«Dezoito», um pequeno "romance fluvial" de Giorgio Manganelli


Tradução: João Coles

Aquele senhor que comprou uma gabardine usada, um chapéu de aba larga, que fuma nervosamente, e anda para a frente e para trás num quarto de hotel decadente que teve de pagar de antemão, decidiu, há dez anos, que quando crescesse queria ser assassino. Já cresceu, e não há nada de novo, nem os amores, nem os pequenos-almoços saudáveis de manhã, nem os hinos eclesiásticos, modificaram de forma alguma a sua decisão, que não se tratava de um capricho infantil, mas de uma escolha sábia e ajuizada. Ora, um assassino precisa de poucas coisas, mas coisas peculiares. Deve possuir uma arma ao mesmo tempo prestigiosa e elusiva, uma mira perfeita, um comitente, e uma pessoa a quem matar; o comitente, por conta própria, deve possuir ódio e interesse, e muito dinheiro. O difícil é obter todas estas condições ao mesmo tempo. Uma vez que o seu temperamento oscila entre o fatalismo e a superstição, está convencido de que um verdadeiro assassino não poderá senão encontrar-se na situação prevista, mas que, sendo essa uma situação complexa e altamente improvável, pode acontecer não se o assassino for competente, se a arma for a certa, se existir em algum lugar um grande ódio ou um interesse terrível, se houver dinheiro para matar, mas se alguma coisa nos céus, nas estrelas, talvez em Deus em si, se existir, intervir e aglomerar esses fenómenos dispersos e geralmente distantes o suficiente para não conseguir reuni-los.

Ele quer ser digno de uma escolha à qual não hesite em atribuir um carácter fatal. Portanto, depois de ter escolhido um traje qual túnica, decidiu tornar-se uma mira perfeita. É um noviço, mas tem a vocação de um asceta. Apercebeu-se imediatamente de um erro cometido por todos os aspirantes a assassinos; treinam-se com alvos falsos. O alvo falso não põe à prova o ascetismo do assassino. Este princípio, por si só incontestável, induziu o assassino a algumas conclusões: ele estabeleceu que deve aprender a mira perfeita em condições perfeitamente ascéticas. Não deve atingir, deve matar. Não os animais, pois querem ser abatidos. Homens? Mas matar um homem que não por dinheiro é exibicionismo fátuo. Resta-lhe uma única solução, uma verdadeiramente ascética. Deve treinar com a mira a apontar para si próprio. Acaba de posicionar a arma num canto do quarto, numa posição alta, e atou o gatilho a uma corda. O assassino medita. Agora apontará para si. E depois? Se falhar, estará a salvo, mas desclassificado como assassino; se acertar, alguém morrerá: o assassino. Hesita demoradamente: mas sabemos que no final prevalecerá a sua consciência profissional.


O nosso amigo em comum

O nosso amigo em comum meteu-se desta vez em trabalhos sérios e entregou-se na manhã de ontem às autoridades, fiquei a saber por uma vizinha nossa e queria que também tu tivesses conhecimento, tão longe que te encontras aí nessas planícies de vento e de pedra. Suponho que não conheças muito da história, por isso permite-me deixar-te aqui os traços gerais de um episódio que veio abalar, mais do que alguma vez esperado, a habitual tranquilidade do nosso bairro. Sentirás porventura nas minhas palavras algum escrúpulo em condenar abertamente o comportamento do nosso amigo, mesmo nos seus momentos mais abruptos e insensatos. Fica porém sabendo que tal se prende menos com algum tipo de avaliação condescendente das suas acções ao longo dos últimos dias, o que aliás seria praticamente impossível, considerando a sua extrema gravidade, do que com certo sentimento de culpa que desde ontem lentamente me tem invadido, firme e crescente como batalhão inimigo avançando sobre milheirais indefesos ou a primeira neve da estação fria. Não que eu tenha tido qualquer parte, moral ou juridicamente condenável, na forma infeliz como os acontecimentos se precipitaram. Ainda assim, enquanto observador atento de todo o estranho caso, bem como na qualidade de agente desencadeador do conflito criado, e verás como efectivamente o fui, não posso deixar de me sentir responsável pela perdição em que terá caído o nosso bom amigo em comum. Tu mo dirás, se assim entenderes. Não to peço, embora suspeite, conhecendo-me como julgo conhecer, que também estas linhas andam em busca de algum perdão ou paz de espírito.

