Ménage

 

Naldinho tava só a estrela-do-mar no chão, todo arreganhado.

Afrouxaram o cinto dele num repente: tome abrir bermuda, folgar percatas, a zorba azul à mostra. A camisa pólo foi no bruto, rasgaram do cós à gola. Daí pra frente uma das mulheres, acima, posicionou as mãos nos peitos dele e danou-lhe conhecimento:

VUCO! VUCO!

VUCO! VUCO!

No movimento de sobe e desce, Naldinho era só um saco de estopa, dava nem um pio. O bucho branco, mole que nem geléia de mocotó, não se aguentava na pressão. A boyzinha logo que cansou as articulações cedeu espaço pra outra. Mesmo embalo:

VUCO! VUCO!

VUCO! VUCO!

Foi no último movimento que Naldinho abriu os olhos, tossiu na pressa de saber onde tava: o coração voltara a tilintar lá por dentro. O povo que acompanhava a ocorrência aplaudiu as socorristas.

Severino Figueiredo edita a revista literária Gorfo e escreve no blog tristemascurto.blogspot.com / Contato: osevfig@gmail.com

De açúcar

Salivar, diante da imagem, até não mais aguentar. E lambê-la. Toda. Dos impolutos pezinhos aos angélicos cabelos – incluindo a mimosa coroa. Lambê-la, até não mais poder. E mordê-la. Comê-la. Toda. Dos imaculados pés aos dourados cachinhos – incluindo o gracioso ornato da cabeça. Morder, com especial deleite, seus cândidos joelhinhos e as alvinhas e apetecíveis nádegas. 

É pecado, padre? É? Devorar, assim, uma santinha (tão bonitinha!) de alfenim? 

Como o rei que se perdeu

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Para a Penélope

Como Agamémnon, que sacrificara a filha para poder guerrear os troianos, Josué sacrificara a família para atingir o sucesso num país distante, mas esse sucesso, ainda não tangível, sabia a cascalho, a cacos de vidro às voltas na língua. Sucesso real, reconhecia agora, esventrado e perdido, espreitando um irrecuperável passado estampado em fotografias e memórias enegrecidas por comportamentos dignos de chimpanzé, de um primata a enxertar as paredes com murros, a partir pratos, molduras, portas, armários, a zurrar, minuto sim, minuto sim, a vomitar ódio e caos, era o terno sorriso da menina a puxar-lhe a manga da camisa para o sofá, a mulher a enlaçá-lo na cama e a cantar no chuveiro. Este era o sucesso que durante tantos anos o acompanhara e que, aos poucos, sem saber bem como, perdera, ou fora perdendo, visto que a mulher, mesmo que alterada e também consumida pelas suas próprias falhas, ainda o seguia. Ajoelhado na igreja, com a testa colada às mãos, a benzer-se sem parança, a repetir a ladainha apreendida na catequese, o pai nosso que estais…, mergulhava no passado, nos seus erros, imbecis erros, no que poderia ter feito melhor para ter actuado como alguém compassivo. Da igreja saltou para o balcão de um bar, local onde permaneceria semanas a fio esvaziando grades de cerveja, agarrado à possibilidade de perpetuamente anestesiar a mente, aplacar a dor, esse cruel torniquete que lhe ia estrangulando a sanidade e o afastava da família que tanto adorava mas que, devido à incapacidade de esquecer, de se perdoar a si e aos outros, fugia. A terapia por via do alcoolismo cedeu passagem ao sexo pago, ao estúpido esbanjar de dinheiro nas nádegas de uma Maria Francelina ou nos peitos de uma Marília, fêmeas medonhas que não rasuravam sentimentos fortes como a amargura e o nojo. Esgotadas várias técnicas curativas, despertou Josué uma manhã abalado por um turbulento pesadelo, o de ter perdido mesmo tudo, o de já não ter sequer a mulher e a filha a seu lado, e nesse momento várias partes do seu corpo explodiram, primeiro uma perna, depois um braço e uma orelha e, finalmente, após tanto e tão tristemente bater, o coração. Josué passou a existir como pessoa destituída de cara, de altura, de peso ou de beleza, para se tornar num tempo presente que olvidara o ódio e a raiva, que sacudira a mágoa para abraçar aquilo que de mais profundo a sua existência continha,  o amor.  A filha brincava com um comboio na carpete da sala, a mulher descascava cebolas, Josué, invisível, aproximava-se delas, acariciava-as, elas sentiam a sua presença, ele amava-as, mas não era o mesmo. 

