Adam Zagajewski, "Violoncelo"

Tradução de João Ferrão e Anna Kuśmierczyk

Os que não gostam dizem: é apenas
um violino que sofreu uma mutação
e foi expulso do coro.
Não é verdade.
O violoncelo tem muitos segredos,
mas nunca chora,
canta apenas em voz baixa.
Porém, nem tudo transforma
em canto. Por vezes pode-se ouvir
um sussurro ou um murmúrio:
estou sozinho,
não posso adormecer.

Zona X

Este sou eu, queres dizer. 
Vi um homem que queria desenhar-se, perdido  
nos corredores desabitados da casa. Emparedado  
nas matérias edificantes do seu mundo. 

A tridimensionalidade poética a construir a casa infinita. 
Madeiras cansadas e metais velhos. 
Pigmentos secos e perplexos.  
Ornamentos do homem que se procura. 
Iluminação estética do contorno do tempo no seu rosto. 

Há um chapéu vidente sem cabeça  
que guarda o poema por acabar, 
como um monólogo invertido e visionário. 
A denúncia da dor e o prenúncio da solidão  
em busca do silêncio perfeito. 

O homem constrói-se lentamente, ponto por ponto, 
peça a peça, até ser inteiro e utópico. 
Madeira-metal-sangue-pensamento no chão. 
Tão no chão o homem é corpo fundente. 
O homem é sempre um homem. 

O homem ouve-se a ele próprio e a mulher grita. 

Um insecto pousa no som. 


Tudo pode acontecer a qualquer momento. 
Uma desgraça anunciada
sem lugar para procedimentos científicos, 
malabarismos criativos ou intervenções dos deuses. 

O mundo dobra-se sobre si mesmo.  
Deslizes topográficos-semânticos-emocionais. 
Queda-erro-dúvida existencial. 
Um abalo na estrutura planetária do pensamento. 
Uma ligeira perturbação em plena ascendência. 

Não há coisas vivas ou inertes no horizonte. 
Derradeiro acontecimento dos olhos que se defendem
e procuram sombras na ausência da luz. 
A última justificação humana
é a intensidade cruel da ignorância, 
uma paisagem paradoxal e indecifrável. 

O tempo parado declina a necessidade dos relógios avariados. 
E tudo aconteceu durante um qualquer momento  
esquecido na memória.  


Três poemas de Lucas Perito

Escopismo

contemplo um corpo já morto
uma estátua oca
um artefato de carne
carrego uma palavra ou duas
e toda a memória do mundo

 

Réquiem: herdade

Desfilam entre ervas,
Nutridos de raiz,
Onde soam as cornetas
Vão dobrados.
Carregam um cortejo
De velhos corpos
Desfeitos em azul
Seco, o outono gesticula
O último domingo.
Heras engolem a pedra
Riscam os vestígios.
Em mora,
Nos filhos,
Sobram os detritos das
Horas mortas.

 

Felicidade

Para Mia

Entre dois continentes
Mastigo uma tulipa
Os dentes manchados de jabuticaba
Sepulto o desejo num novo desejo
Lentamente deslizo
Desfaço meu ser em outro ser.


Poemas, Rui Esteves

Poemas Rui Esteves.jpg

I

1- Declaração de intenções: sou amigo (considero-me amigo) de Rui Esteves, tanto mais genuinamente quanto nasceu nas condições pouco propícias de um encontro duplo em mesas de conferências filosóficas. Mas entre Heidegger, Foucault e Nietzsche, emergiu primeiro uma curiosidade pela forma como o outro via e sentia o mundo e depois uma admiração mútua que solda a nossa amizade.

1.1- Nesta circunstância, corre-se o risco do panegírico, do discurso sobre-elogioso que fermentou as virtudes e excisou os defeitos. Sabendo isto, leio o Poemas de Rui Esteves procurando aplicar o que Kant chamava “desinteresse estético”, isto é, cingindo-me ao miolo da obra, às palavras e estilo que a compõem, leio Poemas como se fosse de um poeta anónimo.

