Uma espécie de editorial

caderno+5_capa.jpg

por Cassandra Jordão e Victor Gonçalves

Teóricos marxistas decretaram o fim da arte do romance em meados da segunda década do século passado e passaram o resto do seu tempo livre a tentar recolher os cacos. Antes de todos os romancistas que vieram depois e provaram a conclusão errada, antes disso,  há àquela corrida até ao eléctrico algures na Baixa de Lisboa, dividida entre Carlos Eduardo da Maia e João da Ega em Os Maias, na qual, em jeito de epílogo cinematográfico, se declara que ambos tinham falhado a vida. Incesto e ambições literárias frustradas à parte, as implicações desta declaração para a história da literatura em português, para a obra do próprio Eça, são aprendidas de cor por estudantes de ensino secundário em Portugal e podem ser sumariamente citadas. Nesse momento, Eça mede, numa cena que ele sabe que faria para sempre parte de um museu afectivo de cenas maiores da literatura portuguesa, o hiato da desadequação entre a imensa promessa da sua geração, os seus sonhos de autor e a realidade. Ega e Carlos Eduardo então como arquétipos não só da sua geração, mas da literatura da sua geração. Sem grandes melancolias, depois disso Eça prossegue para se dedicar ao mesmo tipo de prazer culpado que entretiveram os seus heróis em França: o romance histórico, novelas em que personagens principais se dividem esquizofrenicamente entre um amor barroco ao enciclopedismo e à tecnologia e ao bucolismo, e a criar uma das personagens mais interessantes e inquietantes da história da literatura em português, esse Fradique Mendes que de algum modo olha para a frente, para a inquietude e para a mente colorida que encontraríamos mais tarde nos heterónimos de Pessoa.

            Tudo isto para dizer que o Caderno 5 da Enfermaria 6 é uma antologia dos textos que mais agradaram ao quinteto editorial da Enfermaria publicados no site em 2017. Que o objectivo deste caderno talvez seja agarrar e perder, e não lamentar perder, essa coisa fugidia implícita na longa corrida de personagens arquetípicas do romance português do século XIX: mais do que deixar uma imagem da literatura a acontecer, ou um cânone lusófono em formação (nunca teríamos a isso pretensão), ou gabarmo-nos de publicar o melhor poeta do nosso bairro, simplesmente queríamos deixar aqui um quadro vivo das coisas que aconteceram na Enfermaria 6 durante um ano, aberto para um impulso de olhar para a frente. Esta é uma recolha de ensaios, poemas, contos, notas, breves apontamentos. A sua função pode bem ser vista como a nossa tentativa de mapear os gestos de alguns autores que, generosamente, connosco, tentaram a sua corrida e tentaram registar o significado de determinados momentos, no seu peso histórico, filosófico, político, poético. No seu peso jogando contra eles ou a favor deles. A favor da beleza do quotidiano, contra o lado reles da burocrática rotina cívica. Enquanto blog, a Enfermaria 6 é actualizada quase diariamente, com textos sobre coisas que ferem e sobre coisas que nos fazem pulsar, de autores maioritariamente oriundos de Portugal e do Brasil. Acreditamos que muitos destes textos merecem um registo menos efémero do que o tempo entre uma actualização e outra do nosso blog. Deixamos aqui então esta nossa proposta de anuário. E comprometemo-nos a tentar voltar para o próximo ano.

Quanto a mim, Victor Gonçalves, acredito que outras teorias além da marxista, ou marxiana (espreito os puristas em cada esquina), quiserem enterrar o romance, ou pelo menos um romance que se estivesse borrifando para a reparação da sociedade, porque não será isso que em primeiro lugar lhe compete, apesar de todas as vagas realistas e neo-realistas. Houve uma onda quase mortífera de utilitarismo que varreu todos os modos de ser supérfluos, justamente esses que fizeram do ser humano algo mais do que um caracol (sem especismos). Mas enfim, somos animais de linguagem e, por isso,  insistimos em ligar palavras a palavras, frases a frases, parágrafos a parágrafos... continuamos, apesar dos pesados decretos legalistas e das diatribes das brigadas da seriedade, a escrever ficção. Poesia ou Prosa (e as entremeadas estilísticas), mais romanceada ou mais conceptualizada, experimentando vias de sentido que julgamos inéditas ou revisitando outras já constituídas. É o amor à palavra que alimenta quase diariamente o nosso Blog, e muitos são os que vivem nesta paixão (não se perca a ambivalência do termo), alimentando-a. Sem cerca de uma centena de escritores que nos doam os seus textos nada disto seria possível, a eles o nosso profundo agradecimento. É verdade que não estão todos presentes literalmente nesta antologia, mas fazem parte da constelação que mantém vivo o projecto.

