Do mistério do ofício

DO MISTÉRIO DO OFÍCIO

A língua caminha atrás de mim
pelo deserto azul que é grande
saboreia o rosto fiel dos meus anseios
no rito canibal do dia novo
Por vezes submerge a verdade
e se enruga como um corpo na água
A verdade molha sempre demasiado
no falso desnudar da promessa

(p. 49)

O pássaro dorme dentro do barro
canta na manhã a sua árvore
voa longe a fazer ninho
para buscar e farejar o calor perdido
E sempre vem do céu para dormir:

Só os poetas podem chamar irmãos aos pássaros.

(p. 50)

Conta a lenda que São Francisco, depois de virar as costas às materialidades do mundo, entrou pelos bosques e, despojado de tudo, chamou a si a natureza, e não só as plantas como os animais o receberam de braços abertos. Em particular os pássaros, a quem chamava de irmãos.

Serve esta pequena nota ou lembrança para entrarmos no novo livro de Pablo J.P. López, poeta espanhol de quatro nomes (n.1983) e de um rigoroso talento poético. Tal como o santo que buscou a simplicidade, e renunciou aos seus bens, aos ornamentos das suas roupas, também Pablo constrói a sua poética com base nesse princípio - os poemas com os quais começámos exemplificam, de resto, o que digo. 

Este poeta não só domina a linguagem e a música do verso, como a nível formal cada um dos seus poemas parecem ter um cuidado na selecção da palavra certa, lembrando epígonos da tradição ibérica, tal como Sophia ou Eugénio do lado português, ou a geração de 50 espanhola, em particular Ángel Gonzalez e Claudio Rodríguez.

No fundo, Pablo, apesar de jovem, já entende o 'mistério do ofício'. E quem o diz com ele, à cabeça do novo livro, é nada mais nada menos que Antonio Gamoneda, talvez dos maiores poetas vivos da língua espanhola, e que escreveu um frontispício justamente para este livro. Mais do que ninguém, Gamoneda apresenta a sua vida toda como exemplum do fazer poético, e dele dá conta na ratificação de Pablo, sobretudo no final do seu texto: 

Bem:
os  actos sagrados principais são
olhar espaçadamente e esquecer. Estou de acordo. Tu deves
esquecer a tua juventude, a tua vertigem, e, a uma dada vez, olhar-me
cego na luz, eu ainda, Pablo Javier, eu ainda.

(p.10)

Adiante - quando aludia atrás à qualidade e atenção formal de Pablo, apondo-o a certos nomes, gostaria de salientar que tal qualidade não se restringe só a um tipo de construção formal. Na verdade, os poemas presentes em 'El Misterio del oficio' variam muito em mancha gráfica, indo de poemas de apenas uma linha até poemas narrativos de duas páginas. Veja-se a simplicidade e justeza da palavra nestes seguintes exemplos:

'Há muitos poemas no deserto. Nenhum sabe voltar a casa' (p. 60)

'Traduzir rostos, escrever rostos, caminhar rostos:
as tarefas essenciais do ofício' (p.54)

'Quando a desdita é orgulhosa, o animal voa livre' (p. 59)

 Como dizia, Pablo tem uma voz própria. As referências e citações de outros poetas 'do oficio', que antecedem muitos dos poemas aqui presentes funcionam mais como proposição de uma ideia que depois o poema elabora, do que copiados poeticamente ou incluídos/imiscuídos no próprio discurso do poema - neste sentido Pablo age e bem no reconhecimento, da sua própria voz, de 'afinidades ageracionais' para com nomes tão diversos quanto Gelman, Holderlin, Góngora ou ainda, mais de perto ainda - L.M.Panero e Fernando Pessoa, de que Pablo é um jovem estudioso.

O último longo poema (pp. 68-69) fecha o livro e funciona em círculo ou pendant para com o frontispício inicial, resumindo no mesmo passo todo o livro. Nele, fala Pablo das 'palabras olvidadas', título retirado na epígrafe de Gamoneda ('Siento la suavidad de las palabras olvidadas'), desenvolvendo uma bela história de

'Um poeta [...] o encarregado por velar pelo bom funcionamento do depósito de palavras esquecidas da cidade'.

Deixemos o leitor descobrir por si como o poeta o faz, se bem que para tal também se pode ler, mutatis mutandis, todo o livro de Pablo que está para trás. Em jeito de conclusão, e mudando o meu registo, tornando-o mais pessoal de poeta a poeta, poderia dizer de Pablo e do seu excelente livro, o seguinte:

O MISTÉRIO DO OFÍCIO

Hoje, o mistério
era escrever a amizade,

e o desafio era escrevê-la
clara

deixá-la na língua de heraclito
no rio eterno da sua própria

passagem -

provando o tempero do tempo,

entre o que fica 
e o que se renova

porque sempre se decide
ficar.

Londres, 23 de Abril de 2014

El misterio del Oficio, Pablo Javier Pérez López, Amargord ediciones, Madrid, 2014. Frontispicio de Antonio Gamoneda.