Mantém minha mãe, desde que deixei de trabalhar, o feliz hábito de me vir despertar todas as manhãs às oito horas em ponto com a sua doce saudação de bons dias e o providencial amargor do café forte que só ela sabe fazer. Em meu abono devo dizer que de início por várias vezes a tentei convencer de que não havia necessidade de semelhante tratamento a fazer lembrar realezas ou tempos de infância em dias de febre. Mas ela insistiu, asseguro-te, alegando não lhe custar nada, ser até para ela uma rotina prazenteira. Insistiu e eu não me opus. Creio que no fundo é a forma de ela tratar de garantir-me uma certa disciplina de horários e não permitir que, passando eu agora a maior parte do tempo em casa, a vida doméstica não descarrile em letargia e desmazelo. Considerando que os meus projetos pessoais a seus olhos não mais parecem que passatempos ou no máximo afazeres de circunstância, ao menos um despertar a horas certas permite-lhe acreditar com alguma convicção que o filho não é aquilo a que poderia chamar-se um inútil, um desocupado. Estou em crer, como te digo, que essa maternal invasão dos meus aposentos, todos os dias à mesma hora, acompanhada do invariável procedimento de desejar-me os bons-dias, pousar o café na mesa de cabeceira e afastar os cortinados para abrir passagem à luz da manhã, é a maneira de minha mãe conservar o seu domínio sobre uma situação que não é de todo do seu agrado e desse modo não deixar que o filho se perca. Que ele não se vá abaixo, como uma vez a escutei dizer ao telefone à minha irmã. Que após eu ter recebido parte da ampla herança de minha tia eu tenha abandonado o emprego mais enfadonho da história para finalmente me dedicar à escrita do grande romance é algo que ainda não lhe quadra, eu sei, estou consciente disso, mesmo que desde muito cedo, a meu pedido solene, ela tenha desistido de mo dizer abertamente, tendo igualmente da sua parte constatado a inutilidade de quaisquer argumentos perante a minha determinada posição. Tolera-me por conseguinte a vida de recatado literato que a fortuna me permitiu adoptar, reservando-se o direito de me disciplinar horários, refeições e um ou outro abuso de linguagem. Foi por isso ela a anunciar-me certa manhã de abril, ainda eu mal acordado e pior saído de um sonho confuso, meu deus, vem ver, estão a cortar o cipreste.

O cipreste do bairro, sabes? Não sei se os tens por aí, para dizer a verdade desconheço as paisagens que contemplas ou por que arvoredo te moves. Algum cemitério triste os terá seguramente, são árvores dadas a espaços exíguos. Mas falo-te nem mais nem menos do rei do bairro, aquele colosso firmemente plantado no jardim de uma vivenda vizinha, numa rua paralela à nossa, e que eu me habituei a admirar, desde que me conheço, emoldurado pela janela do meu quarto. Destacava-se de árvores e casario em volta pelo seu denso corpo de coluna enegrecida e ao poente era a primeira forma a lançar com violência o seu marcado contorno contra o desmaio do céu. E agora, como se de um crime à luz do dia se tratasse, um bando de algozes munidos de moto-serras amputavam-lhe os grossos braços perante a chocada indignição de minha mãe. Foi o assunto do dia lá em casa e já na sala a televisão ligada sem som surpreendia por ignorar a notícia da atrocidade que naquele momento se perpretava. Ao mesmo tempo que minha mãe, possuída por repentino dever de proteção ambiental ou talvez, estou em crer, por esse tão humano instinto de resistir à mudança, se empenhava na procura de contactos de gabinetes e secretarias municipais para onde ligar a denunciar a criminosa infração, eu por meu lado tive então a infeliz iniciativa de telefonar ao nosso amigo em comum, desencadeando assim, como verás, os tristes factos que depois o levaram à perdição. Infeliz iniciativa, certo, mas penso também que inevitável, considerando a minha disposição naquelas horas, o estado de alma, como costuma dizer-se, e a sensibilidade contagiante de minha mãe, absolutamente determinada em defender a vida daquele bom gigante. E ao dia e hora em que te escrevo, consumado já tudo o que de pior se poderia imaginar, julgo entender com maior clareza, tanta quanta vai já faltando à jornada que termina, a importância daquele cipreste no bairro, e de todas as verdadeiras árvores à face do planeta.

