décima primeira festa do chopp de são bernardo do campo

       Não, o tempo não chegou de completa justiça.

                                                                                                 O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

                                 O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.

Carlos Drummond de Andrade


escrevo sentada numa cadeira dura

escrevo para não estar aqui

os gatos desfiam meu vestido

tenho pimenta e sal nos olhos

a mesa

onde o computador

alguns livros remédios meu dedal da sorte

e

uma caneca da décima primeira

festa do chopp de são bernardo com

uma régua canetas e um pincel

tenho aqui duas gavetas pequenas

na primeira guardo receitas médicas

mais remédios umas moedas grampos de

cabelo e um calendário

russo que carolina me deu

na segunda gaveta guardo nada

tenho gelo e agulhas nos olhos

escrevo para não estar no tempo do meu país

não fui à festa do choop porque

no mesmo ano

numa maternidade bem próxima dali

alguém resolveu que

para a minha vez no mundo

mamãe seria um corte

escrevo sentada numa cadeira assombrada

assombrada pela

décima primeira festa do choop no país das marionetes


Não-lugares?

non.lieux 9_Montparnasse.jpg

Em 1992, Marc Augé publicou na editora Seuil um livro importante de início de século (apesar da data): Non-lieux. Introduction à une anthropologie de la surmodernité (editado em Portugal pela 90 Graus e, depois, pela Letra Livre, com tradução de Serras Pereira; no Brasil a edição é da Papirus, e, pelo que sei, vai na 9.ª). Nele refere que vivemos num triplo excesso: tempo sobrecarregado de acontecimentos, um espaço volátil devido a fortes circulações e deslocalizações e, em relativa contradição, uma concentração sobre o eu-sujeito, uma espécie de egomania. Isto designa a sobremodernidade, assente no tríptico tempo, espaço e sujeito.

Em relação ao espaço, pensado do ponto de vista antropológico, isto é, como factor importante na constituição do ser humano, disse naquele livro que “se um lugar pode definir-se como identitário, relacional e histórico, um espaço que não se pode definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico, então será um não-lugar.” Ora, que não-lugares são estes? Meios de transporte, cadeias hoteleiras, hipermercados, estações de serviço das auto-estradas, aeroportos, ou, ainda, campos de refugiados. Estes espaços constituem não-lugares porque não são apropriados pelos humanos, não são habitados, mantendo-se cada indivíduo anónimo e solitário, abandonado. Há apenas frequentadores ou passageiros, desalojados ou refugiados, consumidores ou utentes, são espaços, nas palavras do autor, somente de “circulação, de consumo e de comunicação”.

À partida, parece lógico que a arte mais interventiva (engagé) tome os não-lugares como irrelevantes, se são anódinos para o desenho do humano, então os artistas devem antes procurar exprimir e reflectir os lugares (relacionais, habitáveis, significativos, referenciais...), neste mundo “saturado de imagens e mensagens”. Mas não é isto que Marc Augé diz num texto de 2010, Retour sur les “non-lieux?”. Les transformations du paysage Urbain.

A arte, escreve, sempre teve dificuldade em distanciar-se da sociedade que deve, no entanto, exprimir e reflectir, ainda por cima em termos que sejam razoavelmente compreensíveis para os espectadores (veja-se a catástrofe do experimentalismo ou esoterismo artístico contemporâneo, causa, embora não única, de um neo-elitismo e do folclore consumista). Ora, os não-lugares são cada vez mais... lugares, ou seja, aquilo que parecia a Augé – de um ponto de vista antropológico bastante tradicional, diga-se – irrelevante para o desenho do humano, foi ficando cada vez mais relevante. Os não-lugares que dominam o “nosso novo mundo”, aeroportos, estações, viadutos, hipermercados, centros comerciais... são cada vez mais pensados por arquitectos como “espaços comuns susceptíveis de fazer pressentir aos utilizadores, enquanto utentes, transeuntes ou clientes, que nem o tempo nem a beleza estão ausentes da sua história.” São, como refere, “fragmentos de utopia”, capazes de superar, mais mal do que bem, creio, a angústia global que nos assalta pela degradação social e ambiental que parece ter-se alojado na realidade empírica e, sobretudo, no lado pessimista da mente, que vê o progresso, nas palavras de Steinbeck, como uma “progressão para o estrangulamento”.

