Da Tradução do Übermensch de Friedrich Nietzsche

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I

Numa conferência de 1813 sobre a tradução, lida na Real Academia de Berlim a 24 de Julho, (Sobre os Diferentes Métodos de Traduzir), Friedrich Schleiermacher notou que se por um lado "O indivíduo não pode pensar com completa determinação aquilo que estiver fora das fronteiras da sua língua. […] Porém, por outro lado, cada indivíduo que pensa livremente, com autonomia espiritual, está por seu turno a formar a língua.” Portanto, o sentido surge da língua a partir da qual vemos o mundo, para parafrasear livremente Fernando Pessoa, mas ela é o produto dos seus criadores, que assim fazem emergir novos sentidos (mais uma variação do círculo hermenêutico).

Vem isto a propósito da dificuldade em traduzir um termo importante de Nietzsche, presente sobretudo em Assim Falava (ou Falou) Zaratustra: der Übermensch. Mais abaixo demonstrarei por que opto por “sobre-homem”, em vez do tradicional “super-homem”, por enquanto continuo, num escurso que pretende enquadrar o problema, com os labirintos da tradução, acompanhado pela leitura de Dizer Quase a Mesma Coisa, de Umberto Eco. Alexander von Humboldt e Friedrich Schleiermacher foram, no início do século XIX, dos primeiros a afirmar que as traduções podem enriquecer a linguagem de chegada, ao nível do sentido e da expressividade. Para que isso aconteça é preciso dominar a língua de partida e estar acima das potencialidades medianas da língua de chegada, e por vezes sacrificar a transposição literal dos signos para elevar o estilo da língua de tradução. Mas já em 1420, Leonardo Bruni (De interpretatione recta) escrevia que o tradutor “deve fiar-se também no seu ouvido para não estragar o que num texto é exprimido com elegância e sentido de ritmo.” Ou seja, para preservar o nível do ritmo, o tradutor pode dispensar-se de seguir à letra o original.

Esta legitimação do “desvio”, coincide com o argumento etimológico de Umberto Eco: o termo latino “translatio” surge inicialmente com o significado de “transporte”, da passagem de dinheiro de um banco para outro, mas também de enxerto botânico, ou desenvolvimento de um horizonte metafórico. Esta é a razão por que falha o Google Translate, ou outra ferramenta digital de tradução automática. A interpretação por transcrição ou substituição automática, como no alfabeto morse, não funciona. A ausência de decisões interpretativas, sem qualquer recurso a um contexto ou circunstância de enunciação resulta nas situações hilariantes que todos conhecemos. Compreende-se, pois, que Willard Quine, no capítulo “Meaning and translation”, de Word and Object (1960), refira que é difícil estabelecer o significado de uma palavra sem se entender o contexto cultural onde ela se insere. Por exemplo, se um indígena pronunciar “gavagai!” apontando para um coelho que passa à nossa frente, o que quererá ele dizer: o nome daquele coelho, dos coelhos em geral, da erva que se movimentou com a sua passagem ou designar o espaço de tempo da sua passagem? É incontornável, cada língua exprime uma determinada visão do mundo.

Assim, a tradução deve ser sempre acompanhada de interpretação (excepto em trabalhos expresso orientados para o “mercado”), e isso exige tanto uma atenção cuidada ao contexto cultural (lato sensu) onde nasceu a obra, como às palavras que a compõem. Neste sentido, ainda segundo Eco, “uma boa tradução é sempre uma contribuição crítica para a compreensão da obra traduzida. Ela orienta sempre para um certo tipo de leitura da obra”, levando a ver o original sob outras perspectivas. É por isso que, para os autores que convoquei, todo o acto de tradução é desde logo, e ipso facto, interpretação. Hans-Georg Gadamer (1960) repete-o, sublinhando que as traduções são o resultado de interpretações, feitas pelos tradutores na passagem das palavras originais às traduzidas. Esta ideia – a de que é preciso previamente interpretar um texto para o poder traduzir bem– assenta na impossível equivalência linear entre signos de línguas diferentes, embora se deva coincidir na dimensão pragmática, isto é, no sentido que produzem. De forma a que ler a mesma obra em línguas diferentes dê a pensar coisas muito semelhantes. Fala-se então de igualdade de valor de troca. O caso exemplar está em traduzir Homero em prosa, visto que o género épico era na época de Homero o que a prosa narrativa é nos nossos dias.