A permanência. A permanência, digo-te, muito para lá de qualquer convicção ecológica. O que nos perturbou lá em casa foi essa constatação de uma permanência subitamente demolida pela decisão caprichosa de um qualquer insignificante indivíduo. Insignificante e temporário, impermanente. Como suportar o insulto de uma constância ameaçada em nome da vontade de alguém que daqui umas décadas já não andará por aqui? Aquele cipreste, simbolizando a cadência justa e equilibrada dos meus dias passados à secretária do avô, em busca da palavra justa no lugar mais acertado, aquele cipreste, repara bem, agora pura e simplesmente sonegado à nossa rotina, desfeito em toros de lenha e amontoados de folhagem sem vida, deixando no horizonte uma lacuna do tamanho de um monte escuro. Tudo isto fiz ver ao nosso amigo em comum nesse fatídico telefonema, com o exclusivo objectivo, acredita, de partilhar com ele a minha revolta, envolver no assunto um amigo, um outro membro da comunidade, para que se juntasse a uma qualquer onda de reprovação, não mais que isso, uma vez que pelo que podíamos verificar pela janela já pouco ou nada poderia ser feito para salvar o cipreste do seu funéreo destino. Mas imagino que o devo ter apanhado num dia de maior susceptibilidade, digo-o em minha defesa. Acontece às vezes, não? Uma palavra dita no tom exacto, no momento crucial, ao ouvido da pessoa mais sensível para a escutar. Talvez tenha sido isso, espero um pouco, que o tenha levado a reacções tão extremas, mesmo considerando a gravidade do crime que se cometia.

Conto-te um pouco do romance que ando a escrever, tens paciência ainda? Não imagines grande disciplina de trabalho da minha parte, pois infelizmente me acho bastante dado a dispersões de todo o tipo, alguém que me telefona, pequenas tarefas domésticas ou simplesmente essa tão recorrente incapacidade de me sentar à secretária e verter tinta sobre papel, desbastar a brancura a golpes de texto, escrever um parágrafo qualquer, por mais escasso e desconexo que seja, para assim pelo menos partir, sair do sítio, que é o contrário de ficar preso, retido, aprisionado no mesmo lugar. Penso que é medo. Medo de escrever. Ou medo de começar e não saber para onde, por onde. Medo de abandonar a segurança do tempo e do espaço anterior ao texto, ou então, muito provavelmente, terror de descobrir até onde as palavras me podem levar. Conto-te então a história, o início da história que há-de ser? Um jovem casal, Teresa e Alexandre, decidem um dia abandonar a sua agitada vida urbana, repleta de compromissos profissionais e sociais, e vir habitar uma casa de província, na orla de uma floresta. Buscam tranquilidade, tempo. Buscam talvez até algum estado primordial, no qual a existência humana se manifeste simplificada, liberta da violência do pensamento. Mas quem lhes disse que ali junto à floresta, longe da gente e da cidade, poderiam encontrar o que buscavam?

