Sexta conjugação, 4

Odiamos a palavra imaginação porque ela acorda,
odiamos o choro da criança que desperta,
odiamos o ritmo dos outros, o amor dos outros,
e gostamos de falar sobre a democracia,
comovemo-nos com os líderes que precisam deste mundo,
odiamos o desprezos dos anarquistas, desprezamos os sábios,
odiamos os que não se convencem do aqui, da certa ciência,
odiamos os que nos acenam com a incerteza,
e de dentes arreganhados, incrédulos, gordos e ridículos,
ou fracos, magros e possuídos de miséria gritamos
“Utopia, utopia”, de peito pleno, convictos, acusamos
o que não pode ser, o que não dá para ser.
Maldito, maldito seja quem inventou forma
de negar que somos capazes de tudo.
Utopia? Estarmos plenamente nós, em cheio?
Àquilo que sabemos ser difícil, escondidos,
chamamos confortavelmente impossível.
Ah, e como amamos os que tentaram e falharam,
o deus que tentou e acabou ferido,
o que quase provou a morte na fome,
o que morreu mártir de uma causa possível,
como amamos o herói que na vitória perdeu,
o amante que amou até ao momento da morte,
o descobridor do mundo que já existia,
como amamos as virtudes do mais idolatrado
quando cai no erro de ser humano.
Escudamo-nos na indiferença do impossível.
Ah, é tão fácil dizer que não dá. Não dá.
Não temos tempo. Rimos. Não temos tempo.
Que coisa horrível. Não temos tempo para o impossível.
Mas no fundo, aqui entre as tripas, o fígado, os rins,
sabemos que somos uns fáceis aldrabões, uns logros,
e até nos alegramos que alguém inventasse a utopia.
Sim, ainda bem que nos podemos defender de nós,
e fechar os olhos e simplesmente ignorar que todos,
todos, todos nós somos perfeitamente capazes.
Ah, mas não o digamos assim às claras,
não o apregoemos no fórum, nas escadas, no senado:
calemo-nos antes à espera que nada aconteça.
Essa é verdadeiramente a nossa utopia.