Epístolas de Horácio - Cassandra Jordão Entrevista Pedro Braga Falcão

capacortada_0121201001511807052.png

Depois de um longo hiato, Cassandra Jordão volta à carga com uma entrevista a Pedro Braga Falcão, a propósito da sua tradução das Epístolas do poeta latino Horácio.

Ficámos de nos encontrar com o doutor (xôtor) Pedro Braga Falcão na livraria Flâneur no Porto. O tradutor de Horácio atrasou-se meia hora e compareceu no seu melhor fato de treino (ainda sem acertar com o detalhe da peúga por cima da calça, contudo). A livraria encontrava-se fechada e, como é costume nestes encontros entre literatos, dirigimo-nos para o café mais literário, mais boémio e mais próximo que nos foi possível encontrar. Ou assim garantimos ao poeta: as mesas eram de fórmica cinzenta com umas toalhinhas de papel por cima, havia uns croissants solitários e tristonhos (talvez de há dois dias, talvez um pouco mais) no expositor do balcão, e quando pedimos dois copos de vinho rosé não havia. Na verdade, nenhuma variedade de vinho estava disponível. Tivemos de nos contentar com café. Para nossa surpresa apareceu acompanhado do seu filho de cinco anos, que falava claramente demasiado e queria muito os croissants de dois dias. O tradutor não nos dispensou toda atenção que merecíamos por causa do pirralho, o que nunca fica bem num erudito.

Pedro Braga Falcão é doutorado em estudos clássicos com uma tese sobre a música da poesia de Horácio e há ainda uma licenciatura em música, como instrumentista de viola de arco (embora PBF não negue o seu interesse pela trompa). É professor na Universidade Católica Portuguesa, gosta de etimologias (Palavras que falam por nós, Clube do Autor), é autor de um livro de poemas (Do Princípio, também pela Cotovia) e há outro livro de poemas a sair em breve pela Enfermaria 6. Nenhum destes méritos iguala a audácia e a autoridade da sua opção por um venerável bigode (se é que podemos chamar bigode a um conjunto esparso de pêlos sobre o nariz). Juntámo-nos numa tarde de Outono, quase inverno, para falar da nova tradução das Epístolas de Horácio.

Como surgiu a ideia de traduzir as Epístolas de Horácio e porquê esta obra em particular? Foi por gostar de ler correspondência alheia?

Se tentar ler as epístolas de Horácio como correspondência alheia, vai ficar bastante desiludida (risos). Suponho que a única coisa que ficará a saber é que Horácio se tratava de um comilão baixinho, grisalho e corpulento, e que tinha um grupo grande de amigos de quem não sabemos praticamente nada. Bem, a Cassandra na sua qualidade de profetisa poderá saber mais qualquer coisa (risos afectados e estupidamente pedantes). Porque decidi traduzir as Epístolas? Na verdade, era a consequência lógica de traduzir as Odes; cronologicamente, era o que fazia mais sentido: as Epístolas foram publicadas a seguir aos primeiros três livros de odes... Mas a minha intenção é mesmo traduzir toda a obra de Horácio (só faltam os Epodos, as Sátiras e a Arte Poética).

O Pedro já havia traduzido as Odes de Horácio (também na Livros Cotovia, em 2008) e, antes disso, o Carmen Saeculare tinha sido objecto da sua tese de mestrado. Não há mesmo mais nenhum autor clássico que lhe interesse?

Claro que há. Aprecio muito Herberto Helder e António Ramos Rosa. Infelizmente ainda não se encontraram os manuscritos originais das suas obras, que toda a gente sabe que estão em latim.

Podia falar-nos um pouco de como começou a sua obsessão com Horácio e de porque é que continua a insistir nela?