Termino já, não te aborreças, fugiu-se-me a carta do propósito inicial. Nem cheguei a perguntar como estás, que coisas contas da tua vida remota, quando planeias voltar a casa. Tu me contarás em resposta a isto, peço-te. Em todo o caso, ficas por mim informado que no passado dia 14 de Abril, o nosso amigo em comum agrediu a golpes de machada os três funcionários da empresa contratada para nesse dia abater a maior árvore do bairro, eliminando-a assim para sempre da nossa paisagem. Após a bárbara agressão, de que felizmente não resultaram mortos, ainda que dois dos indivíduos tenham sofrido ferimentos considerados graves nas costas e membros superiores, o nosso amigo abandonou o local na sua viatura, tendo andado fugido às autoridades durante três dias, precisamente até ontem de manhã, altura em que decidiu entregar-se. Diz-me minha mãe que será amanhã apresentado ao juiz.

diná



conheço diná de uma fotografia. diná está de costas, metida num maiô vermelho, sozinha, com as mãos na cintura, como quem planeja uma viagem ou o suicídio, diná olha o horizonte para além do atlântico. o ocre predomina a imagem e, não fosse o maiô, diná seria camuflada na paisagem de areia e rochas. essa foto está num álbum da minha família e ninguém sabe dizer quem é a mulher. a chamo de diná, porque outro nome não cabe. uma mulher de maiô vermelho em mil novecentos e setenta e quatro, um ano antes do meu nascimento, a mulher que veste minha cor favorita. diná entre fotos da barriga da minha mãe, minha infância, festas de família, granulada diná entre crianças choronas, adultos bêbados e muitos cachorros. de todas as fotos, diná. que faz diná debaixo do plástico de uma das páginas de um álbum mais velho que eu? minha mãe diz que a leva foi tirada no litoral norte de são paulo. alguma praia quebrada, caída, com muitas rochas no entorno. a praia de diná. perdeu a carona numa lancha ou perdeu seu filhinho de vista ou, depois de uns mergulhos, diná desorientada, submergiu no local de areia errado e não onde estavam seus amigos, sua família, sua bolsa. todavia ela olha o mar. diná escolhe a linha que segura a água contra o céu. põe as mãos na cintura e aperta os olhos castanhos, prende os pés na areia, como se fosse possível, como se a areia fosse um poleiro e diná uma arara, como se a atmosfera quisesse arrancar diná de ser diná na fotografia do nosso álbum. agora um náufrago prende a atenção de diná que não se desespera, mede as braçadas necessárias até a areia, pensa no caminho que faria, mas não é ela o náufrago e daquele ponto, o pobre nem a vê. volta a roçar a linha fatal, o cálculo impossível, construir barcos fora dos preceitos náuticos. nada a flutuar, a não ser a hipótese de um voo raso em grandessíssima velocidade, irritar terríveis ondas, afastar o náufrago da costa, impossibilitar seu sofrimento de retorno, afogar o homem na intranquilidade azul, chegar até o limite, até o horizonte que, a essa velocidade, jamais se afastaria de uma mulher de maiô vermelho e com as mãos na cintura. um dia diná escapa da foto e aí quero ver. vou estar de olho em quem da família, além de mim, sente a falta de diná.