Para que tudo isto aconteça, e aconteça bem, Umberto Eco – que acompanhou a tradução em várias línguas de muitos dos seus livros, é bom dizê-lo – recorre frequentemente à ideia de negociação. Negociar o significado que a tradução deve exprimir, até porque é isso que fazemos no uso quotidiano da língua. Neste sentido, o processo de tradução prolonga o processo dialógico do dia-a-dia.

II

        

Na sequência do que acabei de dizer, considero essencial que as traduções de Friedrich Nietzsche estejam envoltas num conhecimento profundo do seu pensamento (multifuncional e vivo), do contexto histórico de onde emerge (prolongando-o e criticando-o) e dos comentadores mais relevantes (que não apenas explicam, mas acrescentam sentidos à sua obra).

No Preâmbulo a Assim Falava Zaratustra (ZA), Friedrich Nietzsche define o sentido principal do termo Übermensch: “Der Übermensch ist der Sinn der Erde. Euer Wille sage: der Übermensch sei der Sinn der Erde!”. Ele torna-se o sentido da Terra (arrisco a maiúscula), o sentido do sentido, visto que nada há para além da Terra, sabendo-se que Deus morreu (outra das ideias fundamentais de ZA). Por isso, ZA será o livro do Übermensch (e do conceito de Eterno Retorno, porque é preciso um novo tempo, cósmico e ético, para esse outro homem), e a opção de tradução ganha uma relevância que não teria noutra circunstância. Vejamos, então, a justificação para a opção de “sobre-homem”.

O “sobre-homem”, ao contrário do Superman, não é uma nova estrutura sobre-pulsional do humano, nem um messianismo hipermoral, é um ser da distância, erigindo possibilidades de vida mais singulares. Daí apresentar-se melhor na figura da “criança” do que na do “leão” de “Von den drei Verwandlungen” (ZA I). O sobre-homem é muito mais um criador do que um destruidor (embora seja através de uma destruição inicial que se instaura o prólogo da liberdade), só a criança, diz Nietzsche, consegue criar valores, porque a sua vontade afirmativa separou-se do que era, podendo agora ser inocência e esquecimento. Ainda que quase no final do cap. “Von der Selbst-Ueberwindung” (ZA II) refira criar dentro do bem e mal implica primeiramente aniquilar valores.[1] Mathieu Kessler distingue-o do superman porque em vez de um poder excepcional, o Übermensch é o homem a quem “falta qualquer coisa”.[2] É esta falta, embora pensada noutros termos, que destaca Jean Granier ao dizer que o prefixo “über” indica que o Übermensch tem o seu fundamento na Selbstüberwindung (auto-superação).