Ora, quer porque a intervenção da arquitectura redesenhou os não-lugares, pelo menos os mais recentes, quer porque eles fazem já consolidadamente parte da vida quotidiana (facilmente se está durante anos 2 horas numa auto-estrada por dia, ou se passa várias horas por mês num aeroporto, ou se passeia assiduamente nos centros comerciais...), as artes devem começar a olhar com mais cuidado para eles. Exprimi-los e reflecti-los será uma forma de, no final, compreender melhor o ser mutante que é o humano. Acrescento a isto o peso que a cibercultura (esse novo grande “regime de trocas simbólicas”, como refere Manuel Frias Martins) tem na sobremodernidade. Nos últimos 20 anos, tornamo-nos outra espécie, e a arte, completando a ciência, tem de a compreender e reflectir, isto é, de mostrar, à sua maneira (que é sempre múltipla e surpreendente), no que se transformou o ser humano.

Carta póstuma

Lídia,

 

   de todas as perguntas que me fizeste, nunca me perguntaste se eras feliz. Estranhei-o a primeira vez em que fizemos amor – e não porque o quarto fosse demasiado pequeno, a luz demasiado pálida, eu demasiado gordo ou tu demasiado jovem. Talvez me digas que estavas com vergonha de mim, mas hoje sei que não foi essa a razão. Na última carta perguntavas-me porque nunca mais nos deixámos, mesmo quando foste para Boston e nunca mais voltaste, mesmo quando compraste aquele horrível Mercedes, dois homens e quatro filhos. Hoje sei porquê: foi porque nunca me perguntaste se eras feliz. Naquele dia – lembras-te?, tenho a certeza de que sim – tínhamos ambos bebido de menos. Apenas uma tímida cerveja a meias, naquela tasca demasiado limpa, a cheirar a plástico e a luz fluorescente. O empregado perguntou-nos de onde éramos. Dissemos a verdade: éramos dali. Falta de imaginação. Culpo aqueles guardanapos que se usavam na altura, um papel ríspido que agredia mais do que limpava. Ficava a sujidade nos lábios. A tua carta pôs-me a pensar nesse dia. Já andávamos aos beijos há algum tempo, e eu dizia-te que podia esperar, que não tinha pressa. Que besta. Tinha quase cento e quarenta quilos, mais dez anos que tu, um chapéu de quadrados e um perfume insuportável. Tu estavas na tua fase gótica, metro e meio – nunca mais cresceste – e tacão de três metros. Peroravas o fim do mundo, os masturbadores de autocarro, as porradas do pai, os toques do tio, as bebedeiras da mãe. Mas eu queria levar-te para a cama e teria ouvido qualquer coisa. Aquele café tinha uma fachada toda em vidro, e recordo-me que um cão velho e doente parou mesmo à frente e pôs-se a cagar, com aquele ar condoído e idiota que só os cães têm quando estão naqueles preparos. Lembro-me porque estava a olhar para ele quando disseste que me amavas. Não me perguntaste se eras feliz, não, tinhas de dizer que me amavas. Olhei para ti perplexo. Sorri e disse-te “amo-te”, por instinto, como quando nos batem no joelho e a perna se mexe sozinha, e enquanto o dono do cão recolhia num saco de plástico o cagalhão – uma novidade, na altura. Pouco depois estávamos naquele minúsculo apartamento cheio de bolor e tinta velha, a fazer amor pela primeira vez. “Amo-te”, disse-te eu, de novo, para me castigar. Nunca senti nada disso – como tu bem sabes – nem hoje, apesar de nunca te ter deixado, e apesar das poucas mulheres com quem estive. Sempre fui gordo demais e famoso de menos. Agora estou velho, flácido, ridículo, e já não tenho paciência. Desculpa-me escrever-te desta forma, mas a tua última carta irritou-me. Dizes que não estás feliz. Balelas. Que tens saudades daqueles tempos. Tretas. Mas exactamente do quê é que tens saudades? De mim? Daquele café nojento? Das vezes em que o fizemos? Do meu coiso pequeno? De nunca te vires? De dizer que te amo? Das paredes mal pintadas? Do cheiro a roupa húmida? Não sejas mentirosa. Não tens saudades de nada disso. Se tivesses saudades seria de não te pesarem os anos, de não os teres vivido, de não teres comido, fornicado, trabalhado, cantado, conduzido, parido estes anos todos. Mas nem sequer é disso que tens saudades. Eu sei do que é. Há uma razão pela qual nunca me perguntaste se eras feliz. Tinhas medo que eu te dissesse “não sei”. Talvez fosse isso o que te responderia. E os teus saltinhos anarquistas, o teu peso funerário de vão de escada, o teu esgar filosófico perante a inevitabilidade da morte ruiriam. Querias um retumbante “não”. Categórico, curto, eficaz. Não querias que eu te tirasse a virgindade e a seguir sugerisse que talvez não fosses tão infeliz como pensavas. Foi por isso que nunca me perguntaste se eras feliz. Mas olha, vê bem, é desse susto que sentes falta. É desse limbo que tens saudades. É dessa angústia. Foi por isso que nunca nos deixámos. Portanto, meu amor, não me lixes. Esses prédios sujos, esses homens, esses filhos ranhosos e incompetentes, essa tua gente condenada ao lixo e barricada em Mercedes, nada disso te faz infeliz. Porra. Finalmente ficas a saber. Admite. Tens dentro de ti uma centelha estupidamente feliz. Não és como eu. Desculpa, mas não és perfeitamente infeliz como eu. E bem sabes que sempre fui um lamechas, especialmente depois de deitar abaixo uma garrafa de Tequilla. Portanto, aqui vai: de facto, tu, tu merecias melhor. Merecias que o teu primeiro homem, o que sempre ficou, te considerasse profundamente infeliz. Desculpa-me. Mas não és. Nem por sombras. Nem por sombras, meu anjinho.