do lado esquerdo da minha avó

vovó teodora me ensinou a comer bolo com pimenta. também ela me ensinou que “país não é a pátria. o país é e é onde pisamos, o que plantamos e colhemos. onde pisamos é a união dos homens em torno da glória e a glória é comum a todos os seus. tudo é país, tudo é a glória. se um de nós não conhece a glória, a glória é de ninguém”. eu era muito pequena e pensava que a glória fosse uma mulher muito bonita e forte, uma mulher enorme. vovó era uma romena que conhecia intimamente a língua russa, coisa de um tio ou primo. conheceu vovô gheorghe no navio, como jack e rose, mas não como jack e rose, esse navio chegou intacto ao porto de santos. não se sabe muito mais que isso. nossa história é um tanto perdida. gosto de pensar que, ainda no navio, minha avó olhava as estrelas e pensava nas irmãs, tios, tias e mãe que deixou para trás, pensava nos gostos de sua terra, nas texturas e no peso da neve sobre os arbustos das pequenas frutas selvagens. embarcada, andava com os pés no chão e com os dedos na murada do navio. andando assim, trombou os dedos nos dedos do vovô gheorghe, um russo bitelo, bem apessoado, de cabelos arranjados para trás e olhos azuis. “parecia um peixe-espada tímido e brilhante” diria. gosto de pensar que vovô se apaixonou na trombada de dedos, mas não quis demonstrar. ofereceu o braço para conduzir a dama de volta aos aposentos. vovó abre uma grande lata de alimentos e tira de lá um pedaço do bolo que sua mãe fez para a viagem. pouca pimenta, uma pena. anda doze metros “vi que o senhor não comeu nada o dia todo”. vovô aceita e, de novo, trombada de dedos. fazem um cumprimento de camaradas, que hoje seria lido como um gesto sóbrio e de segredos amontoados, se sentam juntos num baú de um dos passageiros mais afortunados. vovó pergunta sobre como estavam as coisas nas paragens de vovô, vovô também. vovô pergunta se vovó está só, vovó também. vovó veio com um irmão e a irmã mais velha. vovô estava só. contavam já onze dias de viagem. na manhã seguinte, comeram mais do mesmo bolo, ao ar livre, mirando as águas tão calmas quanto geladas, encorpadas de funduras e músicas estranhas, paisagem feita e perfeita para pousar a insegurança, perder os olhos e as frases. avistaram o que parecia ser uma baleia. “talvez seja apenas um punhado de espuma” “é uma baleia, estou certa disso”. vovó estava certa. era uma baleia, uma cachalote morta. cercando o cadáver, um filhote cantava o despreparo, o desconhecimento da morte. a quem seguir agora? como saber a morte sem nunca ter morrido ou matado? vovô traça paralelos com a migração humana. “nossa mãe também está morta e não sabemos o que fazer. o navio e a repressão fazem por nós. nos empurram para outro chão. e choramos uma canção de exílio e de desesperança que ninguém, além de nós e das baleias, entende.” vovó se impressiona, pensa baixinho que esse homem é incrivelmente sábio, um mago dos paralelos. pensa que a sensação é exatamente essa. nossa terra matre ficou morta, para trás, boiando entre ódio e poder. o navio corre distâncias por nós, nos abriga e nos mostra outras formas de exílio. as crianças não sentem a distância se espichando. não compreendem que jamais voltarão a ver suas casas, seus animais. o piso frio e condescendente da embarcação ajuda os mais novos na anestesia afetuosa, reparadora. os dois choram, o navio se aproxima do cadáver e o filhote se retorce num salto extraordinário! chora. encara a todos. um por um, o filhote vai marcando com seu olho desesperado, todos os enxotados, os filhotes russos, romenos e poloneses aboletados na murada. naquela noite, vovó não dormiu. fechava os olhos e via o grande olho e a profundidade do abandono. vovô, também insone, chama vovó para uma volta. vovô fuma seu último punhado de tabaco russo. vovó dá um trago e tosse. estão sentados sobre uma peça de metal. tudo no navio é marcantemente grande, desproporcional ao antigo mundo, do tamanho das incertezas e saudades. vovô diz que não consegue tirar o olho do filhote dos pensamentos. vovó concorda, sofre do mesmo caso. um trapo de estopa voa e se prende no calcanhar de vovó. vovô o apanha e quando percebe, vovó está de olhos fechados, sentindo o cheiro do fumo como se reconhecesse aquele perfume, como se a essência a trouxesse um pouquinho de casa. vovô a beija. vovó corresponde e enfia as mãos no casaco do peixe-espada brilhante. eles se beijam sem pressa alguma, sem chão nenhum, sem mar, sem baleias, sem bolo, sem pão. amanhece mais uma vez. vovó veste o casaco de vovô. os dois informam a irmã mais velha de vovó que, sim, vão se casar assim que o chão brasileiro permitir. eu poderia dizer que naquele navio começou a minha história. não digo, porque isso não é verdade. essa história é da minha avó, teodora varsan e do meu avô, gheorghe diacov. nem à minha mãe, ana diacov, essa história pertence. talvez a história seja, em parte, daquele filhote de cachalote. talvez essa seja a história da glória, imensa e nobre mulher, sentada à mesa na são bernardo do campo de mil novecentos e oitenta, comendo bolo com pimenta, do lado esquerdo da minha avó.

