multidão aqueia,
acampada defronte de Cálcis[10],
nas costas de Áulis, onde a rebentação ruge continuamente;

estr. 4
os ventos que do Estrímon[11] sopravam
um tédio nefasto, a fome, a má ancoragem,
o desvario dos homens, não poupando naus nem amarras,
tornavam a espera duplamente longa,
com o desgaste consumindo
a flor dos Argivos; e quando um outro
remédio mais pesado
do que a amarga tempestade o adivinho proferiu
aos primeiros do exército,
declarando Ártemis responsável, então, batendo com os ceptros
no solo, os Atridas
não contiveram as lágrimas,

ant. 4
e o mais velho dos chefes ergueu a voz para falar:  
“Sorte pesada é não obedecer,
pesada também se esquartejar a minha filha, jóia do meu lar,
manchando as mãos paternas
na corrente do sangue de uma donzela imolada
junto ao altar. Qual destas está isenta de mal?
Como me hei-de eu tornar um desertor das naus
falhando para com a aliança?
Pois o sacrifício
que acalme os ventos à custa do sangue de uma virgem desejam
com desejo extremo, mas proíbe-o
a Justiça. Oxalá tudo corra pelo melhor!”

estr. 5
Mas quando a si ajustou o jugo da necessidade,
do espírito soprando um vento de mudança ímpio,
impuro, sacrílego, então
mudou o curso do pensamento para a maior das audácias –
pois torna audazes os mortais a de vergonhosos conselhos,
a miserável demência, princípio da desgraça. E assim ousou
tornar-se o sacrificador
da filha como auxílio
para uma guerra vingadora de uma mulher
e sacrifício preliminar[12] à partida das naus.

ant. 5
Das súplicas e apelos ao pai
não fizeram caso, nem da virginal idade,
os juízes enamorados pela guerra.
Aos servos o pai, depois da prece, ordenou
que, como uma cabra, sobre o altar,
a que as vestes do pai com todo o coração abraçava, inclinada para a frente
a erguessem,
e que a bela proa da boca
selassem como vigia
contra alguma palavra de maldição para a casa

estr. 6
por meio da força de um freio e da violência emudecedora.
Quando já o seu vestido tingido de açafrão[13] pendia para o solo,
de seus olhos lançava ainda a cada um dos sacrificadores um dardo
piedoso, destacando-se como numa pintura, desejando
chamá-los pelo nome, pois outrora muitas vezes
nos hospitaleiros banquetes de seu pai
havia para eles cantado, a virgem que com voz pura a libação
terceira[14] do pai
amado com um péan[15] amoravelmente honrava.

[1] Expressão ambígua: significa ao mesmo tempo “rebanhos que pertencem ao povo” (o passado mítico em que a tragédia é projectada não conhecia ainda a cunhagem de moeda, por isso os rebanhos representam a riqueza da cidade), mas também “rebanhos de gente”, “rebanhos constituídos por gente”.

[2] Verso ambíguo. Em grego pode também significar: “que a sua própria filha, infeliz e cheia de medo, diante do exército sacrificaram.”

[3] Hécate era originalmente uma divindade infernal, mas como divindade tutelar dos partos e protectora dos recém-nascidos era por vezes confundida com Ártemis.

[4] “O que cura”: epíteto de Apolo, cuja intervenção é aqui implorada também na condição de irmão de Ártemis.

[5] Expressão ambígua: ao mesmo tempo “que não teme homem algum” ou “que não respeita homem algum”, i.e., que desrespeita a vida humana, e “que não teme o marido”.

[6] Úrano.

[7] Cronos, filho de Úrano, que venceu e depôs o pai.

[8] A imagem reporta à luta do pancrácio, onde o lutador que por três vezes derrubasse o adversário vencia o combate. O vencedor é Zeus, filho de Cronos.

[9] Agamémnon.

[10] A expedição grega reuniu-se em Áulis, na costa da Beócia. Diante de Áulis, do outro lado do Euripo, ficava a cidade de Cálcis.

