vesúvio

“Todas as fotografias são memento mori.”
Susan Sontag, in «Ensaios sobre fotografia».

depois de te ires
quis fotografar tudo
o nascer do porto oriental
as manchas roxas
no flanco esquerdo
a dor de ciática
que só veio dois dias depois
do acidente, é uma necessidade
estranha, esta de coçar feridas:
mantemos vivos os destroços 
como se só o que nos destruísse
merecesse retrato.

tarde demais
surgem as perguntas pertinentes
como gravar a frequência
infra-humana da tua respiração
depois de adormeceres
ao som daquela música
de joão gilberto, o álbum
propositadamente ou não
chama-se o amoroso
ou a expressão de um diafragma
demasiado exposto
depois de te inclinares muito tempo
à impossibilidade
de um limbo assim
e já que foi revelada
a inevitabilidade da perda
entre o que vai da íris atravessando
uma objectiva até à imagem
pixelizada que se guarda
nalgum lado quase sem memória
porque não ficar também
com a mancha húmida de látex
que já estragou
os tacos de madeira
ou a biografia rascunhada
da pastora
que pintava em cores
naïf e ninguém sabia
a mesma que morreu de fome
durante a ocupação alemã
trancada num hospital qualquer
- séraphine -


e assumindo então
a superfície oceânica das catástrofes
porque não admitir a queda
e sitiar o vesúvio
(o mesmo que só visitei
no teu corpo
sabendo da erupção iminente)
entender à força
que os manuais para adolescentes
depois de “como esconder
as primeiras poluções nocturnas” ou
”como aprender a beijar
mordendo uma laranja”
saltaram um ou outro
capítulo cuja ausência
nos condena a eternos novatos

para calar a morte
laranjas poluções nocturnas
o vapor do café na tua mão
numa manhã na cozinha
estreando janeiro
para chamar a vida
projectar nos objectos
de menor importância
a ausência de um milagre maior
fazer desses vestígios santuários
rezar como animais
esquecer os deuses antigos
desenhar com a saliva
ainda quente a última
fronteira entre os outros
e aquele que apesar
do sotaque estrangeiro
soube sempre
dizer o teu nome.

Politeísmo nietzscheano

Deuses olímpicos.jpg

“O que nos distingue não é o facto de não reencontrarmos Deus nem na história, nem na natureza, nem por trás da natureza, mas o facto de não sentirmos como ‘divino’ o que era venerado como Deus, antes o consideramos como deplorável, absurdo, nocivo, não só como um erro, mas até como um crime contra a vida... Negamos Deus enquanto Deus... [Wir leugnen Gott als Gott]”. (Nietzsche, O Anticristão, §47)”[1]

Na “morte de Deus” nietzscheana (há pelo menos uma em cada projecto de racionalização da realidade, portanto o Iluminismo e sequelas são pródigos em assassinatos teológicos) não se apaga o divino, mas uma figuração específica dele: a cristã.

Nietzsche sempre esteve receptivo a concepções do divino, provam-no os textos de juventude e notas esparsas em diversos cadernos e livros sobre o dionisíaco. Numa de preparação para O Anticristão escreve que muitos deuses são ainda possíveis, que nele próprio o instinto religioso, criador de deuses, procura por vezes reviver. (1888, 17[4]) Outra da época da Gaia Ciência fala da importância que terá a morte de Deus se fizermos disso uma vitória sobre nós próprios. (1881 12[9]) Trata-se assim de interpretar a morte do Deus cristão como abertura para outra humanidade (ou pós-humanidade, na figura do sobre-homem, der Übermensch) que, tudo o indica, terá ainda deuses, embora se desloque a divinização da morte para a vida. Depois do desaparecimento do Deus moral (processo talvez infindável) emergirá o primado da vida, porventura novamente figurado, sempre de múltiplas formas, em Dioniso, o divinizador da vitalidade naturalista.

Não retornará, contudo, qualquer absoluto, Dioniso é, de acordo com a cultura trágica (que em parte deverá também renascer), um deus disseminado, fragmentado, ele é múltiplo, experimenta-se de diferentes maneiras. Devemos atender ao que diz em Assim Falou Zaratustra, livro III: “A divindade consiste, precisamente, em haver deuses, e não um Deus! [Das eben ist Göttlichkeit, dass es Götter, aber keinen Gott giebt!]”. Em perfeita sintonia com o vigoroso elogio que faz ao politeísmo no §143 da Gaia Ciência, realçando que nele cresciam a liberdade e a pluralidade, o perspectivismo, em suma a força criadora de cada homem. É que com múltiplos deuses não se atrofia nem a liberdade individual, nem os jogos agonísticos que permitem tornar cada um naquilo que é, ou melhor, naquilo que vai sendo.