Daí os problemas de tradução que se levantam. Na opção comum em português europeu, Übermensch (Übermenschen, no dativo) é normalmente traduzido por “super-homem” (Obras Escolhidas para a Relógio de D’Água) ou, às vezes, sem um critério suficientemente sólido, por “sobre-humano”[3]. Na minha perspectiva, isto inviabiliza uma adequação mais precisa entre os sentidos nietzscheanos e os da pragmática comum na língua portuguesa. É verdade que quem lê e estuda frequentemente Nietzsche faz um ajustamento ao deslocar o “super-homem” do significado mais literal para sentidos próximos dos do autor, recusando sobretudo as propostas hollywoodescas ou os altares fascistas de herói energizado. O próprio Nietzsche, percebendo os potenciais equívocos do termo, faz em Ecce Homo, “Warum ich so gute Bücher schreibe” §1, uma acusação pedagógica aos leitores, presentes e futuros, de não compreenderem o significado da palavra “Übermensch” na boca de Zaratustra, de a ligarem às teorias darwinistas, aos “cultos de heróis” (Heroen-Cultus) super-humanos.[4] Ainda assim, julgo que se justifica traduzir o termo alemão/nietzscheano por “sobre-homem”. Na condição, todavia, de o “sobre” não denotar simplesmente a elevação quantitativa dentro de uma hierarquia. Com ele quero, à falta de melhor (testei “outro-homem”, mas ficaríamos demasiado distantes da hermenêutica habitual), dar conta do prefixo “über” como movimento para lá da antropologia humanista, mudança que exige outra escala de valores. Pretendo sobretudo resistir à possibilidade de se interpretar a partir da polarização Übermensch/Untermensch, o Übermensch é principalmente o resultado de uma Überwindung (superação, sem o negativo hegeliano), por vezes tão extrema que, como refere Pierre Boudot, “Em Nietzsche, o homem vai tão longe no seu próprio coração para descobrir o que deve ser superado que não estamos certos de o ver reaparecer.”[5] Por outro lado, procuro também imprimir-lhe a dimensão do porvir (combatendo muitas das apropriações mais politizadas), ele há-de constituir-se, talvez assimptoticamente, pela auto-superação do homem, é assim que leio o que diz em ZA II, “Von der Priestern”: “Ainda nunca houve um sobre-homem”.[6] É por isso que se deve privilegiar o sentido dinâmico da Selbstüberwindung. Müller-Lauter tem razão quando defende que o sobre-homem não quer o poder-em-si, como não tem um único objectivo, uma linha definida de desenvolvimento, ele é um caleidoscópio de vontades de sobre-abundâncias.[7]

Não se pense, contudo, num neologismo forjado especialmente para a sua “doutrina” do novo homem. Foi, pelo menos, usado por Novalis, Heinrich Heine e Goethe. Nietzsche recupera-o no prólogo de ZA, porque o homem é algo que “deve” (soll e não muss) ser superado, daí a importância do ensino de Zaratustra.[8] No Inverno de 1882-83 percebeu o poder desta ideia para a sua axiologia, um novo tempo (Eterno Retorno) e um novo homem (sobre-homem) para valorizações fiéis à Terra, uma imanência soberana.[9] O sobre-homem será capaz de dizer sim à vida na sua eterna repetição. Mas antes de ZA já Nietzsche usava o adjectivo “übermenschlich[10] e outras designações também próximas (“espírito livre”, “ouvinte estético”, “homem supra histórico”...), mostrando como desde muito cedo quis desviar-se do humanismo do seu tempo, compor um homem mais livre, mais hedonista, mais lúcido... Como refere Arthur Danto, sem qualquer instinto de hétero-domínio, não um senhor de escravos, mas um soberano afortunado.[11] Também para Patrick Wotling, os Übermenschen não são mestres, mas deuses epicuristas pouco preocupados com os outros, animados pelo “pathos da distância”.[12]

É a partir disto, desta linha hermenêutica, que justifico a opção de “sobre-homem” para traduzir o der Übermensch nietzscheano, tradução de sentido mais do que tradução à letra, única forma de nos aproximarmos da intenção do autor.  

[1] “Und wer ein Schöpfer sein muss im Guten und Bösen: wahrlich, der muss ein Vernichter erst sein und Werthe zerbrechen.”. (KSA 4, 149).

[2] Cf. “Le Nihilisme et la nostalgie de l’être”, in Jean-François Mattéi (dir.), Nietzsche et le temps des nihilismes, Paris : P.U.F., 2005, p. 47-48.

