Autores convidados em Outubro

Entrevista a João Francisco

Por estes dias, a Galeria 111 em Lisboa apresenta ao público uma extraordinária exposição de Pintura, de um excelente pintor: João Francisco (1984 - ). Procurando dar a conhecer novos artistas, que praticam a pintura, a Enfermaria 6, resolveu convidar alguns artistas pintores a falarem da sua obra. O primeiro convidado é, precisamente, João Francisco. A entrevista foi realizada via mail:

 Vítor Teves - João, antes de falarmos dos seus últimos trabalhos, em exposição na Galeria 111, gostaria que nos falasse sobre a sua formação. A primeira pergunta, demasiado óbvia, é porquê a pintura e não outra expressão artística?

João Francisco - A minha licenciatura na faculdade de Belas-Artes de Lisboa tinha na altura a designação de “artes plásticas – Pintura”. O que mostra que a prática mais específica da pintura era entendida dentro de um campo mais vasto. De facto, durante os cinco anos do curso, não me cingi à prática da pintura (ela talvez até tenha sido o que menos pratiquei). Fiz essencialmente desenho, e também muitas experiências mais orientadas para a manipulação de objectos, esculturas e instalação. Embora tenha quase só exposto publicamente pintura e desenho, continuo a explorar outros meios que implicam a tridimensionalidade (e que estão para mim sempre presentes também na construção das “esculturas temporárias” que são os modelos para as pinturas e desenhos).

VT - De que forma a narrativa da morte da pintura influenciou ou influência a tua prática? Vemos que essa narrativa, hoje em dia, em 2018, já não faz sentido. Bem pelo contrário, há uma renovação da pintura, com novos contornos, a que a pintura do João é um bom exemplo. Pode-nos falar dessa experiência entanto pintor e observador de pintura, que julgo ser uma constante em todo o pintor?

JF - A narrativa sobre a “morte da pintura” é algo que acima de tudo me diverte. Tenho-a usado várias vezes como tema ou ponto de partida para pinturas e desenhos. A própria enunciação, “morte da pintura”, é tão pateta que se presta a essa exploração pictórica. Enquanto pintor, mas acima de tudo enquanto espectador de arte, essa narrativa parece-me completamente absurda. Assenta obviamente na tentativa de promover uma estética (derivada dos movimentos minimalista/conceptual) que a mim pouco me diz (desconfio que a muita gente também). Suspeito sempre do que, seja na arte na política ou na vida, ambiciona a ser “puro” e sobrepor-se ao resto (sabemos que quase sempre acaba mal). Pelo contrário, o que é particular, autêntico, e por isso corajoso, seduz-me muito mais facilmente. Terei que admitir que continua no entanto a ser difícil, no nosso pequeno e influenciável meio artístico, praticar pintura figurativa e com cor.

VT - Um dos aspetos muito interessantes na sua pintura é a ideia de “descoberta”/ “procura” do objeto, total ou parcial, associado à ideia de arqueologia. Não só no pintar do objeito em si, nos cacos de cerâmica, por exemplo, mas face à própria História da Pintura. Pode falar-nos sobre isso?

JF - As questões de “descobrir “ ou “procurar”, a que poderei acrescentar a de “encontrar”, são essenciais na minha prática. Muitas das peças têm a sua origem nesse descobrir e encontrar absolutamente casuais (que vão dos cacos “arqueológicos” que encontro ao fazer jardinagem, dos objectos que casualmente são trazidos pelo mar e deixados nas praias, aos objectos perdidos e encontrados na rua – ou recuperados junto a qualquer caixote do lixo -, nas coisas feias e indesejáveis que, depois de uma arrumação da casa, os amigos ou familiares me fazem chegar…). Esta poderá ser a primeira parte, a forma como as coisas vêm ter comigo. A outra será o que faço com elas, como as decido representar, o que desejo dizer através delas (como um encenador faz ao por em cena os actores e os adereços num cenário). Nesta segunda fase o que despoleta uma imagem é muito variável: a resposta a qualquer assunto real do mundo contemporâneo, comentários e evocações de obras de arte do passado, meras relações formais entre os objectos.  A arqueologia (uma paixão de infância, tendo eu até desejado vir a ser egiptólogo…) é realmente uma boa comparação com o meu método de trabalho na medida em que o seu objectivo é o de através dos objectos compreender ou evocar algo do âmbito do imaterial.

VT - Na sua exposição de 2009, na Galeria 111, no Porto, encontrei, como nunca em outra pintor, um vínculo marcadamente, digamos, Gustiniano. Mas que nos últimos trabalhos já não se encontra tão nitidamente, fruto do amadurecimento, julgo. O que lhe fascina em Guston?