[1] A última frase coloca problemas de tradução inerentes à regra alemã de pôr todos os substantivos com maiúscula. Neste caso, talvez o primeiro dos dois “deuses” devesse estar com minúscula, visto que é um falso deus que se faz passar por Deus (questão apenas de interpretação).

4 L(acadas) Molduras

“Foi o piar de pássaros assustados
que me devolveu o conhecimento
claro das coisas.”-  Yukio Mishima

 

                                                               para o João Bosch de Turku

 

                                                       I

Ler japonês é tudo aquilo que não sei. Sim, não sei. É urgente dizer
não sei, não quero saber, não gosto. E NÃO me fodam a cabeça!
Não saber é uma enorme vantagem! Uma libertadora vantagem.
Poder caminhar pela rua, praia, jardim, monte sem ter a pressão
de saber o que se passa na Coreia, que parvoíces disse o Trump,
quantos novos golos marcou o Ronaldo ou… sei lá, tanta, tanta, 
tanta informação inútil. Mas gostava de aprender japonês, se fosse
só japonês e mais nada. Sem loiça para lavar depois do almoço ou
ter de  limpar, nos meus dias de folga, o pó de móveis do Ikea que
sonham serem contadores japoneses, lacados e cheios de marfim.  

Eu, também, queria tanta coisa e AQUI estou! Não gosto dos óculos
do Kurosawa, sempre me meteram impressão: um japonês, de olhos
em bico, com uns óculos de sol tão escuros, sem se verem os olhos,
mete-me algum medo. Recorda-me o gajo dos arraiais que conheci:
em dias de festas, e depois da noite cair, usava óculos de sol pretos. A
passo lento, ia arrastando o farel pintado, as folhas e flores do tapete,
já mastigado, pela Coroação da tarde. O sangue em Kurosawa é tão
vermelho sobre o papel de arroz; Pomba branca, em espelho, sobre
bandeira vermelha: equação sobreposta de memórias já perdidas.

 

                                                             II

Li algum Shakespeare, mas não o suficiente para citar de cor algum verso.
Seria útil, agora, para dar algum brilho a este mísero poema. Li todo o O rei
Lear
, Hamlet ficou a meio, porque tinha um exame sobre artes da Patagónia.
O Romeu e Julieta li-o com Zeffirelli! Ah, a Juventude! What is a youth, afinal?
Sempre me soube, o Lear, àquela história da comida sem Sal. Conheces?
Um rei, três filhas, comida com e sem Sal. Vence a mais nova! Transposto
o conto para o meu mundo, eu seria esse irmão mais novo. Gosto disto!
Eu a reinar entre os meus irmãos mais velhos, eu no meu vasto castelo,
 com muito frango assado, faisões e felinos aqui e ali. Uma beata e uma
mexeriqueira na masmorra! Mas Lear não se perde na loucura? Pois, claro!
Haja loucura para misturar os ingredientes e deles fazer nova pincelada.
O alto castelo tem muitas escadas, é uma espécie de dragão cuspindo
fogo e fumo pelas enormes narinas. Se há rosto impressionante no cinema
japonês é aquele, o louco rei, sujo, despido, despenteado pelo remorso.

                                               

                                                           III

Leio a imagem, a palavra que não conheço, a sombra, a densa memória
em camadas sem fronteira definida. Pata de leão na bandeira do extremo
leste. O sol, revestido de armadura dourada, lança espadas de samurais
e entrega as cores primárias aos filhos dos homens. Lá longe, bandeirolas
marcam o fim do império e o começo de uma nova era. O samurai já não
sonha com a guerra, a honra e a espada, tudo o que quer é viver em sossego
no meio da terra que dá o fruto; plantar, colher e amar aquilo que tem o
dever de amar: uma cabana, com colmo de palha, dois filhos e uma esposa.

 

                                                          IV

Lerei o romance mais antigo; o Templo Dourado; o gato preto de Murakami.
Lerei as palmas das mãos do japonês que for meu, nalgum dia de Outono à
beira do Templo. Andarei perdido pelos verões de Mishima e, pelo chá
de Kawabata, vestirei o meu quimono. Ouvirei Tamekistu para sossegar a
minha pesada nostalghia, que terá caído sobre mim, quando a morte já me
for próxima. Nesse futuro longínquo, haverá a carta a enviar ao amigo que,
do outro lado do mundo, saberá do que estou a falar e saberá escutar.