[3] Esta última opção está perigosamente perto da de “sobre-humanidade”, que me parece dever ser evitada. Como refere Pierre Klossowski, a humanidade não interessa em nada a Nietzsche, ele apenas se preocupa com os casos singulares. (Cf. Nietzsche et le cercle vicieux, Paris: Mercure de France. 1969, p. 223; de Nietzsche, e.g., os Fragmentos Póstumos de 1880, 6[70], – não há um fim da humanidade, cada homem deve colocar a sua própria finalidade –; 1881, 11[222], – recusa a ideia de uma humanidade unitária – e de 1888, 15[8], – escreve que a humanidade não avança porque muito simplesmente não existe; mas sobretudo o final do “Vorwort” de Anticristo (ou Anticristão) onde escreve que é necessário ser superior à humanidade, pela elevação e pelo desprezo.

[4] Logo no prefácio desse livro, §2, escreve que a última coisa que prometeria seria a de melhorar a humanidade. François Warin, retomando as metáforas do camelo, leão e criança de ZA, defende que o Übermensch é a “criança”, não o “leão” que depois de tomar consciência da subserviência do “camelo” se revolta e destrói o que está estabelecido. Ele é a “criança” que abandonou a violência, não odeia, não teme, não destrói nem deseja. É um pacifismo da força. (Cf. Nietzsche et Bataille, Paris: P.U.F. 1994, p. 231-3).

[5] Nietzsche et les écrivains français, Paris: 10/18, 1970, p. 89

[6] KSA 4, 119: “Niemals noch gab es einen Übermenschen.”

[7] Cf. Nietzsche: His Philosophy of Contradictions and the Contradictions of his Philosophy, Chicago: University of Illinois Press, 1999. p. 80.

[8] “Ich lehre euch den Übermenschen. Der Mensch ist Etwas, das überwunden werden soll. Was habt ihr gethan, ihn zu überwinden?” (ZA, “Vorrede” §3; KSA 4, 14).

[9] “Der Übermensch ist der Sinn der Erde. Euer Wille sage: der Übermensch sei der Sinn der Erde!” (ZA, “Vorrede” §3; KSA 4, 14).

[10] E.g. Segunda Inactual, §6; Humano Demasiado Humano I §143, II §73; Aurora §27, 60, 113, 548.

[11] “The Übermensch, accordingly, is not the blond giant dominating his lesser fellows. He is merely a joyous, guiltless, free human being, in possession of instinctual drives, which do not overpower him. He is the master and not the slave of his drives, and so he is in a position to make something of himself rather than being the product of instinctual discharge and external obstacle.” (Arthur Danto, Nietzsche as Philosopher, New York, Macmillan, 1965, p. 199-200).

[12] Nietzsche et le problème de la civilisation, Paris: P.U.F., 1999, p. 342-43. Por isso, continua Patrick Wotling, não lhes interessa a supremacia política, mas a transfiguração da existência em direcção a uma maior soberania. Todavia, o “deus epicurista” serviu sobretudo para a escrita do ZA II e Fragmento Póstumo de 1883, depois disso parece “por vezes” (parfois) desviar-se para a procura da dominação. (Idem, p. 344). Wotling realça também a proposta de um novo homem assente no critério do alargamento das perspectivas que incarna, cita em apoio o Fragmento Póstumo de 1887 10[17], onde se mostra um homem cheio de “luxos excedentários”, o contrário exacto dos especialistas, dos homens redutoramente especializados. Refere ainda o de 1884, 26[119], no qual o homem mais sábio seria o mais rico em contradições e, da mesma época, o 27[59] sobre a grande diversidade de instintos e impulsos necessária ao homem supremo.

