Uma carta a propósito do Adriano da Tatiana Faia

Minha querida Tatiana,

   hesitei bastante sobre o formato desta apresentação. Pensei naquela vez em que apresentei o teu Quarto em Atenas, e em como a medida de uma carta foi claramente desajustada. Lembro-me bem de como o teu editor me olhava de lado, à espera que me calasse; nem esperou pela primeira frase para ficar aborrecido. Ainda assim, talvez sem a prudência que me recomendaria o amor-próprio, decidi repetir o formato, e correr o mesmo risco. Sinto que só numa carta te poderia falar sobre o teu Adriano, dirigindo-me a ti, com a intimidade de dois poetas que sabem que nunca falam sozinhos um para o outro.

Sabes, enquanto crescia tão mal como tu, e aprendia a arrancar sons de um instrumento que sempre se defendeu de mim, fui-me apercebendo de que havia em certos compositores uma qualidade indefinível, que nada tinha a ver com génio ou técnica. Tinha a ver com uma indizível presença de estilo. Bastam-nos três compassos para sentirmos a música de Bach. Uma sequência harmónica para reconhecer Chopin. Um compasso para sabermos que é Leonard Cohen que canta, mesmo antes de ouvirmos a sua voz. Acredito que a poesia é apenas mais uma forma de compor. E por isso, ao conhecer cada vez melhor os teus livros, Tatiana, tenho cada vez mais a certeza que estou perante um desses estilos irrepetíveis e, portanto, indefiníveis. Consigo até dar-te exemplos dessa tua idiossincrasia estilística, mas há sempre algo que ficará por explicar, que não define a tua voz tão própria. Por exemplo, posso-te falar sobre o teu modo particular de jogares com a expectativa da forma, contorcendo-a como te apetece. Fico sempre com a impressão que queres deixar o teu leitor descoroçoado, quase revoltado perante uma engrenagem que parece emperrar a meio do poema. Julgo que alimentas conscientemente essa sensação, com uma intenção quase sádica: gostas de lhe dar, quando menos espera, um murro do estômago, com aquela violência particular que só os versos têm. Vem-me à memória aquela tua estrofe magistral, sensivelmente a meio do livro, em que falas de

“um mistério irracional

 que Adriano tenta explicar

com dificuldade

 ao longo de todo o romance

 e que talvez não esteja muito distante

 de outro

 ainda mais difícil de entender:

 como exatamente se passa

 da infelicidade à felicidade”

e que serve como mote para o poema que se lhe segue. Esses versos acabam por ter o fôlego que têm porque são preparados por outros tantos maçudos, quase prosa académica, de uma insólita crítica literária à obra de Yourcenar, que não nos deixa adivinhar o que daqui viria. Grande parte do teu estilo tão particular decorre precisamente daqui, de uma tensão permanente entre o liricismo que tantas vezes te parece seduzir, da elevação das tuas referências literárias ou até da descrição dos teus gatos, e o teu enjoo e tédio por tudo isso. Tudo acaba por explodir numa torrente ilegítima de versos, longos, narrativos, tragicamente desassossegados. Sinto que te reconheceria numa qualquer antologia anónima do século XXI, pejada de poemas de megafone ou de intervenção, e de analogias pós, pré e anti-românticas, desabitadas de milénios. Descobrir-te-ia nesse livro, onde quer que estivesses. Talvez por isso fales num dos teus versos de uma “maturidade de estilo / para poetas”. Mas o que faz da tua voz uma voz tão particular, suspeito que jamais o vá saber exactamente. Deve ser por isso que nunca nos cansamos dos grandes compositores.

Devo-te, porém, confessar que li com uma certa clemência o texto que escreveste no final do teu livro, a prosa com que talvez tentasses explicar o processo de escrita do livro. Muitos compositores contemporâneos o fazem, especialmente aqueles cuja música ninguém entende. Tu, minha amiga, não precisas de o fazer. Até porque, como bem sabes, o teu Adriano é necessariamente diferente do meu – e a beleza da autoria está precisamente nesse processo de apropriação a que cada livro obriga. Aliás, se não tivesses escrito que Fernando Pessoa e o seu Antinous tinha sido uma referência para este teu livro, jamais o adivinharia. Nunca li esse texto e a minha intenção é nunca o ler. É quase uma heresia, mas alguns textos do Pessoa aborrecem-me de morte. Especialmente aqueles em que ensaia um classicismo que me parece mais pedante que clássico. Se conheço bem a prosa de Ricardo Reis, é apenas porque me obriguei a isso por motivos académicos, uma razão que é sempre uma razão de merda para se ler um poeta.