Tudo começou quando a minha mãe me ensinou a ser poeta. Passados vinte anos encontrei Horácio. É claro que por vezes ele me aborrece bastante. Mas ensinou-me toda a imperfeição de um verso demasiado bem composto... nunca mais me esqueci de procurar nos versos essa vertigem de compositor de palavras, em tudo o que escrevo. Gostava de dizer que era uma obsessão essa busca, mas receio que ainda não estou nesse estado; ainda deixo alguns versos em paz.

Horácio tem influência sobre a sua criatividade enquanto poeta ou nem por isso?

Nem por isso. A minha criatividade vem da minha infância e das minhas longas brincadeiras no meu pinhal, a sós com o meu mundo de criança. Horácio é apenas um autor de vários que me ensinaram a estar na poesia. Bach, Beethoven, Tchaikovsky, Tom Jobim, Janis Joplin, Chico Buarque, Leonard Cohen, Jacques Brell, Gabriel Garcia Marquez, José Saramago, entre vários, foram outros poetas a fazê-lo. Sou um privilegiado por ter nascido quando toda essa gente já tinha andado por cá.

Que outro autor da antiguidade gostaria de traduzir?

Vergílio, claro. Outro poeta até à medula. Quando acabar de traduzir tudo de Horácio, talvez venha a traduzir tudo de Vergílio. Quem sabe. 

De todas as traduções de autores clássicos publicadas em Portugal na última década, qual a que mais o influenciou e porquê?

As Odes de Horácio da Cotovia (risos algo boçais). Foi uma influência decisiva para esta minha última tradução (continuam os risos idiotas e algo pedantes)... Bom, para dizer a verdade sou mais influenciado pelo trabalho da academia inglesia... Nisbet, West, Rudd... Enfim, tenho uma dívida de gratidão para com o trabalho de gente como esta, e tento sempre ser tão sério e honesto como estes foram na sua actividade intelectual e académica.

Pode elaborar um pouco – para os nossos leitores – sobre porque devemos ler as cartas de Horácio hoje (além do motivo óbvio de se ficar com a impressão de que estamos a ler o heterónimo com menos talento de Ricardo Reis)?

Em geral nunca elaboro antes do meio-dia, pode cair-me mal (não me parece que esteja a brincar, este tipo é um pouco afectado). Ricardo Reis nunca escreveu cartas em verso, o que me leva a considerar que talvez o seu horacianismo deixe um bocado a desejar (risos parvos). Bom, essa pergunta que faz é difícil de responder. Cada leitor terá a sua motivação para ler. A primeira razão é clássica: um texto que sobreviveu a dois mil anos de história num estado impecável de conservação (como poucos!) diz muito da sua qualidade.  Depois, o facto de ter sido o inaugurador de um género (cartas em verso), que conheceu grande fortuna no Ocidente, até ter caído aparentemente no oblívio...

Mesmo em Portugal?... (fui como que forçada a fazer esta pergunta, embora no fundo não me interessasse muito a resposta)

Sim, mesmo em Portugal, grandes nomes da nossa literatura, particularmente renascentista, como Sá de Miranda, Pêro de Andrade de Caminha, António Ferreira, Diogo Bernardes, cultivaram o género... Mas essa não é a única razão. A principal é o texto em si, e as tensões que ainda hoje encerram. A tensão entre agradar aos poderosos e liberdade artística. A tensão entre a boémia e o regramento. Mas também a truculência com que ataca os vícios da sociedade, e como expõe cruelmente toda a fragilidade da natureza humana. E todos aqueles conselhos que poderiam facilmente tornar-se mantras na nossa vida, nil admirari, “nada admires”, sapere aude, “ousa saber, ousa ser sábio”, ou frases lapidares como “mudam de céu, não de alma, aqueles que correm os mares”…

Na sua opinião, há algum autor clássico que ainda não tenha sido traduzido para português que nos faça uma falta enorme? 

Parece-me que toda a historiografia clássica está lamentavelmente por traduzir. Tito Lívio, Tácito, Políbio, no contexto romano; são autores que nos relevam o mundo apaixonante da história de Roma e quase não têm tradução em português. Lamentável.

Se Horácio escrevesse a letra de uma canção punk como seria?

Uma canção que nunca seria editada. É demasiado erudito para o punk. Mas seria muito bom vê-lo tentar. É claro que o facto de nem sabermos onde estão os seus ossos deverá dificultar muito a tarefa.