 

Com amor,

 

---

José Aníbal Campos e o teatro aberto das suas collages

José Aníbal Campos, tradutor do alemão para o espanhol, autor de uma miríade de colagens que o público virá um dia a melhor descobrir, concedeu a um dos nossos editores, o João Coles, uma entrevista sobre este ofício paralelo que mantem com a tradução, o das colagens, e de como ambos se influenciam. Ei-lo aqui na Enfermaria 6. Obrigado, Aníbal.

- Para quem não te conhece, Aníbal, de que maneira surgem as colagens como actividade paralela à tradução? Dirias que o teu ofício como tradutor é fundamental para os teus trabalhos gráficos?

En realidad, mi oficio de traductor literario tiene una influencia en mis collages, pero a la inversa, en un sentido negativo: cuando traduces literatura estás, digamos, cautivo entre los moldes del texto original con el que trabajas. El margen de libertad del traductor es muy reducido. Se requiere de un impulso creativo, pero controlado, siempre al servicio del original. En el collage ocurre exactamente lo opuesto: no hay un original concreto. Lo que existe es una nebulosa de ideas que van cobrando forma de manera azarosa, en un proceso que saca incluso provecho del error: una mala decisión al pegar un elemento puede dar un giro diametral a la vaga idea que rondaba por tu cabeza y descubrir en el papel un universo nuevo, o una textura inesperada, o una composición imprevista. Resumiendo: el collage es para mí como una terapia liberadora de la concentración que requiere mi trabajo con textos de bordes fijados por el original. Es como adentrarse en un campo abierto en el que caben todas las posibilidades y rumbos.

- Louis Aragon, um devoto da colagem, defende num ensaio que o processo criativo das colagens não diverge em nada daquele do cinema ou da literatura, que estes ressoam citação atrás de citação. No final diz: “a diferença não é outra que não de vocabulário: colagem, citação ou letreiro...à vossa escolha.” Concordas? Que relação dirias que têm as tuas collages com a ficção?

Estoy de acuerdo en parte. Podría decirse que todo producto del intelecto es, bien visto, collage. Nuestra mente es un bullicio de ideas contradictorias, y lo que luego recibe un orden en la página, el lienzo, la partitura o la cinta de celuloide es, observado al microscopio, un conjunto de retazos de citas y materiales distintos, como en un patchwork. Pero no creo que la mayoría de los creadores aspiren a eso. Quizá un tipo de cine surrealista sí. Seguramente. O en el caso de los experimentos literarios de los surrealistas, el cadáver exquisito, por ejemplo. Puedo suscribir la opinión de Aragón, en mi caso, en lo relativo al ensayo especulativo. Me fascina, por ejemplo, escribir un tipo de ensayo asociativo que se sirve de la técnica del mockumentary o documental falso. Mi forma de acercamiento a la cultura se refleja en el tipo de ensayos que escribo y también en estos collages. No sé: vivimos en una época saturada de palabras, conceptos, teorías, técnicas e imágenes, pero, a la vez, estamos más desinformados que nunca. El llamado fake news es un resultado directo, también, de esa saturación, y tal parece que la genuina capacidad de imaginar haya quedado derogada por esa sobreabundancia. (Sucede, por ejemplo, con el cálculo mental y la saturación de calculadoras electrónicas. En unos años no quedará nadie que sepa hacer cálculos mentales rápidos o ni siquiera usar los dedos para contar hasta diez.) A mi juicio, el ensayo especulativo, al estilo del mockumentary, me mantiene viva cierta capacidad imaginativa alejada del supuesto dato fidedigno. En cierto modo —así me gusta creerlo—me restituye al menos un atisbo de lo genuino, declarando de antemano que lo que te cuenta o sobre lo que reflexiona no se corresponde con datos reales. Ese es el principio de la ficción regeneradora de la parálisis que provoca la saturación de «realismo» o de una supuesta «objetividad» de la imagen, por ejemplo, que sabemos falsa, maleable, como lo es la palabra institucionalizada (en academias, prensa, organismos políticos o corporaciones económicas).