[11] Rio da Trácia.

[12] Ver nota 8. Talvez se trate de uma alusão à variante do mito segundo a qual Ifigénia foi convocada a Áulis sob o pretexto de ser desposada por Aquiles (como na Ifigénia em Áulis de Eurípides).

[13] O vestido tingido de açafrão simbolizava uma transição bem-sucedida da infância para a idade núbil; o facto de Ifigénia o usar pode ser uma outra alusão ao pretexto por meio do qual foi trazida até Áulis.

[14] A terceira libação dos banquetes era em honra de Zeus Sôtêr (Salvador), tratava-se de um ritual com o fim de afastar os males e atrair prosperidade.

[15] Em geral, o péan era um hino em louvor de um deus olímpico (normalmente Apolo).

Os Persas de Ésquilo, Epidauro, Teatro Nacional da Grécia, 25 de Julho de 2020 

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O teatro de Epidauro é o elemento central de um complexo arqueológico dedicado ao deus da medicina, Asclépio, e é de todos os teatros que nos chegaram da antiguidade o mais bem conservado: a estrutura e a acústica permanecem intactas, como, segundo nos conta Pausânias, as sonhou o arquitecto Policleito no final do século IV a.C. Os doentes que convalesciam no santuário eram encorajados a ver teatro como parte da sua terapêutica. No poema “Out of the bag” do livro Electric Light, Seamus Heaney alucina que é visitado por Higeia, deusa da saúde, em Epidauro. O espaço é representado como uma espécie de fantasmagoria que convoca uma memória de infância, uma ideia de fábrica do ser, um teatro de retorno à origem, demasiado quente, um pouco doentio, fértil. Em 1988, num texto lido na Sorbonne 13 anos antes de o livro de Heaney ver a luz do dia, e hoje coligido como “Arte Poética V,” Sophia narra uma experiência em Epidauro, que existe como espécie de regra crucial da sua poética:

 

            Um dia em Epidauro – aproveitando o sossego deixado pelo horário de almoço dos turistas – coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz, livre, desligada de mim.

            Tempos depois escrevi estes três versos: 

            A voz sobe os últimos degraus
          Oiço a palavra alada impessoal
            Que reconheço por não ser já minha.

            Há em Epidauro a impressão de estarmos perante algo que nos ultrapassa e que nos liga profundamente à origem (Heaney) e à passagem do tempo (Sophia), talvez porque o presente e um passado muito antigo se toquem neste espaço, num amplo parque hoje adornado de ruínas e pinheiros, onde sob o calor violento nos passeamos e nos podemos encontrar, talvez como explica Sophia com algo que, libertando-nos, nos devolve a nós próprios alterados. Qualquer coisa como um encontro com a profundidade do ser. Isto não é tanto uma explicação um pouco esotérica de um lugar difícil de explicar em palavras, mas antes uma ilustração do que as palavras dos poetas podem acrescentar ao nosso entendimento de um espaço para além do convívio com manuais de arqueologia e guias de viagem.

Na contemporaneidade, o Festival de Atenas e Epidauro acontece no pico do verão. Durante as representações em Epidauro o canto das cigarras enche a atmosfera, mistura-se e compete com as vozes das centenas de pessoas que compõem a audiência, uma amálgama de gregos e turistas. É sempre o coro das cigarras que ganha no fim da peça e existe como o fio condutor que nos resgata da tensão constante em que o acto de ver uma tragédia nos mantém. É esse o som, acho, que no final nos devolve à realidade, que assinala que ainda somos parte do mundo. Há no meio da algazarra um horizonte da mais profunda inquietude: a iluminação artificial necessária à representação é um acidente que apenas temporariamente afasta a escuridão da noite e essa escuridão é o mais adequado pano de fundo contra o qual ver tragédia. Não há talvez uma única tragédia que nos tenha chegado da antiguidade que não seja acerca de um combate contra alguma espécie de força obscura: a nossa desmesura, a dos outros, a das circunstâncias, a cólera dos deuses, a força opressiva das leis sob as quais vivemos ou sob as quais nos querem fazer viver. A tragédia é uma arte de questionamento de coisas impostas e recebidas, feita de tenções e negações, de gestos de não aceitação, desobediência e revolta. É também por isso que os atenienses viam nela uma expressão vital da sua participação cívica. Não é por nada que o seu declínio parece acompanhar o da polis ateniense. A melhor definição que conheço, dada na contemporaneidade, do que era o trabalho de um tragediógrafo, aparece num poema de Yiorgos Seferis (Nobel da Literatura em 1963), sobre Eurípides:

 

Euripides the Athenian

 

He grew old between the fires of Troy
and the quarries of Sicily. 

He liked sea-shore caves and pictures of the sea.
He saw the veins of men
as a net the gods made to catch us in like wild beasts:
he tried to break through it.
He was a sour man, his friends were few;
when his time came he was torn to pieces by dogs.

 

Seferis (tradução de Edmund Keeley e Philip Sherrard)

 

 

No passado 25 de Junho o Teatro Nacional da Grécia estreou a sua peça em Epidauro pela primeira vez na sua história também em directo online, numa tentativa de divulgar o festival e contrariar aquilo que a câmaras não esconderam: como seria de prever, uma audiência muito abaixo do habitual, que de outro modo é o espelho de uma crise profunda que vai alterar radicalmente a face de certas artes e provavelmente vai forçar certos sectores e instituições a uma reinvenção difícil e radical. Basta pensar que em Londres o híper-turístico Globe Theatre está à beira da falência.

Os Persas de Ésquilo é uma peça que sobrevive há várias centenas de anos. As palavras que compõem o texto foram escutadas pela primeira vez em cena em 472 a.C., entre os atenienses. O corego, isto é, o cidadão que custeava a despesa do coro, foi Péricles, o lendário estadista da idade de ouro da Atenas clássica. Os Persas é a primeira peça de Ésquilo que nos chega, embora a sua carreira tivesse começado um pouco mais cedo. É uma peça bastante excepcional: o seu tema não são os mitos que para os tragediógrafos foram muitas vezes uma segunda língua a partir da qual falavam do seu próprio tempo, mas um acontecimento contemporâneo, no qual Ésquilo esteve envolvido, que era para ele um assunto pessoal e um facto da sua biografia: a guerra contra os persas, que ocupou a primeira metade do séc. V a.C., e chega ao fim com os gregos vitoriosos, sendo o evento principal que precipita e permite a hegemonia de Atenas clássica sobre as outras cidades-estado da Grécia. Ésquilo combateu em Maratona em 490 contra o exército de Dario e muito provavelmente de novo em 480 em Salamina, o principal evento histórico a que a sua peça se refere, e perdeu um irmão na guerra. Ésquilo devia ter consciência de que um dramaturgo escrever sobre a guerra contra os persas podia custar caro, literalmente. Frínico, pouco depois de 494 a.C., levara a cena uma peça cujo tema era o saque de Mileto. Esta peça perdeu-se, mas sobre ela diz-nos Heródoto que os atenienses multaram Frínico em mil dracmas pelo atrevimento de os recordar dos seus próprios problemas.

A relação visceral dos gregos com o teatro é algo não está de todo circunscrito à antiguidade. A formação daquilo que é o carácter cultural da Grécia contemporânea pode ser explicado em torno de um evento que ficou conhecido como a Orestiaka. No outono de 1903 o Teatro Nacional, então acabado de fundar, leva a cena uma versão da Oresteia em demótico (a língua vernácula, por oposição à norma culta do katharevousa, a norma culta e uma reconstituição próxima do grego antigo) da autoria de um dos poetas nacionais da Grécia, Kostis Palamas. Protestos e confrontos, sobretudo de estudantes, entre os apoiantes e os opositores da ideia de ser possível encenar uma versão moderna e em demótico de uma tragédia antiga duraram vários dias e resultaram num morto. (Questões de base filológica na Grécia são outra coisa.)