Ars Erotica

Mulholland Drive, David Lynch

Mulholland Drive, David Lynch

Eyes Wide Shut, Stanley Kubrick

Eyes Wide Shut, Stanley Kubrick

O Segredo de Brokeback Moutain, Ang Lee

O Segredo de Brokeback Moutain, Ang Lee

No primeiro tomo da História da Sexualidade (A Vontade de Saber), Michel Foucault discute a ausência de uma ars erotica no Ocidente, substituída pela scientia sexualis. Mas, é esta a novidade, Foucault não liga essa falta à repressão sócio-moral da sexualidade, como o fez apressadamente Maio 68. Na verdade, desde o século xvii que se multiplicam os discursos sobre a sexualidade. Numa longa análise dos dispositivos legais (direito canónico) e morais (pastoral cristã) sobre o lícito e o ilícito sexual (incesto, adultério, sodomia, homossexualidade, pedofilia, sexualidade dos loucos...), descreve genealogicamente uma “verdade do sexo”, que no Ocidente se declinaria numa scientia sexualis, assente na polarização entre permitido e proibido; enquanto o Oriente, um certo Oriente, estava há muito mais interessado numa ars erotica, onde a verdade sexual se ligava ao prazer.

O nosso conhecimento sexual, controlado inicialmente pela moral cristã, inscreveu-se na compreensão dos mecanismos da sexualidade através da confissão. Algo que favoreceu o nascimento da Psicanálise freudiana. De seguida, séc. xviii, uma certa objectividade científica decidiu explicar – biologicamente, sociologicamente e psicologicamente – a acção que mantém viva a espécie humana, discutindo-se a sexualidade sob a capa da procriação. Tudo isto aumentou imenso o aparelho discursivo em torno da sexualidade, começámos a falar de sexo pelos cotovelos (mas sem abordarmos explicitamente a questão do prazer, vamos mais facilmente, sobretudo no anedotário misógino, para o campo da sujeição, do domínio machista e dos aspectos clínicos ou reprodutivos).

Entretanto,  o cinema, mas também a fotografia e a pintura, foi desenvolvendo a ars erotica que não tínhamos. É esse testemunho, em reduzidíssima amostragem, que deixo acima, algumas encenações eróticas tão intensas que se alojam numa espécie de metafísica do amor, servindo de modelo a possíveis deuses (é isso que um grande realizador faz: um filme para deuses, nos bons exemplos de Kubrick, Lynch ou Lee).

Mas há diferentes níveis de jogos de linguagem/imagem eróticos. Hoje, fora da arte, o sexo é ao mesmo tempo um facto omnipresente e dissimulado, banalizado, dramatizado, desprezado e apreciado. Nunca a intimidade tinha irrompido tão fortemente no espaço público, uma forma de narcisismo e de comércio, seja, das duas ao mesmo tempo. Mas isso não aclarou certos problemas, sobretudo o de sabermos pensar e comunicar a nossa intimidade. Aliás, quando decidimos falar dela, refugiamo-nos na performance ou no idílio sexual. Continua a ser penoso confessar as dificuldades sexuais, a forma como nos submetemos aos interditos, as controvérsias entre impulsos e moral, as fantasias inapropriadas... Por outro lado, há um movimento em França onde se pode vislumbrar um novo paradigma: o “plan cul” (tradução livre: “plano f.”). Assenta em encontros com objectivos estritamente sexuais, “fazer amor sem relações amorosas”, e pode abrir para um novo tipo, muito menos preconceituoso, de educação sexual. Alguns objectam que tal já foi experimentado no movimento hippie de 60, mas julgo que então a contra-moral era ainda um forma de moralizar. De uma certa forma, parece que nos queremos aproximar do Oriente, de um hedonismo sexual sem compromissos morais. Ou será mais um bombom envenenado? (Upss, às vezes, fugindo a Nietzsche, parece que quero sobretudo discutir a melhor maneira de ser pessimista).


O ESPECTADOR EMANCIPADO

O ESPECTADOR EMANCIPADO

No passado dia 27 de Março comemorou-se o dia mundial do teatro, e eu tive a honra de ser convidado pelo amigo de longa data Miguel Graça, dramaturgo no Teatro Experimental de Cascais, para assistir à estreia da sua peça, ICTUS, no Estoril.

Este texto serve dois propósitos principais: §1) reflectir sobre a ontologia do teatro e o papel/lugar do espectador. §2) Recensear a peça ICTUS. Como introdução discutirei a relevância do dia mundial do teatro. Será pois um texto que pode interessar por partes aos leitores, façam o favor de entrarem quando quiserem e onde quiserem, saiam também quando muito bem entenderem.

