José Pedro Moreira, Gatos no quintal

José Pedro Moreira

Gatos no quintal

poesia


Enfermaria 6, Lisboa,
março de 2018, 102 pp.


Capa de Gustavo Domingues e StudioPilha  


Prefácio de Simão Valente

10€

 

se vir alguém com um selfie stick
e a oportunidade se proporcionar
de lhe passar uma rasteira
sem dano para si
não hesite

 
11791946_10203766003749835_4661431596265903309_o.jpg

José Pedro Moreira

Lisboa, 1983. Vive em Oxford.

Publicou traduções do Agamémnon de Ésquilo (Artefacto Edições, 2012) e de Catulo (juntamente com André Simões, Livros Cotovia, 2012).

Um dos fundadores e editores da Enfermaria 6

Pedro Braga Falcão, Os Poemas Fingidos

poemas cover ok.jpg

Pedro Braga Falcão
Os Poemas Fingidos

Poesia

Enfermaria 6, Lisboa,
fevereiro de 2018, 168 pp.
Capa de Gustavo Domingues E StudioPilha  

12€

Como comprar
Envie-nos a sua encomenda para:
enfermariaseis@gmail.com

Oferecemos os portes de envio em compras para Portugal Continental.


Nunca souberam mais nada:
inventar que o dia continua.
Decerto solenes procissões, enredos,
preces e votos, e bairros ermos
fizeram para consagrar à ilusão
a luz que ela nunca teve.
Para quê? Para que um dia
pudessem fingir que o sol não importa.


_MG_6271.jpg

Pedro Braga Falcão

Pedro Braga Falcão é um poeta nascido de pais açorianos no final do século passado. Talvez por isso ensine línguas clássicas e história das religiões, e insista em traduzir poesia com mais de dois milénios. Como a infância e a juventude foram passadas numa aldeia que ninguém conhece, teve tempo para se tornar também músico. Como seria de esperar, é violetista e especializou-se em música antiga. Por vezes tenta manter-se no seu século ou, em alternativa, no sítio em que vive. A literatura que escreve e publica têm-no ajudado nesse sentido, sem grande sucesso.

Antes da morte que um português merece

Lisboa, Rua da Escola Politécnica 

Lisboa, Rua da Escola Politécnica 

Não me lembro ao certo da primeira livraria da minha vida tão cheia de livrarias. Suspeito que pode bem ter sido a Bulhosa em Entrecampos, de todo não tão decadente então. Eu devia ter talvez quinze anos. Esta é uma primeira vez – a primeira vez em que comprei um livro absolutamente sozinha, longe do burburinho de pais, primos e irmãos. Com a audácia de um leitor que entra numa livraria certo de si. Há umas semanas, Elena Ferrante tinha uma crónica no The Guardian sobre a intensidade das primeiras coisas, primeiro beijo, primeira vez, primeiro dia de escola, primeira palavra lida, primeiro emprego.  A autora italiana fala de como as primeiras vezes não são necessariamente as ideais, as melhores. O que afinal torna as primeiras vezes tão importantes é o seu carácter de momento marcante, a dimensão mitológica, a relação indelével entre a primeira vez que fazemos algo de particularmente significativo na história das nossas vidas e a noção de que isso se vai tornar parte da nossa história ou um hábito. Ternura, alegria, decepção, amargura - a primeira vez enquanto ponto a partir do qual narrar, nem que seja só a nós próprios, a crónica de nós próprios. Séneca escreveu que nada do que é humano nos é alheio, mas a articulação do humano tem uma velha ligação com a habilidade de nos fazermos entender. Tudo o que fica de fora dessa intuição, o que é inenarrável, é tão mais precioso ou monstruoso exactamente porque pode apenas ser indiciado pela linguagem. Mostrado, não demonstrado. Não sei então porquê esse primeiro livro, nessa livraria em Lisboa. O dia de escola devia ter acabado, podia ter sido uma tarde livre, eu devia estar a fazer tempo para que chegasse o autocarro. E porque naquela altura eu me queria tornar uma classicista, gostava de dizer que foi algo como Platão ou Homero, mas isso foi mais tarde. Uma helenista não era o que eu queria ser naquela altura. Provavelmente algum livro chato, sobre história do império romano. E no entanto há qualquer coisa como um golpe de felicidade, como um fruto aberto ao meio, como a certa evocação do odor de romãs no princípio do Outono, sobre uma mesa de madeira, quando Lisboa entardece sobre as suas mais amplas artérias. O ruído do tráfego e os faróis apontados à estátua dos Heróis da Guerra Peninsular e o livro na mão, atravessando a estrada, correndo para o outro lado daquele dédalo de semáforos. Qual foi o último livro que comprei? Uma tradução de Safo, apressadamente, numa livraria em Bloomsbury, no bolso do casaco depois, numa caminhada em direcção a Holborn, Oxford Street, Marble Arch, no autocarro de volta a Oxford abrindo o livro. Dando por mim, essa primeira cena da adolescência repete-se nesta. Coexiste com cenas de outros livros, versos de outros poetas: a cena da madalena em Proust, aquele texto de Borges em que um homem é esfaqueado para que se repetisse a cena da morte de César, sobretudo essa epifania amarga, aquela frase de Pavese, tantas vezes repetida, só é nosso aquilo que perdermos, o que existe intimamente na memória e que pode voltar de repente, inesperadamente, como uma conclusão.