Philip Guston é de facto uma inspiração. Por um lado pelas obras em si (todas as fases, mas principalmente o regresso à figuração na fase final), e por outro pelo exemplo que vejo na sua coragem e determinação em fazer o que sentia necessário (indo radicalmente contra o que o meio artístico de certa forma lhe exigia). O falar sem rodeios, e com uma enorme auto-ironia, da sua vida pessoal, dos seus vícios e preocupações, de uma sociedade em crise, da política e da guerra, é para mim uma verdadeira fascinação.

VT - Embora a sua pintura se afaste da de Guston, sobretudo nos últimos trabalhos, há, contudo, alguns aspetos que perduram: as “pirâmides” de diferentes objectos e o uso, aqui e alí, do rosa, tão caro a Guston.  Isto não é uma crítica, pelo contrário. O que o fascina tanto nos objetos e no rosa?

JF - O aspecto das pirâmides e amontoados de objectos  é de facto uma constante no meu trabalho. Não as vejo no entanto, mas percebo a relação que faz, como unicamente derivadas da pintura de Guston. Esses amontoados, para mim, têm uma origem talvez menos erudita: estão presentes nos destroços que dão à praia, nas montanhas infindáveis das lixeiras, nos objectos espoliados aos Judeus e agrupados por espécie em Auschwitz, nos ossos empilhados e criando arquitectura na capela de Évora. Os objectos fascinam-me porque contam histórias, porque podemos associar a eles o passado. Porque podem simbolizar ou metaforicamente substituir pessoas. Também porque são extremamente variados: naturais ou feitos pelo homem, com formas regulares ou expressivas, belos, feios, disformes.  O rosa não me fascina particularmente, nem tenho a noção de o usar mais frequentemente que outras cores. A cor que surge no meu trabalho é sempre a cor local dos objectos que estão a servir de modelo. Devo dizer que a selecção dos objectos nunca passa pela sua cor: eles são escolhidos pela forma, pelo “papel” que desempenham na composição em questão, e a sua cor é mera consequência disso.

VT - Nos trabalhos de 2009, se bem me lembro, havia evocações claras a Gauguin e Luc Tuymans. Foram meras citações ou há de alguma forma uma evocação propositada, já que Gauguin e Tuymans são dois pintores de fim de século que renovam a pintura?

JF - Não há uma evocação propositada na utilização das imagens de Gauguin ou Tuymans, sendo eles no entanto pintores que admiro e aprecio. Muito simplesmente são imagens que encontrei, que retirei de publicações, e que encaro como objectos com a mesma importância que qualquer outra coisa que tenha no estúdio e decida representar. Sim, elas são representações de pinturas que alguns espectadores reconhecerão, o que me interessa, mas são principalmente mais um elemento dentro de uma composição mais vasta.

VT - A sua pintura, é em certa medida, a do “preenchimento total”, não só pelo uso acumulativo de objetos, de diferentes proveniências, mas também a do preenchimento “all-over” do espaço pintural, estou a pensar, sobretudo, nas pinturas sobre pequenos pedaços de cerâmica. O que acho extraordinário. Quer falar desses trabalhos e porquê esse excesso, quer de objetos, que no preencher da folha?

JF - É uma pergunta interessante e à qual não sei se tenho uma resposta. Existe de facto esse aspecto acumulativo e excessivo, e normalmente uma ocupação total do plano pictórico, na maioria dos meus trabalhos. Talvez tenha a ver com a minha forma de ver as coisas no espaço: como pesadas, pousadas num plano, com sombras, com relações entre si. Talvez seja isso, o que me interessa é a relação das coisas entre si, e não a sua individualidade. Daí não existir normalmente algo que seja o foco da imagem, sendo o resto mero adereço, mas sim um tratamento por igual de todos os elementos.

VT - A sua pintura e o seu desenho são marcados pelo uso vincado da sombra. E creio que, pelo que vejo no Instagram, é um pintor que pinta muitas vezes no escuro ou a altas horas do dia. É uma estratégia ou mera contingência?

JF - A representação da sombra é essencial na minha pintura. Ela dá volume ao que é representado e demonstra a sua realidade, o seu posicionamento no espaço. Em composições mais complicadas, com mais objectos, é essencial procurar alguma clareza para não haver dúvidas acerca do que se está a ver. Daí a utilização de uma única fonte de luz, artificial, e o trabalhar à noite: só assim é possível manter as sombras próprias e projectadas imutáveis

VT - Nos trabalhos, agora em exposição na Galeria 111, as flores ganham um relevo extraordinário. Essa tapeçaria de flores que evoca as tapeçarias medievais, a mille fleurs, é um trabalho épico. Pode falar sobre esse trabalho em particular? Como surgiu a ideia, quanto tempo demorou, constitui apenas uma peça ou é um mera solução expositiva?