            Os Persas levados à cena em Epidauro no passado dia 25 de Julho com encenação de Dimitris Lignadis, não são certamente material que possa gerar este tipo de controvérsia, mas também não são exactamente um objecto comercial facilmente descartável. Tomemos como exemplo duas críticas feitas à encenação que não podiam ser mais diametralmente opostas. Natalie Haynes no The Guardian dá-lhe quatro estrelas e chama à peça um triunfo de empatia, Louiza Arkoumania, na revista grega Lifo, dá-lhe uma estrela e arrasa a peça pela falta de empatia em relação aos persas, e, de facto, pelo aparente apagamento do tipo de pena e terror que se deve sentir por uma tão rápida e catastrófica mudança de fortuna como a que é representada na peça. No centro do texto estão o medo e a tensão constantes de Atossa, rainha do poderoso império persa, à espera de notícias do filho, que partira numa expedição contra os gregos, à cabeça de um exército que esvaziara a terra da Pérsia, assim nos diz o texto de Ésquilo, da flor da sua juventude. Todos os homens em idade militar haviam partido com ele, deixando apenas mulheres, anciãos e crianças para trás. O coro agita-se também ele à espera de notícias. O fantasma de Dario, numa cena que séculos mais tarde ecoaria um pouco em Shakespeare, é evocado em busca de conselho apenas para declarar o exército completamente perdido (não em pequena parte por causa da sua conduta impiedosa, saqueando estátuas de deuses e queimando templos), prevê o desastre que viria a seguir a Salamina, Plateias, e confirma que o exército dos Persas está para lá de salvação. A peça termina com a chegada de Xerxes, em farrapos, com as roupas manchadas de sangue.

            A cenografia, o guarda-roupa e, acima de tudo a música (que vem com alguns ecos da fértil tradição da música da liturgia ortodoxa grega, provavelmente ligada por uma longa linhagem de evolução criativa à tradição onde se originou a própria tragédia grega), nesta encenação de Lignadis são excelentes. Atossa é o centro da peça e é aqui que a controvérsia começa. Comecemos pelos actores, Lidia Kornodiou, a atriz que dá corpo a Atossa, foi ministra da cultura do Syriza, repetindo um feito que na história da Grécia parecia reservado apenas a Melina Mercouri, é uma das mais destacadas actrizes gregas, com uma longa e venerável carreira no teatro e na representação de teatro antigo. O centro da peça parece-me, no entanto, não ser tanto Atossa quanto o mensageiro, interpretado por Argiris Pantazaras. O guarda-roupa é incrivelmente elegante com ecos de alta costura, as camisas do coro e do mensageiro estão bordadas com excertos do texto de Ésquilo. A peça alterna em certos pontos entre o grego antigo e o grego moderno, e abre com o párodo em grego antigo, o que expõe perante a nossa visão e audição o facto de que Ésquilo é um dos maiores poetas que alguma vez viveu.

            Os problemas de Louiza Arkoumania com a peça são relevantes para pensar sobre a performance e começam com o guarda-roupa. Ela diz-nos que os actores parecem modelos de alta costura, o que é desadequado para um povo cujo exército acaba de sofrer uma pesada derrota (esta objecção é arqueologicamente errada, mas bastaria atentar no texto de Ésquilo, que constantemente chama a atenção para o facto de os persas serem fabulosamente ricos; o seu cuidado em termos de aparência era, de resto, famoso no mundo antigo). Que esta é a primeira de muitas falhas, porque é um dos primeiros obstáculos à nossa empatia, o que em parte está certo, o tratamento que Ésquilo faz dos persas é justo e nobre, numa lógica de nos dizer que a boa sorte pode terminar para qualquer um, e que a catástrofe que coubera aos persas pode bem mais tarde tornar-se a dos gregos, ninguém é invulnerável à mudança da fortuna. Mas há de facto algo de intrinsecamente desagradável em Atossa que em parte obscurece esta empatia, vestida de negro, há algo nela que nunca chega completamente a captivar-nos, ao contrário do que sucede em Ésquilo. Esta Atossa tem qualquer coisa de Lady Macbeth e, a partir daí, um pouco talvez de Melania Trump. Outros aspectos um pouco menos bem conseguidos (a expressão mais adequada será mesmo um pouco palermas) incluem o facto de que Atossa repete três vezes a pergunta acerca de quem é o déspota que governa sobre os gregos, sendo a democracia a mais importante diferença cultural entre persas e helenos, para que o mensageiro finalmente responda que eles não são servos nem súbditos de homem nenhum, quando no texto de Ésquilo esta pergunta é posta apenas uma vez (verso 241); outro desses aspectos menos bem conseguidos é o adereço da mini-Acrópole, constantemente acesa em palco, uma espécie de Acrópole-candeeiro para hipsters, que não convence como símbolo e arrasta para a sua pequenina escala uma cenografia de outro modo impecável.

