Écfrase

 

                                 I

 

Andamos todos a falar da cadeira de Van Gogh
Das pernas carnudas das Três Graças
Das tetas da Madame de Pompadour
Do cantar mecânico de Klee
Do Banho Turco 

Andamos todos a falar do mesmo
em coro
repetindo até à exaustão
a nossa Original escolha 

Fazer o escudo   a urna    a luz
falar
exige muito mais que um mero
olho
mera boca
mera mão

 

                                   II

 

Queriam um longo poema sobre
a essência de uma cadeira ou
preferiam ouvir os macacos da
Frida Kahlo aqui e ali?
Não quero nada disso! 

Vivo em permanente turbulência e
usando tijolos duros rudes banais
acabados de sair da última fábrica
quentes e prestes a esfriar construo
o meu triste palácio de desventura  

Nas (des)montagens de Danh Vō
uso a massa de Frank Auerbach
as diagonais de Martin Barré
a mão de Philip Guston e a fibra
de vidro de Eva Hesse Pinto aqui
e alí com a trincha de Michael
Krebber e decoro o pátio com
 a Rosa Fixa de Isa Genzken 

Bem sei não disse nada
Apontei (é tão feio apontar)
obras que me ultrapassam
e sobre as quais nada sei dizer 

Eu quero viver no silêncio
dessa turbulência
nesses sismos interiores (só meus)
e passado décadas
dizer três linhas 

Seja o meu comentário ou
pequeno verso
ar fresco
na ala da repetição 

 

                                   III

 

Que a cadeira de palha
não seja um mero objeto
raspado em relance por uma retina
Quero-a ocupada
eternamente
pelo corpo vivo de quem a pintou 

Quero-a sob o seu corpo
de Homem Vivo
sentado em descanso do seu sofrimento 

Eternamente sentado sem nunca
conhecer a morte 

 

                              IV

 

Nunca tenho companhia
é metade de um título de um
quadro de Michael Krebber
dois leopardos
filhote e mãe 

Chovia naquela noite
cubos intensos de gelo
na escura tela da savana 

Regresso sempre aos leopardos
Leões e chitas sempre que
Não tenho companhia
para maravilhar-me
com paupérrimas pinceladas 

paupérrimas pinceladas
para paupérrimos poemas
feitos do mesmo mínimo gesto
arrastado em essência
Pequenos Torronis 

procuro apenas mover
milimetricamente
a roda

Jogar ténis com Caravaggio

Caravaggio_-_Sette_opere_di_Misericordia.jpg

Quem passear pelas salas do Museu Capodimonte em Nápoles não tem muito por onde escapar a uma cacofonia de arte sacra nas galerias principais. Alguma dela, há que reconhecê-lo, talvez não merecesse ter sobrevivido ao teste do tempo, quanto mais adornar as paredes de um museu. Antes de se entusiasmar demasiado com a possibilidade de um encontro com tesouros injustamente esquecidos, admita abertamente a possibilidade de que certas coisas foram e são esquecidas por boas razões. Este argumento continua a ser válido mesmo se acolhermos sem polémica um outro: de que há um valor histórico na arte, que alguns quadros desinteressantes testemunham pelo menos esse valor: a passagem do tempo que deu lugar a formas mais interessantes, a expressões mais desafiantes dos mesmos temas.

Tomados nos seus contextos, a presença destes quadros nestas salas é relevante para esclarecer o que em determinada época terá escapado às suas convenções, para nos deixar apreciar melhor a arte que excede o seu tempo. Acresce a isto que há pequenas jóias a serem descobertas no trabalho de poetas muito menores. Por exemplo, a beleza dos anjos que se abraçam nas Sete obras de Misericórdia de Caravaggio, o quadro monumental alojado desde sempre na igreja do Pio Monte della Misericordia, no quarteirão velho de Nápoles, a beleza desses anjos é muito mais evidente depois de oitenta pintores de sacristia martelarem em nós a culpa que o fiel deve sentir pelo sacrifício do Cristo em sucessivamente desinspiradas representações da crucificação, ou da descida da cruz, ou da positivamente anacrónica representação de respeitáveis cardeais metidos a martelo na cena da crucificação. As sete obras... é um dos três quartos da parte final da vida de Caravaggio, produzidos nesta venerável cidade depois de ele ter fugido de Roma por ter assassinado um homem (depois de uma altercação durante um jogo de ténis)[1].

