Pororoca

para a Francisca Camelo e para o João Coles

em Camden Market
a Francisca
como um aedo
que desenrola o rolo
e pigarreia
em preparação para o canto
lê-nos um poema-lição
de um poeta
justamente esquecido

é como uma cena
de Bucha e Estica
quantas vezes é possível
bater na cabeça de alguém
até o gesto
perder a piada?
a resposta
neste caso é
nenhuma
mas o canto
prossegue ininterrupto
até sermos assaltados
pela expressão
pororoca de vontades

o que raio é uma pororoca?
só o João
sabia a resposta
eu acho que é uma vaga
uma vaga como
uma vaga profissional
não
uma vaga como
uma onda

ah!
exclamámos em uníssono
e o mundo de súbito ficou
um lugar mais alegre
a rua movimentada era agora
uma pororoca de gentes
as minhas fajitas vegetarianas
uma pororoca de desesperos
e mais tarde
o abraço de despedida
uma pororoca de amizades

Novos possíveis

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I

O sobre-homem (Übermensch) nietzscheano passava-se do sentido, a sua condição de outro homem, mais do que de super-homem, permitia-lhe viver intensamente sem carecer de qualquer sentido pré-estabelecido. E mesmo ele, demiúrgico, apenas introduzia um pequeníssimo grau de sentido no decurso das suas acções. Tudo isto para favorecer a novidade, a inventividade e, com isso, curto-circuitar os velhos valores provenientes da cultura cristo-platónica, causa primeira da desnaturalização do homem, do amor tóxico pelo Transcendente e da imposição de uma moral para escravos.

Diferentemente (talvez pudesse dizer “pelo contrário”), Gilles Deleuze e Félix Guattari, lendo, em nostalgia, o Maio 68, escreveram que ele prometeu novos possíveis, daí a palavra de ordem que se lhe podia aplicar: “Algum possível, senão sufoco” (Du possible, sinon j’étouffe – Deux regimes de fous. Texte et entretiens 1975-1995).

Sinto uma certa perplexidade por ver dois comentadores enamorados de Nietzsche enquadrarem a revolução dos estudantes franceses numa frase que, creio, o deixaria triste (Nietzsche teria preferido: “Algum impossível, senão sufoco”). Mas bem, foi um grito pronunciado “à bout de souffle” (em desespero de causa), um grito filosófico e antí-filosófico, político sobretudo, escolhido talvez depois de uma noite de copos (que Nietzsche detestava). Era preciso irrigar com palavras a vontade, às vezes cega, de mudança. E o futuro parecia estar cheio, quase pletoricamente, de possíveis, enquanto o presente entrava num impasse (político, com o velho Charles de Gaulle, espartano, a censurar os ventos da mudança; social, resistência aos novos hedonismos febris e consumismo desenfreado, mas também o desejo de liberdade sem porquê; e filosófico, a velha escolástica continuava a ocupar os principais lugares dos templos do saber (universidades e “grandes écoles”), onde mais do que a verdade ou o questionamento crítico, contam os privilégios do prestígio social e da segurança económica.

Bem, se podemos separar o sem-sentido nietzscheano da vontade sôfrega de possível de Deleuze/Guattari, podemos, simultaneamente, aproximá-los porque eles foram comunicados como gritos, sinais de afirmação de vida por vir, e assinalam a ferros quentes a crítica aos seus presentes, a forma como julgavam intolerável viver no seu tempo.

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II

E hoje? A crise global que atravessa o social e o ambiental, com ramificações, claro, no político e geopolítico, lança um manto de chumbo sobre o presente, que, ao contrário das crises do século passado, parece não poder apontar a alternativa de futuros luminosos, pelo menos facilmente. E esta talvez seja a grande diferença em relação à crença entusiasta no futuro que quase sempre percorreu a história da humanidade (mesmo nas escatologias invertidas da Grécia antiga e clássica, onde a Idade de Ouro ficava no passado). Estamos, pois, encurralados numa crise aparentemente sem fim e pressionados pela urgência climática.

Porém, porque temos um mecanismo qualquer que impede o suicídio generalizado, agarramo-nos a alguns sinais de mudança, antevemos pela frincha da história alterações ao statu quo, que basicamente se consolidou em torno do consumo e do prazer (muitas vezes misturando-os). Novos possíveis parecem querer emergir, feitos não da força da imaginação, como no Maio 68 (L’imagination au pouvoir, dizia-se), mas de outras racionalidades, menos centradas nas competências e apetites individuais e numa produtividade predadora. Há uma vontade tangível, embora frágil, volátil, de vidas mais frugais, ambiental, social e psicologicamente mais sustentáveis.

Recorrendo a alguns estudos realizados ultimamente em França e a dados de L’Observatoire société et consommation, tomando por razoavelmente credível a informação que recolho das interacções quotidianas, acreditando que o que sinto corresponde a qualquer coisa de relativamente comum, e, claro, colocando nisto tudo um pouco de fé, deixem-me expor algumas linhas de novos possíveis, aceitando, e até querendo, como Nietzsche, o sem-sentido da actualidade.