§0

Os “dias mundiais” parecem resultar de exageros quase caricaturais, discriminação positiva profundamente culturalista e antropocêntrica (mesmo quando se trata de louvar a natureza, já que é uma natureza humanizada). Mas bem, é assim, e creio não ter forças para alterar o curso desta história, um milímetro que seja. Fiquemos, pois, com o que têm de positivo, no caso do teatro podem ser impulsos para se encenarem mais peças do que é habitual, estrear nesse dia é profundamente simbólico, e torna-se mais fácil envolver a comunicação social. Ainda que as pessoas continuem a ser felizes sem teatro. Uma das prerrogativas das sociedades capitalistas avançadas é terem alquimisado a felicidade: tudo pode dar prazer, massificaram-se os “pratos de lentilhas”. Contudo, tenho quase a certeza que sem teatro as sociedades ficam menos auto-reflexivas, mais pobres na capacidade e vontade de pensarem e fazerem promessas de futuro. 

O horizonte de afectos, de inteligibilidade e de acção política que este ano rodearam as comemorações do dia a nível mundial foi traçado pelo dramaturgo sul-africano Brett Bailey. No texto que escreveu como carta de intenções para esta arte encontrar o tom adequado ao espírito do tempo, refere que “Onde quer que exista, manifesta-se na sociedade humana o seu espírito irrepreensível de representação.” Por isso, a responsabilidade de quem faz parte do mundo do teatro é de uma exigência assustadora: figurar nos palcos esses impulsos primordiais do humano. Bailey compõe depois um pequeno manifesto contra as injustiças sociais e a degradação ambiental, dizendo que as artes, do palco ou outras, devem fazer parte da agenda social, influenciar as decisões políticas para se alterar o statu quo ante. Tudo correcto, e creio que sincero. Já não é preciso pertencer às esquerdas libertárias/teleológicas ou sair de um mosteiro para sentir um profundo nojo perante a porcaria de sistemas político-económicos que impõe a pobreza mais extrema a uma parte significativa das suas comunidades. Já não é preciso ser um ecologista fundamentalista para combater aquilo e aqueles que conspurcam, destroem os locais mais naturalmente belos do planeta; para defender com unhas e dentes a sustentabilidade ambiental como uma das primeiras prioridades das agendas política e económica; para lutar a favor de um estatuto jurídico para os animais não humanos, distinguindo-os legalmente de meros “objectos”. Percebe-se mal que ainda não lhes tenhamos atribuído garantias legais que os dignifiquem e protejam da voragem aniquiladora dos humanos.

Como referi, vou dividir o que resta deste artigo em dois §, no primeiro falarei da questão do espectador, sobretudo a partir de Nietzsche, textos de juventude, e Jacques Rancière (Le Spectateur émancipé / O Espectador Emancipado). No segundo recensearei ICTUS, encenado por Carlos Avilez, no Teatro Experimental de Cascais (até dia 27 de Abril).

 

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Carderno 1

Caderno 1 da Enfermaria 6 tem um conjunto de autores que parecem remeter quase imediata e necessariamente para pessoas concretas. Conheço até alguns deles (queria ter encontrado mais no dia do lançamento na Fyodor Books, é natural a vontade de compor com uma figuração empírica o que lemos de alguém), reconheço-me também no que escrevi, “sim sou eu”, digo para comigo. Porém estas relações texto/autor resultam quase sempre de estratagemas de leitura assentes nos velhos protocolos da “intenção do autor”. Gostamos, às vezes com uma disposição quase obsessiva, de pôr as coisas em ordem, de dar “o seu a seu dono” (Nietzsche repetiu vezes sem conta que só queremos saber por medo da desordem caótica – base irredutível do mundo –, as pulsões cognitivas não são, pois, o "espanto" ou a curiosidade).