Enfim, com isto quero dizer-te que o teu Adriano já é tanto teu como meu. Transformou-se na minha própria reflexão sobre estátuas de mármore, e sobre “o afogamento talvez acidental” não de Antínoo, o belo jovem que desenterrastes em Delfos, mas da nossa própria experiência humana. Devo-te, ademais, dizer que para mim, Adriano é uma personagem acessória, quase fortuita, no teu livro. Uma ficção como qualquer outra: uma mentira tão grande como eu ou tu. Vejo Adriano como o pretexto do mármore, um pretexto de intimidade. Foi aliás o teu primeiro poema que me guiou nesse sentido; li-o como uma peça programática, que me serviu de bússola para todo o livro. Deixaste nele por escrito três vezes a palavra “memória”, que é verdadeiramente o leit-motiv do teu magnífico livro. Mas a tua memória não é semelhante àquela memória de musas, ao estilo de Vergílio, Mūsa, mihī causās memorā, uma memória que se conta a si mesma na patranha da humanidade, não, é uma memória de algas, é uma memória de arqueologista, que descobre no fundo dos oceanos a beleza corruptível de um jovem mancebo: a memória de um tempo cuspido, a memória vencida pela morte – a morte que venceu Antínoo, e que por pouco tempo iludiu Adriano, até o deixar também em mármore, ou mais precisamente, em quarenta estátuas de mármore. É a memória de uma mesma pedra – a do imperador, a do amante e a tua. É também a minha memória de jazigo, companheiro da tua morte, como tu és companheira da minha. É este, aliás, o clímax do teu primeiro poema, uma engrenagem implacável, contida até ao limite, e que explode quase no final:

“estive vivo poucas vezes

penso que é o que concluiu Adriano no fim

e para estar vivo esta talvez seja

a suspeita mais necessária”

Que versos fantásticos. E com que terror te ouço dizer no fim deste mesmo poema: “espero enfim com alegria / tudo o que de certeza me desapontará”. Que crueldade, minha amiga. Sabes, o teu poema inicial lembrou-me pouco Roma, e bem mais o início de um filme de Terence Malick. O segundo andamento de uma sétima sinfonia de Beethoven em que a câmara se vai afastando do sofrimento de um pai que perdeu um filho para todo o cosmos, para todo o tempo, para toda a universalidade da criação, para chegarmos a uma mesma conclusão, inevitável, constante: tudo é sofrimento, ou como diriam os budistas, dukka: o mais pequeno instante do tempo e toda aquela matéria negra, que nem os cientistas sabem explicar, têm a mesma essência atómica da dor humana, da nossa presença adiada neste mundo. E tu, minha querida amiga, tens o bom gosto de nunca procurares redenção no teu livro para porra nenhuma do que somos. Aliás, a tua poesia tem sido até este momento a-teológica, ausente de qualquer coisa sobre-humana ou sobrenatural. Nisso és muito diferente de mim, que tanto animo os deuses como o deus. Ao ler-te tinha tentado reconstituir no pensamento aquela famosa citação, que pensava eu que era de Yourcenar, que falava sobre o tempo de Adriano, na fronteira entre o culto rígido dos deuses romanos e o Deus cristão, supervisor do pecado. Andei doido à procura dela, e não a encontrei em lado nenhum. Foi com a cumplicidade de um sorriso que a descobri no teu texto final. Afinal não tinha sido Yourcenar a escrevê-la, mas Flaubert: “mesmo quando os deuses tinham deixado de existir, e Cristo ainda não tinha vindo, houve um momento único na história, entre Cícero e Marco Aurélio, em que o homem esteve sozinho”.

É aí que tu vives como poeta, minha querida Tatiana, na solidão desses séculos, nas tuas próprias palavras, “ler para ti foi sempre / a única forma de rezar”. Isto leva-me a outra questão. Tu e eu sabemos que essa treta do classicismo é muitas vezes apenas classismo, ou ainda pior, um vómito escolástico de gente que nunca teve o prazer erótico de morrer na boca de Homero. Mas tu e eu também sabemos que Adriano é apenas a nossa própria transfiguração, como quando Pedro vê Moisés, Jesus e Elias, e se lembra apenas de lhes construir três tendas. Três tendas, o pobre tolo! Pois o teu livro é também isso: uma tenda ridícula, uma proteção fatalmente provisória contra o risco do esquecimento, o risco do mármore, o risco do museu, o risco de Delfos – o risco de não vivermos o tempo dos clássicos como eles o viveram, e de morrermos a sua exacta morte.