Londres, Regent Street

Londres, Regent Street

Estas são as coisas amadas, foi o que o poeta disse, previsivelmente. Estão unidas porque uma certa coerência as enlaça. Mas não é uma coerência da memória, é um impulso. Queria crer, pretensiosamente, que a paixão de um leitor une estes dois momentos, queria dizer que o que acontece em Londres pode resgatar a cidade deixada para trás, que me divertem as intermitências da nostalgia, mas é adulto este cansaço e sério, e a noite das quatro da tarde em Londres faria dessa afirmação uma espécie de hybris. Antes da morte que um português merece (por saudade), tento pensar noutros lugares, ou de como eles se podem ultrapassar a eles próprios, salvarem-nos um pouco da contingência, ou de como todos os lugares são efémeros, que só uma coragem de ferro e algum amor pela inesperada estranheza do mundo nos mantém de pé no anonimato rotineiro de qualquer cidade. Que mesmo onde as palavras que enchem os livros confinam com o que não saberíamos dizer, mesmo no mais estranho dos lugares, algo de reconhecível pode ser resgatado e isso pode ocorrer-nos como um começo. Por exemplo, no bolso do casaco, sei que há algures um fragmento em que se pode ler:

κατθάνην δ’ ἴμερός τις [ἔχει με καὶ
λωτίνοις δροσόεντας [ὄ-
χ[θ]οις ἴδην Ἀχερ[

but a kind of yearning has hold of me – to die
and look upon the dewy lotus banks
of Acheron

(Tradução de Anne Carson em If not Winter: Fragments of Sappho, Virago, Londres, 2003)

O detective-projeccionista: sobre 'Imagens Roubadas' de Fernando Guerreiro

Buster Keaton - Sherlock Jnr (1924) dream.jpg

A revisão de certos filmes não tem apenas como consequência a descoberta do que ainda não víramos. Ainda sob o seu efeito, acontece-nos encarar a mecânica do mundo à luz do que neles acontece, e compreender que parte importante do que fazemos e conhecemos nas nossas vidas é já por eles anunciada. O acaso de voltar a Sherlock Jr. (1924) de Buster Keaton, pouco depois de terminar a leitura de Imagens Roubadas, motivou um desses episódios de reconhecimento.

À semelhança da personagem daquele filme, Fernando Guerreiro poderia também ser descrito como um detective-projeccionista: o que parece orientar o seu trabalho é, por um lado, o desejo de decifrar pela escrita a verdade sobre as imagens que analisa, percebendo qual é a sua natureza e como é que estas agem sobre nós; e, por outro, o interesse na capacidade que essa escrita tem de criar ela própria as suas imagens. Considerando esse intuito, faz todo o sentido que o livro tenha a peculiaridade de ter como subtítulo a designação “um poema por imagens” (que, curiosamente, atesta a coerência da obra do autor ao evocar um livro anterior que se apresentava como “um romance por ideias”); como faz também sentido que o tipo de cinema sobre o qual incide com mais fulgor seja aquele que porventura obriga de modo mais imediato a uma tomada de posição quanto ao destino das imagens.

