'Aniversário' de Clara João Silva e José Pedro Moreira

Aniversário
de Clara João Silva
a partir de um poema de José Pedro Moreira
Enfermaria 6
2020

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Clara João Silva nasceu em Braga, em fevereiro de 1999.

Estudou Design Gráfico no Instituto Politécnico do Cávado e do Ave, e lá percebeu a sua paixão por ilustração.

Nos seus tempos livres gosta de ler, ver documentários de true crime e fazer festas à sua gata.

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José Pedro Moreira nasceu em Lisboa, 1983. Vive em Oxford.

Publicou traduções do Agamémnon de Ésquilo (Artefacto Edições, 2012), de Catulo (juntamente com André Simões, Livros Cotovia, 2012), dos Hinos Homéricos (com Tatiana Faia e Miguel Monteiro, Imprensa da Universidade de Lisboa, 2019). Livros de poesia: Gatos no Quintal (Enfermaria 6, 2018), Porque canta um pequeno coração (Não edições, 2019).

Dois cantos de "Arcano 13"


Patrícia Lino, Arcano 2

Patrícia Lino, Arcano 2

Poemas de Marcelo Ariel &  Guilherme Gontijo Flores
Desenhos de Patrícia Lino

Canto 8

 

Até as pedras largadas
talvez mudas
escaldadas sob o sol
junto das costas caladas
numa grandeza solene
trinam memórias do passado
ligadas à sina do meu povo. 

Até o pó sob os teus pés
responde mais amor
aos nossos passos do que aos teus
são as cinzas dos nossos ancestrais
e os nossos pés descalços sabem
seu toque simpático
porque o chão é rico
da vida desta raça. 

Os valentes morenos
e as mães carinhosas
e as jovens alegres
e as crianças pequenas
que aqui viveram e sorriram
de nomes hoje esquecidos
ainda amam estes ermos: 

seus refúgios profundos
no entardecer crescem de sombras
com a presença de espíritos.

Fala o chefe Seattle
numa língua transcrita
e traduzida
e ainda que traída
dali floram fermento e fogo
calcinando mentes
feito neve na língua
abrasa até os dentes
feito flecha estacada
crânio adentro
ainda aduba o mundo.
Esta é a fala de neve e brasa
de flecha e adubo
porque isso somos
até o fim do mundo.
 

E quando o último vermelho
morrer sobre a terra
e sua memória entre os brancos
virar um mito
estas costas vão fervilhar
com mortos invisíveis desta tribo. 

E quando os filhos dos teus filhos
se acharem sozinhos no campo
no armazém na loja
numa estrada ou no silêncio da mata
não estarão sozinhos:

nada na terra tem lugar
dedicado à solidão. 

À noite
quando as ruas das tuas cidades e aldeias
quedarem caladas
e acharem que estão desertas
vão se apinhar com a volta de hóspedes
que antes enchiam
e ainda amam
esta terra linda. 

O branco nunca estará sozinho
que seja justo
e lide bem com o meu povo:
os mortos não restam sem poder.

Patrícia Lino, Arcano 8

Patrícia Lino, Arcano 8

Canto 9

 

Após os oitenta tiros
retornará
o grão da voz
de Evaldo dos Santos Rosa
através do sabiá
cantando na beira do Rio. 

Tradução do canto
do pássaro:  

‘ Que o encantamento gere
encantamento.
Não celebro,
lamento que breves sejam
as sessões do amoroso
pensamento. 

A pressa em não-saber
trará a cegueira
das vozes
silenciadas antes
que sejam,
através da alma
esboçada
como a beleza
do copo de leite
em sua brancura
de metáfora
da morte
de uma estrela
distante. 

E então tudo será reencontrado.

Serão unidos os cantos lentos  dos céus
e para sempre refeitos
os silêncios  do mundo em ruínas
e o silêncio do canil Krishnamurti.  

Pelos quartos abandonados
uma revoada de pássaros irá dormir
e veremos o sol morrendo
mudo como um olho fechado
e feroz feito pedra afundando.’
~

Páris

ao António Alves Vieira


Quando se sentou no sofá
à luz hemisférica da mesinha
consegui perceber-lhe
a fenda helénica do queixo
os lábios sempre húmidos
e os caracóis dele
da mesma aveia dos olhos
que cumpriam uma constante algébrica qualquer

“- Então fazes mais televisão ou teatro?”

tiniu o balanço do candeeiro
e o olhar dele
que mesmo destriunfado
com toda a força das pálpebras
me despia

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Perséfone nos Infernos


Comeu pois Perséfone as seis sementes
porque percebeu que ao ter sido colhida pela morte
seria para sempre flor da morte naquele palácio de xisto
Ela que dantes colhia gerânios, se lambuzava em mel
ferrava-se toda a ela e às irmãs, sansânica em cabelo
tirava-lhes dos rabos nus a rir os espigões
És tão bonita e tão tontinha, respondiam-lhe elas
já não a vêem há duas semanas e nem um telefonema
não deve andar a comer nada, e se definha
Viu Perséfone a coroa da morte e comeu pois as seis sementes
porque já não se imagina na luz fúlvida a ser rainha
Agora sim, coroados de negro negros os lindos olhos
colhe vida aos mortos, colhe da morte os vivos
ama sôfrega as flúvias cinzentas do marido
(e este outra ninfa à entrada dos xistos, junto às heras)
E uma a uma as seis sementes deglutidas
puseram os olhos mais que negros negros de Perséfone
a quererem mais que cegar, olhar para dentro

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