Ressaca eleitoral

transferir.jpeg

1. Desde os búzios às cartas do tarot, passando por episódios dos Simpsons e por professores universitários e documentaristas, sem esquecer uma antiga primeira-dama americana, não há quem não tenha adivinhado a ascensão de Donald Trump. Qual o espanto, então? 

2. Listemos ideias peregrinas divulgadas por votantes de Trump: a) votámos no sujeito porque queremos mais fábricas e menos Amazons; b) queremos menos ilegais apesar de cá termos entrados todos ilegais (sim, muitos americanos não nascidos nos Estados Unidos votaram no candidato que mais se pronunciou contra pessoas não nascidas no Estados Unidos a viver nos Estados Unidos); c) sabemos que Trump será um democrata, sabemos que Trump será mais democrático do que Obama; d) Trump prometeu o que outros ditadores malditos prometeram porque era necessário conquistar o eleitorado ; e) os imigrantes não têm nada com que se preocupar, já que Trump não tem poder nenhum (parece que não ganhou as eleições da principal potência mundial e que as instituições americanas não têm maiorias republicanas); e) votámos em Trump mas não temos nada contra imigrantes, os nossos pais e avós até nasceram em terras de ilegalidade, mas era preciso fazer alguma coisa contra esta imigração desenfreada (já viram como a imigração para os Estados Unidos quase parou nos últimos anos?); f) este foi um voto contra os criminosos (e depois dos criminosos, quem será o culpado pelos problemas de primeiro mundo que a América enfrenta?); g) queríamos ser ouvidos por um sistema fraudulento (da Trump Tower vê-se melhor um país). 

3. Hillary Clinton é corrupta, dizem. Representa o sistema, acrescentam. Que fez Clinton que Trump não tenha feito pior? Uma mulher não pode ganhar dinheiro em Wall Street? É pouco ético, talvez. E os Trump steaks? E a Trump University? E os casinos? E os impostos dos últimos vinte anos por declarar? E as milhentas declarações racistas, xenófobas, machistas? Como é bom não ter nascido mulher. 

4. A Wikileaks. Os emails. Exacto. Quantos presidentes americanos teriam de ir a julgamento caso existisse uma Wikileaks, um Snowden e um grupo chamado Anonymous para cada um deles? Pois é. 

Para uma ontologia da gralha - uma entrevista de Cassandra Jordão

Um poeta que colabora frequentemente na Enfermaria 6 foi apanhado a cometer uma das piores infracções que se pode imputar a um autor. Este Dostoievsky com sotaque transmontano submeteu-nos um poema onde se podiam identificar pelo menos duas gralhas, sendo que uma o era claramente e a outra, sendo duvidosa, o meliante, depois de questionado, acabou por confessar que aquele sujeito não reflectia o plural do complemento determinativo coisa nenhuma. O frequente conteúdo explicitamente sexual dos poemas do autor não nos perturba, as gralhas, no entanto, são manchas morais à superfície do texto, que na tradição portuguesa denunciam um défice de inteligência contra o qual não se pode argumentar. Perguntem ao vosso professor de clássicas do liceu, alguém que nunca se sentirá fascinado por vocês conseguirem retroverter para um latim ao estilo de Vergílio vinte frases de subordinação complexa, mas que nunca se esquecerá que quando vos conheceu vocês eram uns merdolas incapazes de explicar o que raio fosse um nome predicativo do sujeito. Resolvemos examinar esta questão com o poeta em causa, tirando evidente vantagem do facto de agora estarmos informados que existe um certo défice de atenção da parte do autor. Esta entrevista é um contributo para uma psicologia e ontologia da gralha.

Quando questionado acerca da origem das gralhas no seu poema, você afirmou que escreve os seus poemas meio em transe e daí as gralhas ocorrerem. Devemos assumir que depois de aturar o Nobel da Literatura para Bob Dylan (acontecimento que desautorizou toda uma facção de intelectuais da nação que apreciam uma leitura ordeira, baseada na autoridade e no respeito de e por uma certa definição de literatura), temos agora de acreditar que as suas gralhas se devem a uma certa pressa de capturar o mais rapidamente possível o que quer incluir nos seus poemas, em vez da explicação mais natural, de que isto é evidência de um défice de 50 pontos no seu QI?