Franco Zeffirelli - “Romeu e Julieta” (1968).

konstantinos

Konstantinos Kavafis c.jpg

para o Pedro Craveiro

 

 

isto não é uma apresentação formal
um encontro entre dois estranhos
num desses cafés que tu e eu
tanto amamos frequentar
onde pudéssemos calmamente
dar um aperto de mão
passar um pelo outro com uma daquelas
indiferenças que às vezes se sente
num espaço onde se pode ficar
sem que a ele cheguemos a pertencer  

mas entre estas duas fotografias de ti
podem ter passado qualquer coisa
como trinta anos
em ambas estás a usar um fato com colete
que me parece demasiado quente para o clima
e te fazem parecer um inglês
e entre uma e outra pouco na tua cara mudou
ganhaste um pouco de peso
a melancolia é mais ou menos a mesma
dá-te um ar disciplinado, contido
um pouco perdido e decadente
tudo isto te fica muito bem

essa ponta de tristeza
que em ti passou da timidez ao método
do método à resolução interna
misturada com um discreto ar de desafio
aquele que normalmente
é cultivado pelos snobs e pelos tímidos 

ocorre-me que o ar de desafio
não pode ter sido do agrado de todos
mas agradar aos outros
não era bem o que te trouxe
até aqui, embora uma distinção
importe: que mais do que isso
do breve agrado que com mais ou menos indiferença
se concede a alguns momentos medíocres
para que nos deixem em paz
não é mentira que o oposto disso
é o prazer com que continuaste
a regressar a certos lugares
a algumas pessoas
a alguns breves momentos de espera
onde cultivaste o desconforto
de permanecer só, completamente visível
e em violação de algumas leis
em espaços estranhos 

penso que não foi neste quarto
onde te fotografaste
tão atravancado de tanto lixo
as coisas que tu colecionaste
as que não podias deitar fora
que recordaste os dias
de 1908, de 1910, de 1911
e que te aplicaste a descrever
a profundidade desses nós dados no escuro
nesses teus poemas breves
maniacamente lidos e relidos
em que tentavas não perder de vista
os quartos e salas e os balcões de cafés
onde te sentaste, onde olhaste à tua volta
quando tentavas descrever
a que sabe a espera naquele ponto
onde não há nada entre o extremo
da alegria e do desespero
quando mais facilmente se entende
o quão facilmente alguém
mais do que ser salvo ou ser aniquilado
pode num estalar de dedos
encontrar-se, perder-se 
ainda que tu estivesses só a tentar
ficar perto
não largar o que prendeu a tua atenção
até que isso te deixasse cair
uma vez, e outra, e de novo 

e de tudo o que podemos apenas especular
eu do outro lado da sala vejo agora
esse momento que entreteve a tua espera
o cigarro preso entre dois dedos
o rosto levantado, os lábios fechados, o olhar fixo
em redor daquele que finalmente chega
entra calmamente sem que te agite
a ideia de ser este o último reencontro
ou a inutilidade de todos os momentos antes
a solidão horrível que virá depois
e durante dias e dias te deixará a certeza
de que uma parte de nós pode ser arrancada
e de que essa falta pode caminhar ao nosso lado durante anos 

tu dirias são estas as regras e os rituais dos escolhidos
isto que é apenas uma leve presença tão ténue
que sendo quase invisível exige apenas
uma atenção sem medo para que
quando te virares por um momento
esse que desapareceu e regressou no espaço mínimo
de olhos que se abrem e se fecham
te possa olhar agora a direito por um momento
que é o que dura o reconhecimento 

ele virou-se konstantinos, e juro-te
que como nos teus poemas às vezes
toda a sala desapareceu
que não se conseguia ouvir nada
para lá de um zumbido nos ouvidos
que a revelação é mínima
e é muito pouca a nossa escolha
perante o que é mais importante
apenas sim ou não sem meio termo 

imagino que para ti tenha sido ao fim da tarde
no outono talvez dessa primeira fotografia
quando no último calor
as romãs amadureceram lentamente
despontavam nos campos e entre as campas
a tua vida apanhada na curva do ocaso
no decrescer da luz, na mínima celebração
de salas escuras, em corpos estranhos e familiares
no barulho de chávenas e colheres em salas
cheias de fumo e vozes sempre ao começo
da noite quando a energia que é necessária
de nós é explosiva, dura muito pouco
e vem com uma força que é a única coisa
entre nós e a sordidez de não sentir nada
de vir viver nas quietas casas
tumulares do inverno ou de não encarar
o corpo daquele que se despiu
para nadar no mar de manhã a beleza para lá
da vergonha, da pobreza ou dessa cobardia
que tentamos praticar todos os dias
a de querer minimizar o risco
para viver sem dor e sem perda
e até isso de olhar sempre os outros de modo esquivo
de recusar o reconhecimento
que os outros merecem de nós 