 

 

O experimentador de meninas

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“Não entendes”, soprava Bósforo, amaciando a pança inchada, a digerir um tacho de ensopado de vitela. “Nunca entendes”, repisava, bêbedo de refogado, travando uma ameaça de vómito. “Qual destas peruas me entende?”, zurrava, eriçado, entre murros no balcão e arremessos de cuspe para o piso alcatifado. Meio morto a seu lado, também carregando a sua dose de ensopado, Bucéfalo, amigo de infância, espécie de aguadeiro ou conselheiro ou ouvidor, palitava os dentes, enviava gordurosas beijocas para a curvilínea bartender a torcer o nariz de nojo à distância, e acenava que sim, muitas vezes que sim, lamentava a falta de reconhecimento que mentes abrilhantadas por talento artístico, como a de Bósforo, a pessoa mais inteligente e mais tudo que conhecia, obtinham da sociedade. “Vivemos num país decadente”, doutorava Bósforo, instigado pela lembrança de ter espatifado meia década a escrever à máquina um livro de novecentas páginas, uma mastodôntica história de amor baseada em “factos verídicos”, envolvendo um tio padre de aldeia, uma beata viúva, lascívia e pecado. “Para quê escrever?”, gemia, suado, Bósforo, para quê escrever se as editoras não lhe respondiam (trinta cartas devoradas pelo desprezo), se as novas gerações, sorvidas pelo narcisismo, nem punham a pata em livrarias, se até o trabalho lhe cortava a vontade de escrever. Bucéfalo, cuja apatia era razão para a existência de um contínuo fio de saliva a escorrer-lhe da beiça, tremia das pernas ao pensar na profissão do amigo, não concebia que alguém, muito menos o amigalhaço, se queixasse do melhor trabalho do mundo, o de experimentador de meninas, e por essa razão arregaçou as mangas da camisa e esmagou ao soco os amendoins à sua frente espalhados e ladrou que não se cuspia no prato daquela maneira, que o ofício de provador de meninas era o grande sonho masculino, que todos os dias pedia a deus que lhe enviasse um primo, um cunhado, alguém que o contratasse para ir para a cama com as mulheres que se candidatavam para trabalhar em bares de alterne. “Troca comigo”, propôs Bucéfalo, proprietário de um cargo de professor de literatura numa escola pública, dono de uma página de crítica literária em prestigiado jornal. Bósforo já não obtinha prazer das mulheres, perdera o gosto à coisa. Depois de mil e muitas vaginas, esquecera-se do amor. O sexo, industrializado, esvaziara-lhe a alma, carecia de contacto humano, do carinho que galdéria alguma conhecia. Assistia a telenovelas para se emocionar. Berrou que aceitava trocar, tornar-se crítico literário e professor, abandonar o mulherio. Fez-se silêncio. As prostitutas da sala aguardavam resposta. “Não posso”, abafou Bucéfalo, fazendo contas ao seguro de saúde, ao empréstimo da casa, aos anos de serviço que lhe restavam para a reforma. “Igualmente”, ripostou Bósforo, outra vez apaixonado pela Marta, pela Rita, pela Maria, pela Madalena, fêmeas por ele provadas e contratadas. Bucéfalo coçava-se, não tocava em mulheres sabia-se lá desde quando, e então perguntou: “Se te elogiar o livro no jornal, permites que experimente aquela ali, a bartender?” Bósforo retorquiu: “Se permitir que experimentes a Vanessa, uma das minhas favoritas, consentes que escreva duas crónicas por ti no jornal, para saborear a fama?” Após cavalheiresco aperto de mão, seguiu-se amazónica bebedeira que lhes varreu da memória qualquer conversa ou acordo.