Julgo que o nosso amor partilhado pelos clássicos tem mais a ver com este reconhecimento de que os antigos decidiram dar uma forma musical a esse terror. Nesse sentido, o teu Adriano é não só um guia para os perplexos, como tu e eu somos perante a frieza outrora pintada dessas quarentas estátuas, mas é também um grito verdadeiramente clássico de revolta contra o horror, parvo, pequeno, agreste, da mentira da perfeição, da memória social, da imbecilidade humana – de gente que passa anónima e inerte, como todos esses soldados que percorrem o teu livro, mesmo o teu único soldado com um nome, Vittorio Sereni, um triste professor de latim – como eu! – alistado para matar, preso dois anos numa masmorra argelina, encerrado no enigma do mal sem redenção nem propósito.

Nesses oito poemas a que chamaste “Um italiano em Atenas”, não sei se te apercebeste de que as personagens principais nem são Adriano, o graeculus aficionado pela cultura grega, nem Vittorio Sereni, mais um títere da Segunda Guerra Mundial. Não costumo nem gosto de falar em presenças femininas na literatura ou chavões inconsequentes do género; acredito que a poesia é um contínuo universal que sofre apenas da contingência do tempo, mas não há como negar que é a voz da mulher o verdadeiro fio condutor destes poemas. Há uma presença constante destes versos que não é a de Adriano nem de Sereni: é a tua, a de uma mulher que se ancora, reage e dialoga com outras duas grandes pensadoras da humanidade, Martha Nussbaum e Margarite Yourcenar, que são as verdadeiras protagonistas destes poemas, juntamente contigo. São mulheres fortes e densas, tão difíceis como tu. Aliás, foi de ti que me lembrei enquanto lia esta tua estrofe, eivada daquela ironia que te é tão idiomática:

“em a fragilidade do bem

Martha Nussbaum

nunca menciona Adriano

e tenho de concordar

que não sei que o imperador

teria a dizer sobre filósofas

de repúblicas romanas do presente

e do frio nos seus olhos

quando elas acendem os cigarros

e da voz rouca

e cheia de estilo

com que imagino

a leitura em voz alta desse livro

de onde transcorre a aceleração

dentro dos quartos

da força com que é preciso viver”

A tua relação, porém, com essas mulheres fortes que convivem contigo nestes poemas não é uma relação de subserviência – nem o teu temperamento to permitiria. Muitas vezes pressinto que te irritas com Yourcenar e com a sua tonelagem clássica – como se te revoltasses contigo própria – que te faz ler as suas Memórias de Adriano como de um tragédia de Ésquilo ou Racine se tratasse. Imagino-te a ler em voz alta os teus poemas, e rio-me daqueles versos em que dizes que os críticos contemporâneos de Yourcenar gabavam o estilo da autora como “digno de um homem”. Aliás, Nussbaum e Yourcenar, e por vezes até a Tatiana Faia, acabam em alguns momentos silenciadas por uma presença feminina bem mais trágica e abrangente, porque mitológica. Refiro-me, claro, a Hécuba, a troiana que é a grande vítima da miséria da guerra, da mesma guerra que continua a ser a actividade preferida dos machos miseráveis do nosso tempo, dos Putins que espalham os cadáveres de Heitor à volta das muralhas de Tróia, sem o bom-gosto de o fazerem em hexâmetro dactílico.