 JF - A peça mille-fleurs parte das tapeçarias tardo-medievais/ renascentistas com o mesmo nome. Embora nunca tenha realmente visto nenhum exemplar extraordinário ao vivo, conheço imagens de muitas e fascinam-me por vários motivos. Antes de mais pelo aspecto técnico da sua realização, com o que implicou de tempo e trabalho minucioso, pela interpretação que constituem de uma outra pintura (o cartão). Também porque têm como tema um assunto que me ocupa diariamente: o jardim e as plantas. Acho que vi nesta peça a possibilidade e o pretexto para juntar estes dois aspectos importantes do meu dia-a-dia: a pintura e a jardinagem. Propus-me a fazer então um painel que ao representar as plantas cultivadas no jardim, ou recolhidas no campo em torno dele, pudesse também evocar esses jardins míticos que são o cenário das tapeçarias, aqui libertos dos seus actores e existindo por si. Seria também uma forma de falar na passagem do tempo (implicado nas diferentes épocas em que cada flor ou planta atinge o seu auge). Foram também surgindo pequenos animais, encontrados mortos, que encontraram o seu lugar junto das plantas (à imagem do que também acontece nas tapeçarias, sendo no entanto aí representados vivos). As 160 pinturas que constituem a peça foram realizadas entre Janeiro e o início de Setembro. Encontrei na escolha dos dois formatos das pinturas a forma de fazer as diferentes imagens desencontrarem-se, misturando-as, o que não aconteceria se todas as folhas fossem do mesmo tamanho. Este aspecto encadeado acontece também nas tapeçarias mille-fleurs.  O conjunto das 160 pinturas funciona como uma única peça e foi assim pensado desde início: ao isolar ou desmembrar parte das imagens, o efeito de conjunto, de colecção, de acumulação, seria perdido.

VT - Nesta exposição optou por evitar as tradicionais telas. São, na sua maioria, trabalhos sobre Papel. Querer falar sobre os seus suportes e técnica usada?

JF - Os trabalhos são todos sobre papel e a tinta acrílica. É a primeira vez que uso a cor com este material (até então apenas tinha realizado pinturas a acrílico com branco e preto, com um resultado próximo das grisailles). Este material, diferente do óleo, permitiu-me trabalhar de uma forma nova, sobrepondo repetidamente desenho e pintura, camadas opacas ou transparentes. Parte das peças da exposição (a série mille-fleurs) é realizada sobre um suporte específico: tendo-me sido dado um conjunto vasto de antigos desenhos sobre papel esquisso (mapas com desenhos de bordados para roupa de mesa e cama) decidi usá-los, colando-os sobre folhas e fazendo a minha pintura sobre eles. Parte destes desenhos é no fim visível entre os elementos pintados por mim.

VT - É um pintor em constante contacto com a natureza, pode-nos falar sobre isso. Sobre o seu quotidiano com as flores, animais e paisagens?

A natureza é parte constante do meu quotidiano. Sempre vivi no campo, e também não estou muito longe da praia, do mar. As plantas e os animais fazem parte do dia-a-dia, embora o meu envolvimento mais empenhado no jardim seja algo mais recente, talvez dos últimos 10 anos. Tem sido um fascínio aprender e descobrir com as plantas, e também perceber até que ponto a natureza é generosa, tem o seu tempo, e acima de tudo tem sempre razão.

 VT - Para terminar, visto que a maioria dos leitores da enfermaria 6 se interessa sobretudo por poesia, tem algum poeta preferido? Do que lê, que autores gosta ou o inspiram na sua pintura?

JF - Confesso que poesia não é a área que mais tenha explorado, o que é certamente uma lacuna a corrigir. Penso que o poeta que mais tenha lido seja a Sophia, que verdadeiramente aprecio. Uma descoberta recente tem sido Emily Dickinson. Fora da poesia, no “em busca do tempo perdido” de Proust, e em Virginia Woolf,  tenho encontrado verdadeiras afinidades.