fora da imagem não se vê bem
mas suspeito que estás a segurar o relógio
suspeito que um poeta gay de alexandria
pode ser o último deus
de uma antiguidade muito tardia
da absoluta urgência do tempo
suspeito que esse verso que escreveste
sobre um corpo que se esquece dele próprio
(continua a lembrar-te
continua a lembrar-te e continua
a voltar, por favor)
quase não é um verso
quase não contém poesia nenhuma  
senão o saber que quase
nada é tão vital quanto isso
que apenas quase não é um verso

Oxford,

5 e 8 de Novembro de 2018

Isabel responde a Artur

Artur,

 

 

   Artur, Artur, como estava enganada. Nesse quarto escuro tu não me tiraste a virgindade, tu emprestaste-ma. Lembras-te talvez das paredes cheias de mofo, daquela cadeira empoeirada e coçada, desfeita, da tua cama que rangia sem consequência?

   Pois eu lembro-me de ti. Lembro-me de estares gordo, não de seres. Lembro-me dos teus olhos castanhos. Sempre disseste que eram banais. Não percebes nada de mulheres.

   Nunca te perguntei se era feliz? Pergunto-te agora: sou feliz?

   Os meus filhos estão quase a chegar a casa, cheios de merda na cabeça, espetaram-lhes os mallsno fígado e agora cospem prendas baratas, têm vírgulas nos crânios e enfrascam-se contra as paredes, mesmo sem carro. Boston é nojenta. Não tenhas dúvidas. É nojenta. Detesto americanos, e agora sou um deles. Que horror.

   E o meu marido é mais flácido do que tu. E fode bastante menos que tu, ainda bem. Tu ao menos davas-te ao trabalho de fingir que estavas comigo. Ele, nem por isso.

   Sou feliz? Nunca te perguntei se era feliz?... E é agora que o dizes!... Agora!... Agora?... Não tenho medo, ou melhor, duvido que tenha medo de te escrever, como sempre te escrevi. É que nessa tarde já me tinhas perdido. Naquele café, que tu tão bem descreveste. Perdi-te até no empregado. Não me lembro do cão, estava demasiado preocupada com o resto da tarde. Só tu para olhares para a merda do cão. Ah, mas demorei anos a perceber; não era, não era, não era nem virgem antes de te conhecer, nem qualquer outra coisa. E, no entanto, deste-me algum tipo de pureza – não aquela pureza parva dos homens que tentam o mundo sem o penduricalho que lhes entristece as pernas – não, deste-me o peso do teu corpo. Aí percebi que gostava de homens. E que tu nem de mulheres nem de homens. Mas isso, Artur, não faz de ti o infeliz que pensas que és. Também tu tens algo de estupidamente feliz em ti: não és perfeitamente infeliz.

   Sou feliz?

   Idiota.

   Sempre fui feliz ao teu lado. Não percebes nada de mulheres. Nada. Deve ser por isso que és tão gordo. Mas nem que fosses perfeitamente gordo serias totalmente infeliz. E se calhar nem te lembras, que digo eu?, claro que não te lembras, de como o fizeste. Como de facto foi. Lembras-te da cama, do quarto, do mofo, do cheiro, do raio do cão, do empregado de café, de tudo, menos do que aconteceu. O que aconteceu? Despimo-nos um ao outro. Beijámo-nos. Eu sei que tu fingias beijar, querias saber se eu queria ou não fazer aquilo. Eu não. Eu beijava-te. Não pusemos música. Deitamo-nos. Abri as pernas. Puseste-te em cima de mim. Beijavas-me, sempre a fingir, e perguntaste-me milhares de vezes se eu tinha a certeza. Que porra. Claro que sim. Não percebes nada de mulheres. Senti o teu corpo e mais do que a ti, uma dor intensa. Desapareceste e deste lugar àquela dor, mas continuaste lá com ar culpado. Foi aí que percebi que não era virgem. Que nunca fui virgem desde que me conheço.

   Se sou feliz?

   Ainda agora quase me matei a beber. Uísque, cerveja, que o vinho aqui fica muito caro. Os meus filhos nem percebem que estou bêbeda. O John muito menos. Tinha que se chamar John, pois está claro. John. Banal, banal, banal.

   Se sou feliz?

   Não me ofendas, gorducho, fofinho. Não percebes nada de mulheres.

 

 

   Isabel

 

P.S.

 

vai-te tratar