Mas textos para performances não são evangelho, felizmente, e talvez a resistência a uma empatia completa que a encenação de Lignadis parece evocar cumpra uma função interessante. Os Persas é um texto bastante adequado ao nosso corrente contexto, é uma peça que fala de uma mudança abrupta de uma certa realidade política, da destruição de uma multidão de gente, da perda de vidas individuais que são insubstituíveis e vão deixar um trauma duradouro na memória colectiva. É também uma peça sobre um chefe de um vasto território que toma todas as decisões erradas, por ganância, soberba e falta de imaginação (para Xerxes seria inimaginável que a Grécia pudesse resistir a um tão poderoso exército). O tempo em que a peça decorre, centrado na psicologia da espera de Atossa e do coro, é o tempo do medo e da antecipação, aquele ponto em que a calma terminou e em que se espera apenas a confirmação da tempestade. No contraste entre o perfil de Xerxes enquanto governante e o de Dario, cujo fantasma é evocado pelo coro e Atossa (Dario, talvez a personagem com o guarda-roupa que menos me convenceu, faz lembrar o tio-avô que ainda não desistiu de se vestir para o Halloween, mas bem interpretado por Nikos Karathanos), estabelece-se a diferença entre um rei ponderado, cujo resultado fora um reinado próspero e feliz, e a impetuosidade e incompetência, ambas fatais, do jovem Xerxes.

            Mas é talvez por aqui que se pode entender porque parecem estes governantes persas de 2020 um pouco menos dignos da nossa simpatia do que o terão sido para o próprio Ésquilo, que vira de demasiado perto a sua ameaça, o terror e a destruição que eles trouxeram consigo. O aspecto mais desafiador e interessante da encenação de Lignadis é o final. No texto de Ésquilo, na cena final, o coro junta-se ao lamento de Xerxes, na única aparição em cena do jovem rei. Esta é uma cena difícil de encenar e traduções deste passo normalmente têm de ser muito cuidadas (em português de Portugal a tradução que temos inclui a opção absolutamente ridícula por uma versão que inclui um verso onde se lê “geme para me agradar,” que, não sendo infiel à letra, costumava no entanto convidar a risota geral de estudantes de tragédia grega). O corte de Lignadis com Ésquilo aqui é radical. Os membros do coro dos persas mantêm-se em silêncio, sentados atrás do rei, numa posição que lembra mais juízes num tribunal do que um séquito subserviente. A sua posição lembra outro passo magistral de Ésquilo, noutra tragédia, em que ele fala dos deuses ferozmente sentados ao leme. O coro, composto afinal apenas dos velhos que ficaram na Pérsia, muitos deles, infere-se, pais dos jovens mortos na expedição, é capaz da contenção que falta a Xerxes (Argiris Xafis). E é como se nos dissesse: já tivemos que baste de governantes que se enchem de pena de si próprios e que não aceitam a responsabilidade pelas suas péssimas decisões.  

Se eu achei a encenação de Lignadis lendária e perfeita, digna de inspirar uma Orestiaka? Claro que não. Mas esta cena final quase que dá vontade de lhe perdoar até a Acrópole dos pequeninos.