Parece que nos últimos 10 anos cresceu muito a ideia de consumir mais responsavelmente, com mais sentido, ganhou-se consciência de que a maneira de fabricar o que comemos, vestimos ou utilizamos tem um impacto no meio ambiente e na qualidade de vida dos trabalhadores produtores. Há cada vez mais pessoas a exigir, de si e dos outros, comportamentos eco e sócio-responsáveis. Desenvolve-se a frugalidade escolhida (mesmo se a luta pelos aumentos salariais se motiva bastante na vontade de consumir mais), comprando pouco e preferencialmente produtos locais, em segunda mão, prolongando a vida útil do que já se possui (veja-se a moda do retro). Parece emergir uma nova cultura material (substituta dos “trinta gloriosos anos de consumo” pós-Guerra), elogia-se a abstinência em vez da acumulação, a temperança, a reparação, a partilha. Prefere-se o tempo livre ou o lazer em vez da ostentação de objectos e estilos de vida caros (financeira e ambientalmente). Escolhem-se empregos menos cronófagos, ainda que pior remunerados. A economia colaborativa está na moda. Consumir menos começa a ser sinónimo de “consumir melhor”. Seduz-nos o minimalismo (less is more), a parcimónia. Retornamos a alguns princípios franciscanos: livrar-se do material para potenciar o espiritual e criar uma harmonia com a natureza.

É verdade que nesta redução ao essencial emergem novos sinais de distinção social. Já não se trata do carro “bomba”, das jóias, das roupas de marca, da mansão grande e kitsch... mas continua a haver hierarquia, pela erudição, as experiências culturais exclusivas, as férias exóticas, o tempo livre... Enfim, retira-se sentido de um lado e coloca-se noutro. Porém, parece-me preferível, por exemplo, a bazófia presente no uso correctíssimo da língua portuguesa ou numa erudição cinematográfica à la Cinemateca de Lisboa, do que a de um carro espampanante. Agridem-se menos os ecossistemas e os parceiros sociais desafortunados, ou pouco performativos.

 

Senna de Asif Kapadia, 2010

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No seu lado mais pernicioso, há qualquer coisa na ideia de génio que ressoa com aquelas impressões equivocadas de meritocracia que postulam que o génio pode bater toda e qualquer condição adversa. Parece-me, no entanto, que os primeiros génios coincidem de alguma maneira com os primeiros heróis da épica grega, uma mistura de inspiração sem limites, habilidades perfeitas e uma certa tendência para o melodrama. Talvez mais do que uma extraordinária capacidade de raciocínio que pode ser aplicada a qualquer coisa (Leonardo da Vinci talvez seja o paradigma deste tipo de génio), o génio seja qualquer coisa que melhor se vê numa muito particular forma de especialização, alguém que encontra uma arte qualquer e que a pode praticar até à perfeição. Ayrton Senna é muito provavelmente este tipo de génio, embora ele, ao que parece, não acreditasse em ídolos, mas, como ele diz numa entrevista algures, em trabalho, dedicação e competência, e talvez seja esta a definição do génio de Senna.

Asif Kapadia é um realizador britânico que aparentemente não tem qualquer interesse em Fórmula 1. Eu também não, mas Senna, datado de 2010, é um documentário fascinante, em parte por causa da personalidade magnética de Ayrton Senna, em parte porque é um estudo sobre a beleza de que as pessoas são capazes quando se dá essa feliz coincidência, que não é para ser tomada por garantida, entre encontrarem algo que amam fazer e poderem fazê-lo, e nesse sentido é um filme sobre amar estar vivo. Há na figura de Senna, como retratada por Asif Kapadia, qualquer coisa da tragédia de Aquiles: uma vida breve, uma consciência de que é muito pouco o tempo que ele tem para poder deixar a sua marca na arena em que escolheu combater, uma nemesis formidável que é um Alain Prost/ Heitor, e todos os Agamémnons da vida, que são os empresários que ditavam as leis da Fórmula 1, a angústia constante de poder falhar e de preferir a efemeridade a uma vida longa onde as suas fantásticas habilidades ficariam sem expressão. Há um ponto no documentário em que Senna aparece a dizer: “As scared as I was to continue, I was just not ready to give in. It was my dream, my life, my passion.” Que talvez não seja tanto uma admissão das condições sine qua non para estar vivo, mas sobre uma espécie de coragem moral exemplar, sem a qual não se pode amar perfeitamente o facto de estar vivo.

Charles Bukowski, "competição"


competição

agora vivemos na alfândega e à noite
os barcos soam amiúde as sirenes de nevoeiro.
ela tem o sono leve.
ela dá um salto e fica sentadinha e direita na cama.
“porra!”, “que se passa, que se passa?”
“pensava que te tinhas peidado”
“desta vez não, querida”
ela é boa moça.
viver comigo deu-lhe cabo dos nervos.
a verdade é que eu gosto de guardar os peidos
para a banheira.
aquelas bolhas cinzentas fazem pairar
um fedor mágico no ar.
peidar é muito parecido com foder.
não se o pode fazer a toda a hora.
mas quando o fazemos
surge amiúde um sentimento de orgulho
como se o nosso talento artístico no acto fosse algo
de raro e precioso.
eu peido-me mais do que fodo.
e peido-me melhor do que fodo.
e fico contente
por ser confundido com uma sirene de nevoeiro
a meio da noite.


competition

we live by the harbor now and at night
the ships often blow their foghorns.
she's a light sleeper.
she will leap up, sitting straight up in bed.
"damn!" "what is it, what is it?"
"I thought you farted."
"not that time dear."
she is a good child.
living with me has dysfunctioned her nerves.
actually, I like to save up the farts
for the bathtub.
those grey bubbles waft up
a magic stench.
farting is much like fucking.
you can't do it all the time.
but when you do
there often comes a feeling of proudness,
as if your artistry in the act were a rare
and precious thing.
I fart more than I fuck.
and I fart better than I fuck.
and I am pleased
to be mistaken for a foghorn
in the middle of the night.