Às vezes é mesmo porque estou bêbado. Escrevo muitas vezes bêbado. Entra-se melhor no tal transe de que falei. As palavras não se puxam, elas escorregam bem quando a digestão é feita em condições lá nas circunvoluções onde moram os pontos todos, os poucos, menos esses 50. Também é a pressa, não de chegar ao fim do poema, mas de apanhar as palavras todas enquanto elas caem. Algumas ficam meias penduradas entre a ignorância natural e a lentidão dos dedos. Afinal não estudei para poeta, foi um título que fui roubando desde a adolescência.

Não é fácil continuar a ler um poema depois de topar com uma gralha. É extremamente perturbador para a leitura. Você podia ser o Wallace Stevens, ainda assim para alguns dos nossos leitores não seria fácil continuar a ler. Concordaria que as pessoas mais inteligentes do que você, ou seja, todas as que apanharam a sua gralha, têm agora o direito de ser paternalistas consigo?

Sei que deve ficar a latejar nos cérebros dos génios, de tal forma que o resto do texto perde nitidez. Como quando acendemos um cigarro na escuridão depois dos olhos estarem adaptados à ausência de luz e parece que tudo se apaga outra vez. Se não vivem em casa dos pais, podem ser o que quiserem. O benefício de ter pouca massa cinzenta é que dá espaço para criar um túnel de orelha a orelha.

Gostaria de partilhar connosco alguma gralha particularmente embaraçosa?

Cu com acento, repetido em todos os cus do meu primeiríssimo livro… e foram muitos. Era jovem…

O poeta romano Horácio diz que os poemas deviam esperar 8 anos na gaveta antes de saírem cá para fora. Publicar é cada vez mais imediato. No seu caso, acha que esta solução o pouparia à gralha? Haveria aí alguma vantagem?

Os poemas corrigem-se sozinhos nas gavetas? Se eu soubesse disso antes… Devo ter poemas imaculados no meu quarto em Trás-os-Montes. Estão na gaveta há mais ou menos o dobro do recomendado por esse gajo.

Compreende que andem para aí uns quantos leitores da Enfermaria que poderão entender a sua gralha como uma homenagem a Donald Trump (uma alusão à incapacidade do candidato republicano de praticar a hipotaxe). O que tem a dizer sobre isso?

Bó, tenho muito pouco a dizer: wrong! Que s´arrafoda o Trump.

Questionário standard para autores fora de série: Carla Diacov

Ilustração de Carla Diacov. 

Ilustração de Carla Diacov. 

A Enfermaria 6 enviou-me até São Paulo para entrevistar uma autora que frequentemente colabora com este site, Carla Diacov, por ocasião do lançamento do seu novo livro. Estava um dia quente e para minha decepção não me foram oferecidas caipirinhas. A autora recebeu-me em sua casa ainda de faca na mão, avental e saltos altos. Recordo o pormenor de vegetais cortados, mas nenhuma galinha degolada. Não foi desta que conversamos sobre Clarice Lispector. 

No seguimento de Amanhã Alguém Morre no Samba, estás agora prestes a publicar Ninguém Vai Poder Dizer Que Eu Não Disse, pela Douda Correria, e a metáfora mais gentil do mundo gentil, pelas Edições Macondo. Isto podia ser descrito como um período prolífico. Tens uma disciplina para escrever? Algum ritual em particular?

Lindona Cassa... posso te chamar assim? Bem, lindona Cassa, não, não se trata de um período prolífico.  Claro que sofro disso de tempos em tempos. Diria que o fenômeno (Nessa parte nos abraçamos para rir um pouco? Juntinhas? Ah, que alegria!) deu-se pela sincronia nas propostas das duas tão queridas editoras. (Agora podemos nos soltar. Não gosto de largar minha faca e sei que isso é perigoso quando se fala sobre poesia.) Não tenho diciplina para nada além da medicação: trato perebas mentais (Cassa, não olhe assim para a faca!), fobias, depressão e uma moderada sindrome do pânico, TOC, entre outras perebas menores.  Há algo de diciplinar no rito da escrita, mas numa questão mais rito que diciplina: acordo, tomo meu café e me sento à escrivaninha com uma estante de livros nas minhas costas. Me atualizo com a internet e deixo abertos os arquivos que estão na “fila”, coisa que não significa que a escrita se dará. Forcei esse ritual por um tempo até que isso fosse orgânico em mim. Nos dias em que a escrita não comparece, viro minha cadeirinha para trás e leio ou volto para o ecrã onde também leio, vejo filmes e faço umas pesquisas e exercícios. Uso muito, numa diversão quase perversa, o google tradutor. Explico: Colo ali um poema meu ou de algum afeto literário, embaralho o poema, peço ao nhô google para traduzir para o latim então do latim para o polonês então para o punjabi e volto para o português. No mínimo dou umas boas risadas e no máximo tiro dali o “epicentro” da brincadeira e faço um poema ou uma prosinha com. Essa é uma das técnicas (Outro momento daqueles tapas de colegas! Impostora véia danada! Pô, Cassa!) que uso quando o branco me cobre os dias.