O admirador de Lobo Antunes

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Filipe Segundo de Loures, psicólogo sem formação académica, com consultório sediado na sua aldeia natal, junto ao chiqueiro dos porcos, criaturas que lhe haviam ensinado muito do que era preciso saber para o entendimento da psique humana, venerava de tal maneira António Lobo Antunes que, em determinado momento da sua abençoada existência, abancou no café da terra a copiar, linha por linha, o seu livro preferido, um pesadíssimo e complexo calhamaço que os seus conterrâneos confundiam com a Bíblia. Como sucede no conto de Borges, em que Pierre Menard rescreve partes de Dom Quixote, acabando por modernizar e até melhorar a obra de Cervantes, sem alterar uma única vírgula ao texto original, Filipe Segundo partiu para a aventura de copiar um livro com a vanguardista intenção de superar Lobo Antunes nas suas raríssimas limitações. Uma das primeiras frustrações com que o romancista-psicólogo se confrontou logo no início da empreitada foi a sua  própria pobreza lexical. Sentia-se em excesso o oitavo ano de escolaridade por concluir. Em vez de copiar palavras como “esdrúxulo”, como faria um progressista Menard, incluía palavras do seu próprio repertório, o que embaciava a pureza do texto original. Por exemplo, a dita palavra “esdrúxulo” convertia-se em “lambão” no manuscrito deste Lobo Antunes melhorado. O “derivado de”, tantas vezes posto por Lobo Antunes na boca das suas personagens, inspirou o encantador de porcos a substituir diversas dobradiças do texto por “derivado de”. Ao invés de se encontrar vocábulos como todavia, contudo, no entanto, etc., surgia o recorrente “derivado de”, como se a expressão pudesse ser usada como pontos finais. Segunda frustração, e talvez mais intensa do que a primeira, prendeu-se com o facto de Filipe Segundo de Loures não ter o hábito de ler. Captava porcamente o que lia. Tal como um inexperiente combatente de boxe, impreparado para resistir a dez assaltos contra um veterano pugilista, Filipe Segundo foi gradualmente perdendo o combate contra o calhamaço. Dez dias após ter começado a sua demanda pela regeneração literária nacional, saltava linhas, páginas, copiava o que lhe apetecia, dormitava no café, prolongava-se nas suas análises freudianas à populaça, inspirava-se mais nas suas prédicas aos porcos do que na escrita. Dois meses mais tarde, lembrava vagamente a ideia de copiar um livro de um autor que, em seu entender, fumava com estilo e dava entrevistas pejadas de mitos e auto-engrandecimento. Já não admirava Lobo Antunes. Muito, muito tempo depois, estava Filipe Segundo a fazer tratamento para a gripe, por via da ingestão de aguardente e chupadas de cigarro, quando recordou as razões pelas quais se imaginara a melhorar a obra do antigo ídolo. Aspirando a uma consagração mediática que o premiasse com uma loura russa tesuda que lhe consumisse toda a energia, só lhe permitindo abandonar a cama para comer, hidratar-se e mictar, Filipe Segundo de Loures acreditara que, reescrevendo a obra-prima de Lobo Antunes, sem lhe alterar qualquer palavrinha, teria não uma, nem duas, mas quiçá as russas que coubessem numa cama tamanho XL. Mas o talento desta periférica vedeta residia no tratamento mental dos vizinhos, na distribuição de conselhos matrimoniais, na aplicação de técnicas terapêuticas experimentais, como o degolar de galinhas para libertar a dor do paciente. Foi a Dona Ludmila, senhora viúva a padecer de solidão, que o salvaria das garras da literatura, beijando-o onde ele mais gostava.