O melhor que alguns quadros mais banais fazem por nós é darem-nos a noção de que todo o sentimento de apocalipse eminente de sucessivas gerações expostas a uma crise económica e política que se prolongou durante séculos acaba por trazer à superfície algo de bem mais valioso, algo que tem a sua expressão mais acabada em obras como este quadro de Caravaggio. 

Há um sentido do teatral que não se confunde em Caravaggio com um sentido do espectáculo, ou com o sublinhar repetitivo - sem possibilidade de equívocos - de uma mensagem monótona de implicações morais e rituais óbvias. Os fundos invariavelmente negros dos quadros de Caravaggio, o chiaroscuro que coloca as figuras humanas em relevo enfatiza expressões, movimentos, isola a beleza, a fealdade, o terror, ou a ternura de certos momentos. O modo como uma perna ou um braço é flectido devolve certeza, angústia, desconforto, dor, sensualidade, divertimento. Nas Sete Obras de Misericórdia dois anjos entrelaçam-se ao alto para sustentar a Virgem e o Menino, mas nós vemos apenas a sua queda eminente, a sua forma de precipitação que instaura o desequilíbrio, sublinha o caos em que actos de misericórdia afinal se desenrolam. Quase que não parece haver uma reconciliação possível entre tudo o que este quadro tenta representar. Uma unidade. O que é expressividade? O olhar sobre determinada coisa que pudesse corrigir uma falha? Emendar, ao comunicar-se, o golpe fundo e angustiante de uma queda a toda a velocidade em direcção ao nada? Nós hoje não chamaríamos a isso misericórdia, mas sabemos que a luz recairia ainda sobre as costas nuas da figura no canto inferior esquerdo, sobre a qual é lançado um manto. Não o que é a expressividade, então. Mas antes a expressividade das figuras neste quadro de Caravaggio encontra a falha no olhar do observador, o eco de qualquer coisa que fazia falta. Se a arte contém algo que salva é algo de temporário e intrinsecamente utilitário, é o que este quadro parece sugerir. A bondade enquanto conceito abstracto, enquanto alegoria, são afinal alguns gestos praticados continuamente.

O caos de Caravaggio depende do nosso silêncio. O que acontece entre o momento de olhar e entender é algo no mesmo comprimento de onda de lançar um fósforo à escuridão. Antes de este se extinguir, a profundidade do que acontece ilumina um continente, mas não dura, o mundo continua lá fora. Não dura mas fica connosco, estas linhas rabiscadas à pressa tentam afinal dar conta da vertigem dessa viagem. O que é ao certo isso? Uma imagem ficar muito tempo connosco? Acender-se inesperadamente muitos anos depois, noutro contexto, o seu rasto luminoso unindo um ponto no passado a outro no presente, dando-nos a ilusão, sem neutralidade nenhuma afinal, de que há alguma coerência para esta coisa que sou eu. Enquanto levantamos a cabeça, antes de sairmos de Pio Monte della Misericordia, lembramo-nos de uns versos de Geoffrey Hill que podiam acompanhar este quadro: Consensual angel spinning this word’s thread/ he descends/ and light-sensitive darkness/ follows him down (de Psalms of Assize).


[1] “Only certain details of the circumstances surrounding the bloody quarrel can be reconstructed from criminal records. It involved four opponents on both sides and appears to have erupted during a pallacorda match, a ball game not unlike tennis. But this simply turned into an occasion to settle outstanding scores... Not insignificant was the fact that the artist and his adversary had both wooed the courtesan Fillide Melandroni.” Sebastian Schutze, Caravaggio. The Complete Works. (Taschen, 2015, 166).