O teu irmão no escuro

ele flutua
como preservado
num preparado de noite

o seu coração
projectado fora do peito
bate
bate
para nossa diversão
olha as artérias
que o ligam ao corpo
torcidas e enoveladas
dizia
ele bate no escuro
para nossa diversão
vês
sabes
eu acho
que o mundo precisa
de mais bondade
devíamos ser treinados
desde novos
na arte da bondade
não achas?

e depois bates no vidro
e acenas um adeus
ele não responde
o teu irmão no escuro

passas
à próxima peça
em exibição

Conto de Natal

quando a sereia estava prestes
a iniciar o seu canto
Ulisses disse
                        espera
não te enfadam
as águas geladas?
ofereço-te uma cama quente
peixe com fartura
a oportunidade
de ver o mundo
e a sereia hesitou

na sua gaiola
ela cantava um canto
cada vez mais desesperado
Ulisses exigia aos ouvisses
que pagassem adiantado
antes de serem
levados à loucura
e com cera nos ouvidos
contava o lucro

mas animais selvagens
não duram em cativeiro
a sereia
deixou de comer
o seu canto
cada vez mais estridente
fazia tremer
os madeiros do lenho
enchia de medo
o coração dos homens
e o líder
cedeu por fim
aos princípios
de boa liderança
e teve a coragem
de dar a ordem
para que outros
tratassem do assunto

enlutados os navegadores
prosseguiram a sua viagem
aportaram no Dubai
e lá passaram o Natal
num hotel de cinco estrelas
dissipando o dinheiro
que tinham feito com a sereia
em excessos
de toda a espécie

Fim

haverá cantoria hoje

haverá cantoria hoje
a delegação Sul Coreana
gastou milhares de libras
num sistema de karaoke
de alta cilindrada
todos os reservatórios de lágrimas
se irão esvaziar
quando o grande homem cantar
Always
dos Bon Jovi
aquilo não é carne para o meu dente
disse a Lena
e depois apaixonou-se
por um bêbado que lhe batia
e se vestia de pedinte
quando ia ao médico
para renovar
o atestado de loucura
a sua voz era impecável
quando cantava o fado

domado o intento há ainda
que resolver a questão do canto
a perversa natureza
que nos impele

Tratoria da Ubaldo

depois de subirmos as escadas da torre
alcançarmos a árvore no cimo
atravessámos a piazza vazia
e parámos para comer e descansar
na Tratoria da Ubaldo
onde um pirata cortês
nos conduziu à nossa mesa
e trouxe
uma garrafa
de Vino di Cazzo

di dove sei?
o louco local
di dove sei?
o seu corpo septuagenário
tremia de alegria
Portogallo!
Portogallo!
e cantou para nós
incitando-nos
a que acompanhássemos com palmas
a dança que
em nossa honra
fazia