2- Sabemos que as obras de arte têm sempre várias entradas, e que os espectadores por vezes possuem poucas chaves hermenêuticas para a complexidade do que avaliam. Outras vezes, apesar do chaveiro ser vasto, apostam numa chave que parece abrir para um caminho fecundo. Espero ter feito assim desta vez, usei um código de leitura que, sobretudo a partir de Martin Heidegger, sabe jogar com uma ontologia poética capaz de resgatar a palavra do ruido e do utilitarismo comunicativos.

II

1- Martin Heidegger dedicou uma parte importante da sua obra ao estudo da linguagem poética, com isso quis justificar a sua tese da “diferença ontológica”. Em resumo, esta diferença separa irredutivelmente ente e ser, contra a metafísica tradicional (que via manifestar-se o ente no ser, e vice-versa), Heidegger defende, pelo contrário, que o ser se esquiva, subtrai, oculta. O ente, as coisas na história (cujo ente “principal” seria o Dasein, o ente humano), pode indiciar uma semi-presença do ser, mas no essencial encobre-o, esquece-o (o célebre “esquecimento do ser” desde o nascimento da metafísica platónica). Apesar disso, é importante lembrar que o ente só existe porque se relaciona com o ser, mesmo se este não está ontologicamente contido naquele. O ser doa existência ao ente estando, todavia, não-presente.

1.1- Ora, como saber então da não-presença do ser? Tanto mais importante quanto conhecer a sua ausência é também conhecer as suas condições de existência. Uma das teses de Heidegger é a de que “a linguagem é a casa do ser”. (Cf. Unterwegs zur Sprache et dans le Brief über den Humanismus). O ser encontra abrigo, uma condição de existência na linguagem, linguagem ontológica, não comunicacional. Por isso, em Holzwege refere que “nada existe onde falta a palavra. Só a palavra confere ser à coisa.”  E a palavra a que Heidegger se refere é a palavra poética, porque só a poesia realiza a diferença ontológica, ficando do lado do ser. A palavra autêntica (substituam este sintagma por “linguagem autêntica”, se quiserem) nasce do próprio silêncio, desse afastamento do ser em relação ao ente, do que está para lá das coisas, sem que, contudo, seja a essência das coisas, como na metafísica clássica. Se há metafísica em Heidegger, ela é negativa, o que transcende os entes lançados na história é o ser esquecido, retraído, ausente. Neste sentido, a poesia não é uma modalidade mais elevada das linguagens do quotidiano, mas um jogo de palavras que emerge do indizível.

III

1- Talvez por isso não haja regras de leitura pré-definidas para a poesia, um poema faz as suas próprias regras de leitura à medida que se lê. Mais, o próprio poeta descobre-se guiado por aquilo que escreve, pelos fragmentos do ser que emerge do seu trabalho, é assim que entendemos o que disse Paul Celan no discurso de agradecimento ao prémio da cidade de Bremen, sublinhando que escrevia poemas para se orientar, saber onde estava e para onde ia, que os poemas lhe davam isso.

1.1- Se há regras (um pouco de dicionário e de gramática), elas também estão sujeitas, são regras que por sua vez são reguladas, numa concatenação rizomática sem fim. Não se trata nunca de um qualquer a priori kantiano. Com Derrida, reconhecemos que o texto poético mais do que polissémico está em permanente disseminação, produz e acolhe sentido, ou melhor, sentidos que se modificam, ausentam, aparecem... O texto poético não representa nem instaura uma qualquer verdade no mundo e nas coisas, dos entes na história. Ele permite o despontar do ser na Terra, que rapidamente se desvanece. Até porque, como escrever René Char, “A poesia é simultaneamente palavra e provocação silenciosa”. (La Parole en archipel).

2- Depois de Platão ter banido a poesia da cidade (tragédias e mitos homéricos, não a poesia como hoje a entendemos), ela parece regressar. No fim da metafísica ocidental (é evidente o seu ocaso), cujo triunfo do logos se sublimou na vontade de potência da técnica, Heidegger mostra, com Hölderlin, a possibilidade da poesia guiar uma filosofia poetizante, abrindo para outra racionalidade. Tanto mais que a filosofia não tem uma língua própria, ela vasculha e parasita vários domínios linguísticos.