Sobre rituais... Ah, meu bem! Desde sempre sou toda TOC e os rituais ligados ao ato escrever não me cansam nem causam grandes sofrimentos, como a maioria dos outros faz. (Ah, Cassa... Dê cá outro abraço que te faço a bendita caipirinha!).

A tua formação é em teatro, e há uma dimensão performativa na tua poesia. Há algum dramaturgo que te tenha influenciado particularmente? Escrita, teatro, desenho? Qual destes é o teu modo de expressão principal? Descreverias algum destes como secundário?

Ó, Cassa, sim e sim e sim! Não sei... Olhe só, comecei a me interessar pela escrita com Édipo, tive um caso sério e muito tulmultuado com Sófocles na época. Shakespeare nunca deixou de piscar pra mim. Mas quando conheci Heiner Müller, Harold Pinter, Karl Valentin, Brecht, Nelson Rodrigues, Sam Shepard, Tennessee Williams, Strindberg e Sartre… É isso e bem aqui! Tenho que após o contato com esses gênios minha inner escritora resolveu tomar de assalto a casa toda. Também Dorothy Parker e Cortázar comparecidos a uma adaptação teatral da qual fiz parte.

Ler peças é muito produtivo por aqui. Ler e reler teatro é um dos meus exercícios capitais.

Meu modo principal é a escrita, mas se ela não comparece, parto para os desenhos, para o meu pequeno laboratório de estar com as imagens, com objetos, coisa que, fatidicamente me leva de volta à escrita. Sempre. (Outro abraço?)

Sim. Acho que, como segundo plano, parto ininterruptamente para as plásticas.

Sou sinesteta. Descobri que isso não acontece com todo mundo, como quase todo sinesteta, após a infância e a sinestesia já me atrapalhou muito na escrita, mas eu soube contornar e faço bom uso dessa ferramenta mais.

É difícil de traçar uma influência decisiva na tua poesia. Há temáticas recorrentes, e alguma coisa na atmosfera dos teus poemas por vezes parece reminiscente dos mundos de Frida Kahlo. Que autores segues? Achas que influência de outros autores é relevante para o teu trabalho ou nem por isso?

Cassa, devo dizer que gosto de fazer isso ficar difícil. É um dos meus escopos. Acho bacana ter um estilo. Acho mesmo muito bonito. Comigo é que não funciona. Não gosto, me incomoda, fisicamente até, perceber que estou num caminho “desenhado”.

NÃO ESTOU DIZENDO QUE TODA POESIA DENTRO DE UM ESTILO SEJA DESENHADINHA OU CHATA!

(Me perdoe, Cassa. Não queria gritar com você. Foi um grito comigo, tá?)

Tenho como referência prima a atmosfera de muita gente, não parece, mas releio muito Emily Dickinson.

Me atraco com Galeano, Ezra pound, Dylan Thomas, Sebastião Alba, Manoel de Barros, etc.

Angélica Freitas mantém minha sutança em dia. Percebo a flanagem dessa mulher incrível por mundos e mundos. Afora ser uma pessoa muito querida, aberta aos novos passos, faz seus novos passos, é muito gentil com seus seguidores, toca formas e formas de cultura e tão bem humorada. Também tenho esse sentimento com o Reuben da Rocha (CavaloDada), Tazio Zambi, Nydia Bonetti, Ricardo Domeneck, André Capilé, Otávio Campos, Guilherme Gontijo Flores, com bastante escritores da atual e eletrônica (Eletrônica, Carla? Mas que tia véia! Ó, Cassa... És tão doce!) geração, aliás, sou bem feliz em ter tantos blogues, tantas revistas on-line com a disposição de publicar gente boa e nova.