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Tatiana Faia

Oxford, 28 de Julho e 9 de Agosto de 2020

Queda Medea

Queda Medea

Queda Medea es el primer proyecto de Skaenika Teatro, grupo teatral creado en el seno del curso de Literatura Latina de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Granada que tiene por objetivo difundir, desde un abordaje contemporáneo, algunas de las obras literarias de la Antigüedad Clásica, no exclusivamente los teatrales. El espectáculo propone una relectura de la más famosa matricida griega, Medea de Cólquida, una de las más trágicas figuras femeninas de todos los tiempos. Desde una experimentación dramatúrgica sobre los textos de Séneca y Ovidio –mezclándolos, borrándolos, poniendo a prueba los límites dramáticos del uno y del otro–, presentamos a una Medea múltiple, polifónica y sobre todo actual. ¿Por qué habrá que leer el caso de Medea como algo más que la acción extremada frente a un amor traicionado?

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Sophokles

Sófocles, Filoctetes (versão de Frederico Lourenço, encenação de Luís Miguel Cintra), Teatro da Cornucópia, 2007 

Sófocles, Filoctetes (versão de Frederico Lourenço, encenação de Luís Miguel Cintra), Teatro da Cornucópia, 2007 

A maior parte dos argumentos com que se tem afirmado que Sófocles é singularmente sofocleano não sobrevivem se forem questionados. Parece que, acima de tudo, ainda existe um desejo de o conformar a um modelo de firmeza ou solidez de alguma espécie. Num soneto muito citado, Matthew Arnold agradecia a Sófocles “cuja alma equilibrada em justa medida... viu a vida firmemente, e viu-a inteira.” Mas as peças propriamente ditas constantemente desequilibram esta afirmação com sobressaltos e reviravoltas, tanto de enredo quanto de ponderação ética. Arnold estava mais perto do alvo quando escreveu (em Dover Beach) que Sófocles escutava “o turvo fluir e refluir da maré da miséria humana.” E esse turvo sofrimento do mundo humano não é (tanto quanto me parece) mais bem medido ou justo ou explicável nas peças de Sófocles do que em qualquer outra literatura trágica. Nem as peças dele são, como muitas vezes se tem defendido, distintamente conservadoras ou particularmente piedosas. As linhas finais d’ As Traquínias incluem uma condenação tão feroz do comportamento dos deuses em relação aos homens como qualquer outra em literatura. Há mais verdade em dar a Sófocles o rótulo de “pessimista”. A tragédia não é lugar onde ir se é de optimismo que se anda à procura, mas pode ser verdade que Sófocles ofereça menos alívio compensatório ou consolação do que a maior parte do drama trágico. Ao mesmo tempo, as suas peças não acabam em desespero inqualificável ou resignação: antes o contrário, à sua maneira fortalecem-nos.

O que torna Sófocles tão bom não é tanto uma visão de vida ou uma “filosofia”, mas uma intensa e inabalável visão do mundo humano no meio da dor que ele contém. Não é tanto uma questão de perspectiva do mundo quanto de clareza atmosférica, como num daqueles dias em que se pode ver cada pormenor de colinas que estão muito lá ao longe. Isto serve para dizer que as peças de Sófocles fazem o que a tragédia costuma fazer, mas com um poder particularmente forte. “O que a tragédia costuma fazer” é uma frase ambiciosa. Eu diria que isso é (em termos muito simples e breves) isto: lançar uma teia complicada e inextricável de emoções fortes e de pensamentos que desafiam através de um largo espectro de experiência humana, para que cheguemos a estar ao alcance de fazer algum sentido do sofrimento humano. Essa mistura de emoção e envolvimento cognitivo produzem uma forma que encontra expressão em movimento, poesia e música.