2.1- Em alemão distingue-se dichten, escrever poemas, mas também inventar, criar, de Dichtung, poesia. Ora, Heidegger demora-se nesta diferença, recuperando a poiésis grega, que significava, latu sensu, fazer, distinguindo-se de agir. É de dichten que se trata quando se escreve poesia, porque se inventam possibilidades para que o ser possa emergir, sem se demorar, porém. Quando Stendhal dizia que o belo (artístico) era uma promessa de felicidade, tratava-se desta inventividade, oferecer um futuro, viver numa nova instância feliz do mundo. Na poesia, enquanto dichten, as coisas, os entes, encontram a sua verdade porque vislumbram a possibilidade de serem uma abertura para o aparecimento, fugaz, do ser.

IV

1- Ora, o Poemas de Rui Esteves (edição de autor, 2017) é um exercício que prolonga a visão heideggeriana da palavra poética como casa do ser. Quando, como escreve, “O poeta encontrou / uma palavra transparente” foi com certeza buscá-la a um deserto linguístico onde habitam palavras puramente auto-referenciais, palavras que se representam a si mesmas, desenhando assim clareiras onde pode emergir o ser. E quando, talvez por tradição, “as palavras parecem reais” é apenas para “Chegar aos objectos mesmos: / à simplicidade da maçã como maçã / sem sombra.” Isto é, ir às coisas mesmas é uma maneira de fingir praticar a fenomenologia continuando na hermenêutica ontológica, permitindo que o ser se auto-ilumine, já que desde Mallarmé a poesia interrompe o fluxo da história, máxima libertação, como quem pára a língua nela mesma.  

2- Luz e sombra, duas palavras que compõem o livro de Rui Esteves, retomando a floresta e a clareira do pensamento heideggeriano. Um brilho que “logo / torna ao escuro.”, porque o ser não é o não-presente, ele apenas se vislumbra, acontece, não é (sendo, teria um peso esmagador, nenhuma subtileza lhe sobreviveria). Por isso o esquecemos, falta-lhe a espectacularidade do pechisbeque exposto nos escaparates do consumismo, quase tudo oferecido e com uma obsolescência programada refinada. O que mais importa oculta-se para que sentidos autênticos perdurem: “É no lado secreto / da palavra mar / que o mar aparece.” O ser habita esse lado incógnito da palavra mar, não da palavra em si, mas do mar quando é escrito por um poeta. É por isso que “Certas palavras / ajudam a ver.”

2.1- Mas mesmo se há “palavras necessárias”, Rui Esteves diz-nos que é preciso “Fazer do verso / o lugar do silêncio.” Na origem da palavra está, pois, uma ontologia negativa, como pretendia Jacques Derrida. Um ser subterrâneo, emergindo, se estivermos atentos, numa ou noutra fontela, escondidas em pequenas clareiras, que só os caminhantes avisados, e humildes, conhecem.

V

1- O título Poemas revela um gesto tímido de entrada no mundo da poesia. Mas a epígrafe de Novalis (“Estamos sós com tudo o que amamos”) mostra a vibração justa que Rui Esteves produziu ao compor esta obra: uma dialéctica (sei que ele gosta de Hegel) feita de ensimesmamento e abrimento, a solidão é somente a melhor forma de acolher as linhas vitais que percorrem o mundo e nos electrificam. Um vaivém, como os sopros cósmicos ou a respiração anual de um bosque. Uma tensão, quase agónica, entre o silenciar e o revelar, o dizível e o indizível, o visível e o invisível. Tensão que Rui Esteves soube domar, pelos menos o suficiente para originar quase vinte poemas, umas centenas de palavras, e muitos espaços em branco, muitos silêncios, muito não-dito. Tudo equilibrado, da tensão nasceu o equilíbrio, é assim que o leio, sinto que veio ter comigo para me compor estas malfadadas costas de mau jogador de ténis, dizer-me que devo deixar doer o que dói e esquecer, deixar que a noite entre dentro de mim com uma ou outra estrela compassiva.