O ABRAÇO DO PRIOLO

No primeiro dia, meti-me em frente à casa deles. Um telhado igual a barro verdoengo e bastante inclinado, com duas chaminés, janelas altas e madeiradas, tábuas brancas ao comprido e a porta azulada com o batente em ouro velho. Havia um alpendre à americana com cadeira de baloiço, um cepo a servir de mesa, vasos semeados de brincos-de-princesa e marias-sem-vergonha, quatro degraus e a relva. Verdecia em toda a volta.

Tive tempo de apreciar o grulhar do frondoso plátano, a maior ramagem que alguma vez permeei. O bafejo morno descia o tronco velho, ramificava-se e espraiava-se pelo tapete fino, fazendo-o dançar em tufos. Só soube que tinha esperado em demasia quando uma nuvem revelou o azul e o caracol terminou a volta por cima da vedação.

Com mais estilo do que Fred Allen, ele andava de bicicleta, contrariando todos os hábitos das proximidades — nunca vi outros estradistas por ali. Antes de guinar, fez a campainha chilrear tal qual um melro-d’água a cortejar num dia nublado. Depois, subiu a rampa e desmontou em movimento, com uma classe igual à dos filmes. Trajava um fato brunido à ministro e parecia perfumado com ambição, mais do que água no bico.

A cortina da janela mais rés agitou-se, segundos antes de se abrir a porta. Saiu uma criança da metade do tamanho dele, dentro de um vestido ebúrneo, de alças leves e saia boleada. Trazia cabelos doirados e os pés desnudos. Ela correu-lhe para os braços, e enlaçaram-se de afetuosidade.

Gostava eu de saber o que é um abraço, mas as asas não se abraçam, e como não dou importância ao que não sei, não liguei. Mas havia qualquer coisa na beleza do momento, reconheci-o nas minhas penas. Palra-se que só os humanos sabem que morrerão, mas os pássaros também sentem medo.

O homem e a menina entraram, fecharam a porta, e a bicicleta ficou cá fora, na humidade — tal como eu vivo e durmo. Não vi o que sucedia lá dentro, se os abraços continuavam ou se tudo mudava.

À noitinha, eu costumava regressar, só para ver a janela de cima apagar-se. Deslembro-me de experimentar comoção, até porque as primeiras semanas não me combaliram muito. Todas as manhãs, vigiava-o a sair de bicicleta, pelo menos quando não chovia ou ameaçava um outono invernado, pois quando o céu chorava, ele ia de carocha. Todas as tardes, assistia ao seu retorno, aos abraços e às risadas. Quando a lua ficou cheia, descobri quem ali vivia: ele, a tal criança e uma mulher, porventura doméstica domesticada, mas bonita e arranjada.

Chegara o dia de conferir se a decência era mesmo real ou quimérica. Amanheci empolgado com o método que eu próprio forjara, de um cérebro mais ágil do que nalguns sapientes. Tinha chovido toda a noite, eu vivera-o — e era óbvio, pelo regador de latão atestado, aonde fui chuchurrear. Como habitualmente, àquela hora, a janela da cozinha estava entreaberta. Asilei-me no lado de fora, benzi-me em nome de Hórus, de Penates e da Pomba Branca, e pus-me a escutar.