Poder-se-ia então sintetizar Imagens Roubadas junto de quem ainda não o leu como uma investigação atenta das “mutações” e “metamorfoses” – termos omnipresentes na escrita de Guerreiro – que a concepção de imagem tem vindo a sofrer ao longo da História do Cinema. Para quem conhecer bem o horizonte estético e teórico do autor, não será surpreendente que esse processo, ao contrário do que geralmente acontece, seja encarado de maneira bastante positiva. Ainda na secção inicial do livro, “Grãos de Pólen”, que funciona como declaração de intenções acerca do pensamento que o leitor encontrará exposto nos ensaios que se lhe seguem, Guerreiro, no estilo fortemente idiossincrático que o caracteriza, faz uma observação reveladora sobre a questão. No seu entender, é pouco sensato criticar “a «contaminação» do Cinema pelos novos media como um fenómeno negativo (desestruturador) ou letal”; esta deverá antes ser vista como “o problema mais instante da teoria na fase «crisálida» (larvar) da mutação em curso” (p. 21). O excerto é emblemático da relação de Guerreiro com o cinema, e torna explícita a sua constante determinação em emendar certas ideias feitas e valorizar a emergência daquilo que, poucas páginas depois, baptizará como um “momento Cronenberg das artes” (p. 46). O realizador é, aliás, um dos mais convocados ao longo de Imagens Roubadas, e não estaria errado ler muitas das hipóteses avançadas no livro à luz da sua figura. É com base neste arcaboiço crítico que Guerreiro consegue defender com perspicácia obras por vezes vilipendiadas – veja-se, como exemplo paradigmático disso mesmo, os seus comentários sobre Psycho (1998) de Gus Van Sant no ensaio “Motéis, drive-ins e piscinas”.

Talvez o maior elogio que se possa fazer a este livro e ao seu autor seja dizer que, mesmo nos casos em que não estamos de acordo ou inteiramente seguros sobre alguma ideia apresentada, lê-lo é uma actividade que nos impele a questionar e a robustecer os nossos próprios juízos sobre os filmes discutidos. Se já não é isto que esperamos da crítica, é apenas prova de que estamos mal-habituados; mas livros como Imagens Roubadas ajudam a corrigir a situação. O mais interessante, contudo, é que aquilo que ao início poderia ser entendido apenas como o que Guerreiro pensa sobre o cinema transborda também para a sua escrita. A receptividade à coexistência de diferentes registos e tipos de arte ajuda, por exemplo, a explicar o seu ecletismo. Em “The Hollow Men”, usa-se o poema homónimo de T.S. Eliot para se falar de War of the Worlds (2005) de Steven Spielberg; e em “Poor Little Rich Girl (1965)”, são as ideias de Jean Epstein que esclarecem o filme de Andy Warhol. Nestes e em muitos outros ensaios, as relações sugeridas são arriscadas, mas funcionam sempre. O que importa sublinhar, no entanto, é que Guerreiro não escreve distanciado ou removido daquilo que fala, nem se limita a fazer considerações meramente estéticas sobre um domínio que conhece bem: está completamente imerso nesse domínio, e há uma consonância tal entre o que escreve e o seu ofício de viver que se torna claro, em Imagens Roubadas, que para o autor não seria concebível estabelecer uma separação entre o cinema e a vida.

O cinema não só dá a Guerreiro as ferramentas para descrever adequadamente o mundo como se confunde com ele; já não é só o que se passa quando se entra numa sala para ver um filme, mas o principal elemento regulador da nossa relação com a realidade. Esta harmonia entre um programa estético e um projecto de vida, evidente em muitos passos do livro, talvez encontre a sua melhor expressão em “A passagem dos fantasmas”: é aí que se refere um “real sempre engrandecido” (p. 101) pela presença dos espectros cinematográficos. A experiência do cinema não seria assim um evento isolado e delimitável, mas um acontecimento duradouro e com efeitos concretos sobre a sua existência. Para Fernando Guerreiro, e talvez para todas as pessoas que vêem no cinema parte necessária daquilo que são, roubar imagens parece ser um modo de existir.