João Francisco - "Mille-fleurs", 2018 (foto:Galeria 111)

João Francisco - “Mille-Fleurs”, 2018. [Foto: Galeria 111]

Histórias de Roma de Enric González

9789896712143-es-300.jpg

Para o João Coles, meio italiano e agora londrino, que quando o ler vai gostar deste livro

 A colecção de livros de viagem da Tinta da China é uma espécie de tesouro nacional. Como boa parte dos tesouros nacionais, não é tão bem-amada como merece. A história da génese da literatura de viagens enquanto género é divertida, as suas raízes talvez sejam tão antigas como a Odisseia, muitos e veneráveis autores a praticaram (tanto o atesta esta colecção da Tinta da China). Os livros de viagem frequentemente existem na fronteira com outros géneros, guias históricos, culturais, viagens como metáfora de mudanças abruptas, percursos espirituais de auto-descoberta. Enric González não será o primeiro nome que nos passa pela cabeça quando pensamos nos cultores deste género, mas Histórias de Roma foi publicado pela Tinta da China em Maio de 2014, e sucede a Histórias de Londres, do mesmo autor. Qualquer coisa que virem com o nome de Enric González, confiem em mim e leiam-na por favor. Quem é Enric González? Um jornalista do El País que desempenhou funções de correspondente em Londres, Paris, Washington, Roma, entre outros países e trabalhou como jornalista em cenários de guerra tão violentos como o Golfo ou o Ruanda e algures entre uma coisa e outra desenvolveu o hábito de escrever sobre as cidades em que ia vivendo.
Histórias de Roma é um livro breve que contém algumas das frases mais belas alguma vez escritas sobre uma cidade e uma das melhores paródias de discursos políticos de que tenho memória (uma manta de retalhos com frases de discursos de Berlusconi, ver abaixo). Enric González escreve numa prosa leve, ágil, inteligente, urbana, ou seja, o tipo de prosa que nos dá vontade de convidar o autor para beber uma cerveja (embora a palavra cerveja tenha ficado um pouco danificada para mim depois da audiência de Brett Kavanaugh perante o senado norte-americano).
O livro move-se de histórias sobre a Roma antiga, vinhetas sobre vidas de santos, a experiência faraónica de viver num palácio, os rituais que envolvem a morte de um papa, até às descrições de melancólicos nobres romanos (melancólicos mas às vezes capazes de homicídio), passando pelo amor que se pode ter a uma arte tão ambivalente como o género de comédia praticado por Alberto Sordi. Ao mesmo tempo, é um breve livro que nos recorda da alegria de pormenores triviais que são parte da nossa vida de todos os dias: conhecer na cidade onde vivemos o melhor sítio para beber café, a alegria de ler um jornal escrito em boa prosa, a vida de certos bairros a certas horas do dia. Poucos livros que tenho lido estão escritos numa prosa tão elegante, o que sugere talvez que mais do que haver boa prosa jornalística ou boa prosa ensaística, existe boa prosa e pronto, sem esquecer também o trabalho de uma tradutora talentosa, Rita Almeida Simões. Há momentos profundamente comoventes neste livro, e isso é tanto mais tocante quando pensamos que Enric González está apenas a tentar descrever a vida, ao nível da rua, de uma cidade caótica, antiga e cheia de vida. No rescaldo do dia em que o Brasil deixou um candidato a ditador a um passo do poder, deixo-vos aqui um excerto de uma brincadeira de Enric González que se pode encontrar em Histórias de Roma, um monólogo construído exclusivamente com frases proferidas por Berlusconi:

Quero começar por saudar os participantes nesta Conferência contra a Fome, e muito especialmente as bonitas delegadas. Sou o ungido do Senhor. Carrego a cruz embora não me agrade fazê-lo. E todos os anos faço um retiro espiritual, nas Bermudas... Como é evidente, sou eticamente superior a qualquer outro político europeu. Estou em contacto permanente com a Divindade. Escrevi as tábuas da lei, como Napoleão ou Justiniano... Sou o único italiano que escreve sambas em napolitano... Sabiam que Margaret Thatcher me disse que podíamos ter feito uma grande dupla?

Camões aborrecido a um canto

“o lado rufia, o lado da moda”

                                João Cutileiro

 

“[…] porque na vida/ ninguém

alcança/ a glória merecida”

                                   Camões  

                                                                                         

Prometeram-me uma festa de arromba,

mas tudo o que vim encontrar foi esta

sala com três gatos pingados e uma

música de carrinhos de choque que não

lembra nem ao menino Jesus! Dou-me

demais aos outros e aqui estou, como

uma estátua de Tatlin, segurando esse

que não é o meu canto. Só me resta

cruzar os braços e esperar, esperar,

esperar, como qualquer bom português,

pela hora ou pelo tempo que nunca

há de chegar. E se chegar, virá tarde!

hhhhh.jpg

João Cutileiro - “Camões”