Caderno 1 resultou, é verdade, de marcadores de escrita e pensamento provenientes de pessoas singulares. A esperança de vida desta aparente simples encadernação de 67 páginas em “papel Coral Book Creme 80g”, produzido durante o mês de Fevereiro (por proletários indiferentes ao seu valor de uso?), continua, desenvolve os impulsos que certos nomes próprios lhe deram ao desenharem no jogo alfabético um conjunto de ideias, de imagens, de forças, de diagramas emocionais...  Mas isto não é a condição perene da sua existência, sabemos bem que as assinaturas irão esvanecer-se, mesmo que alguns dos que escrevem se tornem famosos. Não, não se trata do esquecimento do nome, mas da libertação do texto, ou melhor, da libertação dos sentidos que ele encerra, sem lhe pertencerem totalmente (às vezes estão lá apenas indícios que ganham um alcance bem para além do potencial suposto). Os textos são sistemas que congregam a ordem e a desordem, tecidos com um conjunto de letras finitas ditando as possibilidades de sentido infinitas, a combinação dos marcadores fonéticos fixos abre para um universo quântico de sentidos. Cabe aos leitores, às vezes bem distantes dos horizontes de expectativa dos autores, introduzir novas significações. Por isso, o ensimesmamento do génio é menos fecundo do que um certo romantismo literário crê. As suas obras podem ser de uma originalidade estonteante (arrasar todos os horizontes de expectativa dos receptores), mas enquanto não forem recebidas, percebidas (embora nunca nos seus exactos termos), suplementadas, adaptadas, parafraseadas, plagiadas… será um génio de gaveta (como talvez haja muitos nos nossos dias, com os quais, por óbvia razão, mesmo os leitores mais atentos não se preocupam). Paradoxalmente mas necessariamente, só depois dos leitores acrescentarem alguma coisa à sua obra genial (e acrescentam sempre, pelo menos os leitores inteligentes, é impossível seguir as pisadas na neve dos autores) pode ela revelar algumas das significações que a compõem. Trata-se de uma estética da recepção onde sentidos vivos acolhem a herança dos textos e um gesto artístico de reescrita os suplementa, dança da intertextualidade que num bom frenesim afaste o conservatismo da cena da vida. O intérprete não reproduz o criador, as suas leituras são, nos suplementos que introduz no texto, outras peças que se acrescentam às anteriores. Uma recepção criadora, em vez de recolectora, um perspectivismo dinâmico insuflando constantemente de vida cada texto, polimórfico e com múltiplas assinaturas. Mesmo a "fusão de horizontes" de Hans-Georg Gadamer, porque se trata de horizontes múltiplos, vive nesta perspectiva.

Autor, texto, leitor, a trilogia produtiva de sentidos, máquina fabricante sem predefinições rígidas. Às vezes frenética, outras lenta ou com períodos longos de hibernação. Nietzsche dizia que só em 2000 seria lido, que não havia na sua época quem o pudesse entender, e tinha razão, “alguns nascem póstumos”. Mas ao mesmo tempo, o que hoje retiramos dos seus textos está por vezes bem longe do leque das suas intenções primeiras (o plural respeita a vontade de obscuridade nietzscheana). Disse várias vezes que dar-se à compreensão era um acto de vulgaridade, mas quis deixar-nos um testemunho, ainda que ambíguo, do que pensava e sentia nesse tempo, um fresco de si mesmo e da humanidade europeia, decadente e niilista, vivendo na proximidade do fim do homem (enquanto humanidade gregária cristã). E nós tomamos a liberdade de o transportar para outros sítios, de acharmos, por exemplo, que ele prognosticou bem as viroses nacionalistas que esfarraparam por duas vezes a Europa (regressam brevemente, cavalgando o Eterno Retorno?). Ou, mais recentemente, de vermos no niilismo ético que nos alienou ao consumismo, o último estádio do Cristianismo Paulino e do Messianismo do Progresso.