A poesia de Portugal me arrebata. Raquel Nobre Guerra, o próprio Nuno Moura e a(o)s poetas que Douda traz aqui pra casa quase que semanalmente.

O mesmo com a Macondo. >>> experimento esse gosto bom: fui parar nos lugares certos, dei as mãos aos afetos que teriam de ser, de alguma forma seríamos e somos >>>

Me encanta muito a poesia e o olhar poético de Maria Sousa,

de António Cabrita >>> que honra cheia de alegrias ter um prefácio assinado pelo Cabrita! >>>  

de Inês Dias, do multifacetado Hugo Milhanas Machado ... Dito isso, sim! É relevante, me é vital a influência dessas belas pessoas. Certamente me esqueci de tantos!

E meus sonhos, Cassa. Sonhar é meu outro laboratório. Tenho poemas inteiros sonhados e na época do teatro “transcrevi” cenários, figurinos e textos dos sonhos.

As temáticas recorrentes... É quase certo que isso esteja diretamente ligado ao meu TOC. Me sinto um tanto desconfortável se não faço de um poema “favorito” uma série.

Publicaste o teu primeiro livro em Portugal, há um para sair deste lado do Atlântico, e o mais recente vai ser publicado esta semana (25/08/2016) no Brasil. Como descreverias a tua experiência de publicação (e recepção) nos dois países?

Cassa, isso tudo é uma grande surpresa da qual eu ainda me recupero e pretendo estar a me recuperar por um bom tempo: QUE PANCADA BOA! Fui convidada a publicar, em ambas editoras. Não havia ainda um projeto VOU PUBLICAR UM LIVRO.

Ah, sim, não posso jamais me esquecer de Nina Rizzi. Essa mulher, essa força foi a primeira a me pegar pelas mãos e dizer VAMOS FAZER UM LIVRO! O livro que tenho pelo selo da Ellenismos, a revista lindeza da Nina, é eletrônico, mas está lá, é um livro, pois.

(não estamos brigando, Cassa! Tome aqui a caipirinha... dois dedinhos de açúcar, limão, socar e socar com o cabo da faca, gelo, cachaça e uma gota de própolis!)

A experiência em publicar com a Douda é puro amor, é muito carinho. Também com a Macondo.  Sei cá no Brasil de amigos com histórias terríveis no processo da publicação. Nunca me senti tão afagada e confortável em fazer esses trabalhos. Os amigos e contatos que esses livros, essas editoras me trazem... tivemos aí um crítico que se aplicou em falar mal dos leitores e muito pouco do livro. Na ocasião fiquei bem brava com ele, mas cá entre nós, Cassa, como foi tudo muito rápido, surpresas lindas e mais surpresas, estou de bem com isso hoje. Quero é o diálogo (É. Eu falo muito disso.) que só a arte faz/traz, quero é o toque das pessoas sobre o poema. Me importa mais esse diálogo. Claro que igualmente me importa a opinião de muita gente.

O resto é teoria miasmática.

Descreverias a tua poesia como comprometida? Se sim, com o quê?

Absolutamente. E absolutamente dessa forma: É uma boa transformista e se compromete com o momento em que é escrita.

NÃO ESTOU DIZENDO QUE TODA POESIA TRANSFORMISTA TEM ESSE COMPORTAMENTO!

(Me perdoe, Cassa. Não queria gritar com você. Foi um grito comigo, tá?)

Se houver uma causa dando bobeira por perto, pode ser que minha poesia se comprometa com, mas dificilmente isso acontece.

Muita gente vê feminismo em muito do que escrevo.

É, Cassa. Temos aí, no feminismo, um comprometimento que chegou como que intuitivamente.

Me perdoe. Você foi engana o tempo todo: não era limão.

Dizem que nascemos feministas. Também dizem que isso de nascer feminista é a mais pura bobagem. O povo fala, você sabe.

Então digamos que minha poesia não é absolutamente descomprometida e sim absurdamente disposta a se comprometer a todo momento desde que a causa consiga pegar meu rosto que, escrevendo, faz movimentos de peixe besuntado no limo.

(Cassa, perdoe os machucadinhos, você mesma viu: falo muito com os braços e não largo a faca, não é? Tome: Fiz uma garrafada da caipirinha para os enfermeiros.)