2- Há tanta poesia dentro de Rui Esteves que outros livros virão, não sabemos onde irá buscar a inspiração, um poeta vê e ouve mais coisas do que um filósofo, vê e ouve sobretudo para lá das coisas, e usa muito menos palavras, pode até tornar-se agrafo a maior parte do ano. Um dia aparece a ideia justa e basta ter papel à mão.

VI

Tudo é silencioso
e a noite
é urgente o silêncio
é urgente ouvir os pássaros
ao longe
escutar as coisas simples
a respiração do mar
os ritmos da manhã
as pequenas rotinas
o trânsito nas cidades
o sol que sobe sobre os campos no verão
é urgente escutar estar atento olhar
assistir com serenidade
aos ciclos à espontaneidade
ordenada da vida.

Charles Bukowski, «se leccionasse escrita criativa, perguntou, o que lhes diria?»

Tradução de João Coles

dir-lhes-ia que tenham uma história de amor
infeliz, hemorroidas, dentes podres
e que bebam zurrapa,
que evitem a ópera e o golfe e o xadrez,
que mudem a cabeceira da cama
de uma ponta à outra
e que logo a seguir tenham
outra história de amor infeliz
e que nunca usem uma fita prateada
para a máquina de escrever, 
que evitem piqueniques em família
ou que sejam fotografados num jardim de
rosas;
leiam Hemingway só uma vez,
saltem Faulkner
ignorem Gogol
cravem os olhos em fotografias da Gertrude Stein
e leiam Sherwood Anderson na cama
ao mesmo tempo que comem bolachas de água e sal Ritz,
reparem que as pessoas que falam
insistentemente sobre libertação sexual
têm mais medo do que vocês.
ouçam E. Power Biggs e ponham a tocar o
órgão na rádio enquanto
enrolam Bull Durnham no escuro
numa cidade alheia
com apenas um dia de sobra de renda
depois de terem desistido
de amigos, parentes e trabalhos.
nunca se considerem superiores e/
ou justos
e nunca tentem ser.
tenham outra história de amor infeliz.
olhem para a mosca sobre a cortina de Verão.
nunca tentem ter sucesso.
não joguem bilhar.
fiquem legitimamente zangados quando
descobrirem que o vosso carro tem um pneu furado.
tomem vitaminas, mas não levantem pesos nem corram.

depois de tudo isto
invertam o procedimento.
tenham uma história de amor feliz.
e o que
talvez aprendam
é que ninguém sabe nada -
nem o Estado, nem os ratos
ou a mangueira do jardim, ou a Estrela Polar.
e se alguma vez me apanharem
a leccionar escrita criativa
e me lerem isto de volta
levam logo nota 20
sem tirar nem pôr,
na muche.

In Love Is a Dog from Hell


now, if you were teaching creative
writing, he asked, what would you
tell them?

i’d tell them to have an unhappy love
affair, hemorrhoids, bad teeth
and to drink cheap wine,
avoid opera and golf and chess,
to keep switching the head of their
bed from wall to wall
and then I’d tell them to have
another unhappy love affair
and never to use a silk typewriter
ribbon,
avoid family picnics
or being photographed in a rose
garden;
read Hemingway only once,
skip Faulkner
ignore Gogol
stare at photos of Gertrude Stein
and read Sherwood Anderson in bed
while eating Ritz crackers,
realize that people who keep
talking about sexual liberation
are more frightened than you are.
listen to E. Power Biggs work the
organ on your radio while you’re
rolling Bull Durham in the dark
in a strange town
with one day left on the rent
after having given up
friends, relatives and jobs.
never consider yourself superior and /
or fair
and never try to be.
have another unhappy love affair.
watch a fly on a summer curtain.
never try to succeed.
don’t shoot pool.
be righteously angry when you
find your car has a flat tire.
take vitamins but don’t lift weights or jog.

then after all this
reverse the procedure.
have a good love affair.
and the thing
you might learn
is that nobody knows anything–
not the State, nor the mice
the garden hose or the North Star.
and if you ever catch me
teaching a creative writing class
and you read this back to me
I’ll give you a straight A
right up the pickle
barrel.