Creio, pois, que o Caderno 1 é uma promessa de sentidos, que muitos dos que encerra agora poderão desaparecer (são apenas rastros), que outros invisíveis hoje aparecerão brevemente ou depois de uma moratória de décadas, ou nunca (há potenciais sentidos que nunca emergem, são uma infinita virtualidade inimaginável). O que realmente importa é que o Caderno 1 dê a pensar, ninguém, parece-me, quer instruir ninguém. Pôs-se em movimento uma máquina que já, assim o esperamos, nos largou e começou a trabalhar à sua maneira com a cumplicidade dos leitores.

 

Entre leitores oblíquos e António Lobo Antunes

Ler como quem trabalha em pergaminhos nebulosos, rasurados, várias vezes reescritos. Em camadas de palimpsestos que se foram apagando, mas mantêm a força irrevogável da insinuação. Contra as leituras lineares, acariciar as curvas que levam, por vezes aos solavancos, em direcção a sentidos impossíveis, insistentemente escondidos (única forma de se revelarem sem cair nos esgotos da praça pública). Os leitores oblíquos têm de ser aventureiros, ainda cheios da coragem ingénua de quem nunca errou. Precisam de campos abertos onde parecem buscar súbitas fontes de verdade textual, não dessa que alisa o mundo com o rolo compressor dos dogmas e quer durar uma eternidade, antes a certeza frágil que faz emergir vida, ainda experimental, vida gasosa que se esvai alegremente através dos metros cúbicos que compõem a atmosfera. Os leitores oblíquos buscam um clarão que não seja a apropriação definitiva do sentido, a petrificação do texto em coordenadas definitivas, estagnação de morte. Lêem o texto, às vezes num rigor hermenêutico sobre-humano (era esse o desejo de Nietzsche quando dizia que só havia interpretação), mas é neles que tudo acontece, só eles se rasgam até à morte. Paradoxalmente, o leitor oblíquo está sempre em vias de morrer, explodir num entusiasmo dionisíaco depois de descobrir a origem do universo em si.

 

Ao autor resta escrever livros, fazê-lo como “quem joga a vida” (Lobo Antunes, entrevista à Revista Visão, n.º 1085, 19-25 Dezembro 2013, p. 112-122), escrevê-los com o próprio sangue (Nietzsche), num cinzelar constante, obsessivo (“não há talento, há bois, pessoas que marram e marram e marram...”, Lobo Antunes, idem), até que o braço doa de tanto gatafunhar, resmas de páginas que não servirão para nada, a não ser levar o leitor oblíquo a voar imperfeitamente sobre abismos.

Lobo Antunes não gosta de Robert Musil ou Thomas Mann (eu gosto tanto!), mas sabe que “são bons” (idem), porque marraram horas sem fim contra gigantescos edifícios de frases feitas e no fim construíram, com os fragmentos da destruição, palácios que o leitor pode visitar, descobrindo os magníficos brilhos que saem de si mesmo. O leitor canibaliza o autor, apropria-se dele, reescreve-o, banaliza-o ou engrandece-o. Por isso, Lobo Antunes já não se refere a eles como os jovens, medianamente jovens, escritores à espera de reconhecimento e dinheiro (na entrevista são a ausência mais surpreende e necessária). Lobo Antunes escreve para ele, realiza a mais alta de todas as promiscuidades estéticas, a máxima espiritualização do onanismo: ele é um autor-leitor. Sem obliquidades contudo, neste estádio a serpente morde o seu próprio rabo e traça mais um círculo, reafirmando o poder da ortodoxia geométrica. É com tristeza, mas sem me afastar do dever estético de reconhecer que Lobo Antunes é uma das mais belas “estrelas dançantes”, que o vejo “rapar o fundo do tacho” na entrevista da Visão. Como se estivesse com presa de regressar aos livros que continua a escrever, como se não quisesse desviar-se deles e por isso tenha ficado na pele da vida, que neste caso não é a "máxima profundidade”, como pretendia Paul Valéry.

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