- Vejo muita ironia nas tuas collages: um presente desorientado, farpas ao politicamente correcto e às modas-fatiota ideológicas, entre brincadeiras e chistes do dia-a-dia - um grande teatro com uma máscara a esboçar um sorriso sardónico. E sempre com muito humor. Pareço ver na plateia um pequeno Gregor von Rezzori a apreciar o teu espectáculo.

Yo no sabría siquiera vivir sin la ironía. La necesito como el aire. Es uno de mis raseros valorativos fundamentales en el disfrute del arte y un imperativo vital. En ese sentido, Rezzori ha sido un descubrimiento muy importante para mí: ante todo, porque toda su obra es una burla amarga y sarcástica contra un arte, precisamente, que ha ido volviéndose cada vez más inauténtico e inesencial. Hay un tipo de poeta (existe en España, por ejemplo, una asfixiante superpoblación de poetas pésimos) al que yo llamo «poeta suspirante». Más que escribir desde sus entrañas, estos poetas, en su mayoría filólogos, escriben desde la «pose del poeta» que conocen por sus lecturas, muchos visten «como poetas», se expresan y comportan en público «como poetas», whatever that fucking means. Ello abre un abismo tan vertiginoso entre su escritura y la esencia misma de la literatura (que es ofrecer alternativas a la realidad), que ya no interesan a nadie, salvo a dos o tres amigos. En Rezzori se unen la vasta cultura y la mirada escéptica, y ello da lugar a una honestidad intelectual (aun contra sí mismo) que muy pocos han sabido ver. De ahí el estremecimiento (y la carcajada) que provoca su obra, en especial la más moderna. A mí Rezzori—lo digo sin tapujos—me devolvió la fe en la literatura como mecanismo de-constructor de toda pose en la creación artística, en las búsqueda del elemento auténtico en ese cándido instinto creador del ser humano y su imperiosa y lastimosa necesidad de poner orden en el caos que somos. Para mí llegó un momento en que, de tanto ver y manejar la inauténtica copia de la copia de la copia (como las de esos poetas descorazonadoramente epigonales de los que hablaba antes, que tal vez fueran más útiles trabajando de carteros, taxistas, agricultores o de amables camareros), dejé de percibir la literatura y su valor irrenunciable. El encuentro con la obra de Rezzori me re-conectó con una tradición y me abrió los ojos para todo lo inauténtico. Eso creo al menos. Yo espero que mis collages espoleen o inciten esa capacidad para imaginar, que ayuden a recuperar una vía de acceso menos teleológica (más caótica, fractal y desordenada) al disfrute de los productos del arte. Y si le arrancan una sonrisa sarcástica a algún espectador, mejor que mejor.

- O que dirias a um jovem tonto que te entrevistasse e te perguntasse se os leitores podem ver o teu trabalho gráfico como uma espécie de Decameron em collages? E em que dimensão?

Pues yo parto de un principio vital: la única pregunta tonta es la que no se formula cuando uno tiene dudas. No sé hasta qué punto los collages puedan ponerse en relación con esa joya literaria que es el Decamerón. Pero hay una esencia del Decamerón que, lejanamente quizá, sí tiene que ver: el Decamerón es el resultado de la huida de la peste florentina. Un grupo de hombres y mujeres se retiran a una villa campestre a contarse historias que, en su mayoría, tienen que ver con los apetitos del hombre real, del ser humano tal cual es. Ante el panorama desolador que tenemos hoy, mis collages, al menos para mí, son también una retirada de la «peste» de nuestros días: nuestra galopante decadencia cultural, la agonía de la capacidad de imaginar por una saturación neuronal de «realismo». Es una retirada en solitario que huye de ese momento gregario del que todos, de algún modo, formamos parte activa.