— Pai — garganteou a miúda. — À noitinha lês-me o livro que a mãe trouxe?

— Não sei. Tenho um discurso para escrever. Não tens trabalhos de casa?

Os talheres tilintaram, um prato descaiu na pia e a torneira abriu-se. Depois de a água encher um tacho, a mãe sussurrou:

— Não achas que devias passar mais tempo com a tua filha? Sempre ansiosa que chegues, a contar as horas... Dar-lhe beijos quando ela dorme não a faz sentir-se amada.

— Não me dês lições — corvejou ele. — Sou o sustento da casa. Sabes muito bem que a minha profissão é exigente. Se eu não me dedicar, o dia de gozarmos a felicidade nunca vai chegar.

A palha d’aço coçou-se no vidro.

— Mãe, não quero mais...

— Pronto, filha — serenou a mulher. — Vai lavar os dentes. Daqui a pouco vamos para a escola.

Ouvi mais loiça a retinir e a torneira a cessar funções. Depois da quietude, a janela fechou-se num estrondo que me fez esvoaçar de susto! Privado das vozes deles, subi para camadas mais arejadas. Afinal, os abraços nem sempre são de amor e o amor nem sempre é de abraços. Um abraço pode ser solitário.

Noutro dia qualquer, o portão da garagem abriu-se, chiando e tremelicando como se avisasse que estava a morrer. O homem brotou, bem-posto e de gravata, em cima da bicicleta. Resolvi persegui-lo até onde fosse. Sobrevoei copas verde-lima, plátanos e criptomérias, cedros e araucárias de outros matizes, com a brisa a despentear-me as asas. Ele, diminuído, lá em baixo, equilibrando-se nas vielas e passeios, por entre carros e transeuntes. Após o aglomerado de vivendas, vieram manchas de telhados nervurados, aqui e acolá, na cor laranja do desgaste, edifícios esbranquiçados com pinceladas de basalto, ruas delgadas de paralelepípedos enviesados.

Sobre a esquina do oleiro que vendia bananas, atravessou-se-me um pombo em voo desafável, de mau agouro, como se lhe pertencesse aquele pedaço de céu. Ofereci-lhe um olhar desafiante, convencido de que seria capaz de bicar-lhe a arrogância, mas esbanjaria demasiado sopro.

Enquanto afastava a ideia, surgiu um edifício imponente, cheio de pilares gordos e brancos. No estacionamento, o ciclista agrilhoou o transporte de duas rodas, ajeitou o casaco e subiu a escadaria, rumo à entrada.

Baixei a altitude e fui atrás, pela porta alta, apesar de um homem vestido de negro, boné e bastão olhar-me de viés. Esquivei-me, conquistei o paço interior e vi um corredor amplo, com paredes claras e solo de madeira cheirosa. Mantive-me perto da abóbada, nas alturas, que é onde pertenço. Ele entrou para uma sala central do edifício, uma divisão imensa, em formato de quarto minguante, com desenhos no chão e lugares virados para um estrado central. Havia muita luz e espaço para esvoaçar, mas senti um peso nas gavinhas; pousei num canto com boa vista. Chegava gente em rebanhos, ocupando os assentos no semicírculo.

Ele alisou o colarinho e destacou-se no palanque, antes de testar o som e clarear a garganta. Começou por cumprimentar os presentes, introduziu um tema geral e foi aguçando a voz, afunilando os argumentos. Parecia uma questão séria, de vitória eminente, de levar a sociedade a percorrer novos caminhos, elevar-se a um novo patamar. Sob aquele teto de vidro, naquela acústica maviosa, tudo o que ele proferia atrás do microfone era ampliado: as verdades e as mentiras.

— Quando a terra treme, estamos juntos; quando o mar se agita, estamos juntos; e quando se faz silêncio… — o recinto inundou-se de compromisso, numa vaga apoteótica apenas permitida aos grandes oradores. — Muito obrigado! — completou, sabendo que tinha a plateia na mão.

