Entre uma leitura corsária e uma trajecção crítica

Na revista Philosophica n.º 42 de 2013, editada pelo Departamento de Filosofia da Universidade de Lisboa, Rafael Marques propõe operar com o conceito de “Leitura Corsária”. Nele justifica a recepção que fez de um texto de Georg Simmel sobre os pobres (artigo de 1907, publicado em Soziologie, Leipzig). Em poucas palavras, Simmel retoma a ideia do seu tempo sobre o carácter relativo da pobreza, mas não apenas a uma época ou sociedade (alguns pobres ocidentais são mais ricos do que os habitantes normais de certos países em vias de desenvolvimento), também a um grupo. Cada comunidade, categoria profissional ou família pode ter membros que são considerados pobres. O que os une, conceptual e existencialmente, é que, de uma ou outra forma, são assistidos pelo seu grupo de pertença (família, categoria social, Estado...). Assim, para Simmel a visibilidade da pobreza não resulta de uma qualquer essência que soberanamente fizesse aparecer o seu sentido, mas do facto de ser assistida, a pobreza define-se pela reacção que um grupo tem em relação a ela. Tudo isto é hoje traduzido, numa amálgama por vezes pouco feliz, pelo “assistencialismo”.

Bom, não é esta linha de investigação que mais me interessa hoje. O belo artigo de Rafael Marques (do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa), “Por uma Leitura Corsária de os ‘Pobres’ de Georg Simmel”, defende uma “leitura pretextual e corsária” do texto simmeliano, que se traduz numa “pilhagem de conceitos e ideias esparsas que o berlinense deixou ao longo da sua obra.” Cheirando a pecado de arbitrariedade, diz logo a seguir: “Mas o acto de corso não é uma pirataria sem sentido, ele faz-se com o móbil de construir algo de novo, com base em fragmentos que raspamos e sobre os quais impomos uma nova ordem e uma nova possibilidade combinatória. O método, se ele assim pode ser definido, é o do palimpsesto.” (p. 57) Aqui está um entendimento com o qual me identifico, contra aqueles que, num dogmatismo ingénuo, dizem ser de um rigor inexcedível na apanha do sentido do que lêem. Heróis de uma hermenêutica capaz de recuperar a intenção dos textos, a única e derradeira intenção, numa palavra, a verdade do que foi escrito. Sendo que com isso produzem um real rigor mortis.

Por isso, à maneira, minha maneira, de um pequeno dispositivo de auto-ajuda hermenêutica: a) ler bem não obriga a uma fidelidade absoluta ao texto, onde a leitura fosse apenas uma redundância da escrita, o leitor encontraria e coincidiria totalmente com as pegadas na neve do escritor. Tal é, aliás, inverosímil, ler é sempre interpretar (como numa partitura musical). Apesar disso não significar que todas as interpretações são igualmente válidas, há‑as disparatadas ou irrelevantes tanto quanto, em oposição, precisas e pertinentes. Mas mantém-se o princípio, comprovado pelas oscilações históricas na recepção dos clássicos, de que não existe a leitura correcta. b) Deve-se evitar, num certo antagonismo com o pressuposto anterior, o ‘jogo livre’ da linguagem no vazio, isto é, uma interpretação que seja a reescrita ex nihilo do texto original. c) Podemos guiar-nos por uma mini-ética da leitura que recuse intencionalmente interpretações instrumentais e, como refere Gilles Deleuze, evite a tristeza do autor.

Para pano de fundo teórico do que acabei de dizer, talvez seja útil pensar com Jean Starobinski sobre o conceito de “trajecto crítico” (trajet critique), fio condutor entre uma recepção ingénua e uma compreensão englobante, uma leitura regida pela lei interna do texto e uma reflexão autónoma face a ele e à sua história. A leitura como trajecto crítico deve ser, diz Starobinski, uma “escola da atenção”, à qual o intérprete está sujeito, obrigado a olhar criticamente as suas próprias observações. “Atenção” que nunca, por mais criteriosa que seja, esgotará os sentidos dos textos, mantendo-se vivos justamente porque resistem, discreta ou intempestivamente, à pretensão hermenêutica de elucidação total, não se deixando demonstrar more geometrico. Assim, a finalidade da interpretação não é a de “compreender a obra em função de um sistema, de uma ideologia ou de um qualquer saber.”  Pelo contrário, trata-se de ser capaz de entrar na densidade da obra, ou do texto, não para a explicar minuciosamente, mas a partir dela iluminar o que está na obscuridade, usá-la para se ver melhor o homem e o mundo. (Cf. L'œil vivant II : La relation critique, Paris: Gallimard, 1970, p. 13) De modo semelhante, Jean-Paul Sartre dizia que “cada livro propõe uma libertação concreta a partir de uma alienação particular.” (Qu’est-ce que la littérature? (1948), Paris: Gallimard, 1989, p. 78)

É esta tensão entre libertação, constituição de novos sentidos, e alienação, nos horizontes de expectativa vigentes, que deve presidir às preocupações gerais que nos constituem como leitores, uma arte da leitura que se quer ao mesmo tempo uma ética da leitura.