- Por fim, Aníbal, o que tens a dizer-nos desta selecção que reuniste para a Enfermaria 6?

Es una selección echa a bote pronto a partir de las series que más me gustan. No me atrevería a arriesgar definiciones o intenciones para ellas, pero puedo hablar de los títulos y de lo que vagamente las inspira: una de ellas, la serie «HausHalt», lleva cierta ironía en su propio título, ya que Haus-Halt podría significar «presupuesto», «vida doméstica» o «sostén de la casa», y en cierto modo todas giran en torno al enmarañado asunto de la convivencia con los demás. Luego, las de la serie sobre cartulina negra, están algo más específicamente ligadas a la relaciones «Hombre-Mujer». «Eroticonos» reúne sátiras contra cierto fariseísimo sexual, pues creo que nuestra época, también por una saturación del lenguaje (visual y verbal) supuestamente emancipado, ha involucionado hacia una mojigatería y un conservadurismo aterradores. Y finalmente he seleccionado algunas páginas de mi «Cuaderno Ror Wolf», ya que mis collages surgen de un hábito muy privado, que es llevar cuadernos sobre temas específicos que me ocupan y en los que cabe todo: reflexiones, recortes, citas. Es mi modo de, a partir de un caos de ideas sobre un tema, poner orden en mis pensamientos cuando me dispongo a escribir sobre ello. Son mis pequeños intentos (casi arqueológicos) de reunir y preservar los detritos de mis privados big-bangs.

Camões vende legumes na praça

as.jpg

“Must I write? Dig deep into yourself for a true answer.”

Rilke, Letters to a Young Poet

Pensar em escrever, desejar escrever, sonhar com escrever, palrar na esplanada sobre escrever, nada disso é escrever. 

“Deixa esmagar o cigarro e já componho a versão melhorada da Montanha Mágica. Mais uma cigarrada. Lá para a primavera. Aguardem-me.”

Escrever ocorre no presente, agora. O verbo implica acção, furiosa, intensa e imediata actividade. Tinta no papel. Rugas a mirrar os olhos. Folhas rasgadas, espalhadas pelas mesas, pelo chão. A escrita, como os humanos, como o mundo, é imperfeita. 

“Logo agora que comprei caderno forrado a pele de crocodilo, trinta euros investidos, vou conspurcá-lo-lo com frases da minha autoria, ai Cervantes…”.

Quando não está a escrever, ocorre ao escritor pensar que viver é outra coisa, que passou ao lado do destino. 

“Os meus conhecidos são todos estrelas de cinema e eu ando na mercearia a gastar dinheiro em pão.”

Em vez de escrever, Camões vai vender legumes na praça.

Os amigos peroram acerca de tópicos fundamentais para o futuro da ciência e do universo, mas o escritor, engolido pela própria voz, cerzindo diálogos interiores, ignora o que não inclua falhar, falhar com estrondo na página. Falta-lhe aquele agir, aquele gesto de deslizar a caneta entre os dedos, de cofiar o queixo à conta de frase desprovida de ritmo, de bater com a ponta dos dedos no teclado do computador, de levar a caneca do café aos lábios, até no estômago não caber mais café, aquela forma de viver que para o comum mortal é uma espécie de morte. Afinal, é para poucos, isto de o sujeito somente se sentir bem virado para uma parede branca, buscando cinzelar com toque artístico as palavras, matando o tempo naquele vazio, perdendo horas para arrancar ao tédio o vocábulo preciso.

“Um soldado perdeu o isqueiro que lhe fora oferecido pelo pai e degolou três companheiros com uma faca de mato. Esta é a história que me preparava para escrever quando o telefone tocou, quando o carteiro me bateu à porta, quando chegou a hora de jantar, de ir para a cama.”

 Escrever sem razão, por prazer ou vício, devido a uma inadequação a situações que requerem executar tarefas que excluem a escrita. Entre o escrever e o estar vivo intrometem-se infindos trabalhos secundários, escritor, professor, canalizador, calceteiro, camionista, trabalhos padrastos que forçam o escriba a privar-se de si próprio, a ser quem não é durante muitas horas. Escrever, sim, mas antes disso vem a sobrevivência, o cheque para a mercearia, para os lençóis lavados, para a água do banho. 

“Kafka trabalhou num escritório. Herberto Helder descascou batatas em França.”