O rebanho levantou-se e aplaudiu, uns de pé, outros em bicos, como pardais a cobiçar o milho. Era uma orquestra de estalos em cadências que, por vezes, se emparelhavam, por outras, se misturavam.

O pregador agradeceu com adeuses, esperou por uma oportunidade e abandonou o ambão, permeando os apoiantes em sorrisos. Saiu da sala, entre acenos e palmadas nas costas. Seguiu pelo corredor até ao átrio e cumprimentou uma mulher. Pareciam conhecer-se de outras andanças, porque deram um abraço com os olhos. Começo a perceber estes mamíferos que não se julgam animais: vivem de abraços, quer sonhados quer materializados.

Ele saiu pela porta grande, desceu a escadaria e encavalitou-se na bicicleta. Parou após duas dúzias de pedaladas, comprou jornais num quiosque e seguiu viagem, sem nunca reparar no pássaro sobrevoante. Era eu, sempre naquele rasto, por ruas e ruelas, até ao bairro da sua casa, ao jardim e ao descavalgar. Atenuei o voo e desci, para pousar na cerca do jardim. Penteei as asas e assisti à porta a abrir-se, mas não brotou nenhuma menina em busca de abraços.

Desengravatando-se, ele entrou em casa, com os jornais na axila, e eu aproveitei a janela aberta da cozinha para ocupar-lhe o parapeito. Vi-o pendurar o casaco e passar pela mulher com um esgar. Sentou-se e começou a ler as notícias. A filha apareceu e cumprimentou-o com um beijo na face.

Não percebo estes humanos. Num dia, abraçam-se e beijam-se; no outro, ignoram-se. Os pássaros simplesmente vivem.

Enquanto o pai lia o jornal, a filha trocou olhares entristecidos com a mãe, baixou a cabeça e retirou-se. A senhora enfrentou o lava-loiças e respirou fundo:

— Correu bem?

— Sim. Está no papo.

Foi quando a mulher reparou em mim. Um priolo especado no parapeito da janela? Algo raro e poético. Inclinou a cabeça, fez um demorado sorriso de anjo e aproximou-se, o que me deixou desconfortável.

— Um pássaro. Já viste?

O marido produziu um grasnido impercetível, fechou um jornal e abriu o outro, descruzou uma perna e cruzou a outra. Depois, fungou e casquinou em desprezo por um artigo qualquer. Aprendi que nem tudo o que reluz seduz.

Aquela indiferença fez-me palpitar o sangue pelo peito. Num salto, flutuei, e uma força poderosa concentrou-se-me no bico. Dali à ebulição foi um rufo. Passei diante da mãe, que se desviou, assustada com o vento do meu adejar frenético, e atravessei o jornal com afinco. Rasguei-o, uma e outras vezes, puxando e espalhando pedaços de papel pela cozinha. Transformei a pasmaceira num cafarnaum!

O casal protegia-se como podia, as mãos a tapar a cara, a mulher de cotovelos erguidos, o marido salivando e tentando cortar-me as asas. Mas a surpresa assaltou-me, ao sentir aquelas mãos no meu corpo frágil.

Ele agarrou-me em pleno voo.

O nariz dele diante do meu bico, os olhos enraivecidos a embeber-me de ira, a mulher com as mãos sobre a face, a filha com os lábios a tremer. Senti o peito confortado, as penas aconchegadas, o amor a sufocar-me, a falta de ar. Não conseguia respirar. Piei uma vez, e a criança verteu uma lágrima; pipilei outro queixume, e a mãe soluçou; ao meu terceiro guincho, ele baixou o olhar para a filha, como se procurasse absolvição. Depois, regressou a mim e hesitou.

Os homens sonham voar. O que eu anseio é entendê-los. Continuo sem perceber-lhes as intenções, mas agora sei o que é um abraço.

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