Oliver Taplin é professor emérito de Estudos Clássicos na Universidade de Oxford e autor de vários livros, sobretudo dedicados a literatura e cultura gregas (sobretudo tragédia e Homero), entre os quais The Stagecraft of Aeschylus (Oxford University Press, 1989), Greek Fire (Atheneum, 1990), Homeric Soundings (OUP, 1995), Greek Tragedy in Action (Routledge, 2002, 2ª ed.). Greek Fire tem uma tradução portuguesa (Fogo Grego, Gradiva, 1990).

O excerto que aqui publicamos fará parte de uma tradução (a publicar em breve) de algumas tragédias de Sófocles. 

*Tradução do inglês: Tatiana Faia (em colaboração com o autor).

Ésquilo, Coéforas, 585-630

Coro das Coéforas na  Oresteia encenada por Peter Hall (National Theater, 1981)

Coro das Coéforas na  Oresteia encenada por Peter Hall (National Theater, 1981)

estr. 1

Coro (cantando:)

A terra cria muitos seres
     temíveis, causa de medo e dor,
e os braços do mar
de monstros hostis
estão repletos; entre o céu e a terra as tochas[1]
no alto ferem
as criaturas aladas e as que caminham sobre a terra: elas podem
falar do ressentimento ventoso das tempestades.[2]

 

ant. 1
Mas do espírito excessivamente audaz
     do homem quem pode falar
ou das paixões da mente ousada
da mulher, capazes de tudo ousar,
parceiras nas desgraças dos mortais?
Os laços que unem o casal
a perversa paixão que domina a fêmea[3] desfaz,
tanto entre as feras como entre os homens.

 

estr. 2

Ficará a sabê-lo aquele cuja inteligência
     não voa longe
ao conhecer o desígnio que a destruidora do filho,
     a miserável filha de Téstias[4]
     
formou,
mulher que premeditadamente ateou o fogo,
     
incendiando o tição cor de sangue
da mesma idade do filho, desde que ele saiu
     
do ventre materno e chorou,
medindo a vida deste pela sua
até ao dia marcado pelo destino.

 

ant. 2

Uma outra há nos mitos para se detestar,[5]
     
uma donzela
manchada de sangue, a que tomou o partido dos inimigos
     
e matou o próprio pai,
     
persuadida
por um colar cretense
em ouro forjado, dádiva de Minos,
privando Niso do cabelo
imortal, quando ele, desprevenido,
no sono – cadela sem coração! – exalava um sopro.
E Hermes alcançou-o.[6]

 

estr. 3

Uma vez que recordei feitos
desapiedados, não distinto é o casamento odioso
     e abominável para a casa[7]
e os desígnios e maquinações de uma mulher
contra um homem que brandiu armas,
†homem respeitado até pelos inimigos†.
Honro o lar onde a lareira não é acendida pela paixão
e a lança da mulher não ousa.

 

Edição utilizada: M. L. West, Aeschylus, Choephoroe, Teubner, 1991.

[1] Provavelmente meteoros ou cometas.

[2] Esta estrofe está pejada de problemas textuais e o texto traduzido é bastante incerto.

[3] Expressão ambígua. O adjectivo θηλυκτρατής (thêlyktratês), que só ocorre neste passo em toda a literatura grega e que se traduziu por «que domina a fêmea», pode também significar «de uma fêmea dominadora» ou «pela qual a fêmea domina».

[4] Alteia, mãe de Meleagro, quando este nasceu ela foi informada de que o filho morreria quando o tição que então ardia na lareira fosse totalmente consumido pelo fogo. Ela tirou o tição da lareira e guardou-o numa caixa, mas mais tarde devolveu-o ao fogo, quando Meleagro matou os irmãos numa disputa.

[5] Cila, filha de Niso, rei de Mégara. Quando a sua cidade foi sitiada por Minos, rei de Creta, ela cortou a madeixa de cabelo que conferia imortalidade ao pai e sem o qual ele não podia viver, a troco de um colar de ouro, causando assim a sua morte.

[6] Hermes guiava as almas dos que morriam até ao Hades.

[7] O casamento de Clitemnestra com Egisto.