Já me alongo demais, talvez. Vou-te só contar as circunstâncias em que reli o teu Adriano, porque há algo nelas que é quase oracular, e tu bem sabes que cada um tem a pitonisa que merece. Há cerca de três dias esteve um dia lindo. Em vez de te ler no escritório, decidi pegar na bicicleta, e fazer um percurso de que gosto muito, ao longo do Douro, pelo lado de Gaia, até chegar à Barragem de Crestuma, e daí regressar pela margem do Porto. Saí de manhã e só regressei ao final da tarde. Fiz três longas paragens ao longo do percurso. Na primeira, li a primeira parte do teu livro, a que chamaste “rua adriano” e o interlúdio que se lhe segue, “os gatos da rua de adriano”, não sem o espanto de considerar que investiste todo o teu estro de pintora não nas estátuas do imperador, mas num gato que vivia num prédio em obras. Demorei-me muito nessa tua rua. Daí, fui até Crestuma, para uma praia fluvial que naquele final de manhã era habitada apenas por uma jovem e os seus banhos de sol. Foi aí que li o “italiano na grécia”. Aquela mulher tinha a desconfiança natural de quem está demasiado sozinha ao pé de um tipo de barriga gorda e enfaixada numa ridícula licra colorida de ciclista, com óculos de massa e olhos diminuídos, lendo um livro de poesia com um lápis na mão. A companhia daquela solidão fez-me pensar, por violento contraste e como se de uma epifania se tratasse, que, pelo contrário, a tua poesia é um lugar habitado por gente a quem tu nos queres apresentar. A tua poesia tem quase sempre os pés numa rua qualquer, como já era o teu quarto em Atenas – um nome que nunca era aquele que o teu livro devia ter, cada vez percebo mais porquê. Foi uma revelação ler o teu livro neste tipo de movimento, porque tu és precisamente uma poeta de itinerância, mas que fica nos lugares para onde vai: viaja, não parte. Talvez por isso tenhas algo que é talvez o que mais me comove na tua escrita: a atenção do viajante. O teu mais longo poema – que para mim é o mais lúcido e bem construído, a par com o primeiro – é o oitavo e último poema do “italiano na Grécia”. Diriges-te a uma pequena moeda que percorre aquela humanidade que gemia já no primeiro poema. Tem a contingência da imagem de Antínoo, e completa o círculo da dor de Adriano, acorrentado ao amante morto no Nilo. Mas é também o círculo da dor de Sereni, que culmina no lamento de Europa, o de Hécuba, que repete serenamente a nossa violência, e é fundamentalmente o círculo da nossa própria dor, que tem o tempo todo enterrado naquela moeda. Julgo que é neste poema que se condensa toda a força da tua poesia: a força irónica da narrativa que se confunde com o verso, como cenário da nossa tragédia: “a possibilidade / de a morte vir à minha procura”, como tu escreveste. Vejo nele também a tua idiossincrática exigência realista, que te leva ao pormenor da oxidação do metal que deixa o cheiro nos nossos dedos, dos episódios absurdos da vida quotidiana dos intelectuais que estudam o minúsculos dos minúsculos sem se aperceberem do universo que encerra o pormenor, de todos esses temas que se vão articulando cada vez mais intestinamente com o tema maior de Adriano, isto é, o da memória, a tensão histórica entre o ontem e o hoje, a memória vivida no absurdo de um “alguém” que usa a moeda de Antínoo para comprar “uma cerveja numa viela suja”, uma memória que é também um gosto pela história da carne que vai percorrendo os teus livros, a história dos nervos, da tua própria encarnação num quotidiano que te obriga a usares essa mesma moeda num táxi amarelo, uma angústia que é também a angústia da poesia perante a força física da indiferença, aquele sentimento de impotência – a mesma do soldado a caminho do holocausto – perante a máquina do mundo, que constitui o nosso tão pequeno e necessário grito de revolta. Como tu dizes:

“uma palavra num poema

 devia poder deslocar facilmente

 um sentimento como um osso

 com precisão e alarme”.

Bem sabemos que não pode, minha querida amiga. No epílogo do teu livro, que li na última paragem antes de chegar a casa, já o sol se punha, enquanto escavavas Antínoo, disseste-me, aliás, uma coisa de que nunca mais me vou esquecer. É a imagem do arqueólogo que destrói o passado enquanto o procura, que faz desaparecer camadas de tempo até chegar ao artefacto que em equívoco julgava tratar-se do objectivo último da destruição da terra. Minha querida Tatiana, talvez seja esse um dos lugares mais certos da poesia, se é que os há. A arqueologia indefesa da nossa própria vida.

Enfim, gostava de ter uma frase bonita e redonda para acabar estas linhas, redentora, clássica. Também sabes que não sou de citações nem epígrafes. Sei que sou apenas mais um vulto que passa discreto na tua rua, habitada por tanta gente. Agradeço-te apenas a forma tão inquieta como sempre a edificas, de livro para livro. Agradeço a tua encarnação.

Bem hajas, minha querida amiga.

Pedro Braga Falcão

Vila do Conde,

7 de Outubro de 2023

As musas não se apresentam

Imagem do filme “Il Sorpasso”, de Dino Risi - um dos filmes mencionados no texto abaixo.

Imagem do filme “Il Sorpasso”, de Dino Risi - um dos filmes mencionados no texto abaixo.

Porto, 30 de Agosto de 2020

meu querido amigo,

Como nós os dois gostamos de coisas vagamente deslocadas, não teria outra forma de estar na apresentação do teu livro senão assim, com um texto que fique só aqui entre nós. Nem se esperaria outra coisa de um evento como este, cheio de gente que tem demasiada paciência para ouvir. Há que abusar dela. Pouco ainda se ouvem os poetas, especialmente os que estão vivos, o que parece ser cada vez mais um inconveniente. Ficam aqui entre nós, portanto, estas linhas, e por amizade. Começo, pois, por pensar sobre o título Merda para as musas, que não está na capa, mas no início do terceiro poema da terceira parte do teu livro (e se foi por acaso este movimento do número três, ainda melhor – o três é um número importante para quem gosta de solenidades). Chamaste-o, a esse poema, Merda para as musas.

Merda para as musas
enchem-nos a cabeça de nuvens
e o estômago de sol
e quando nos abandonam
deixam no seu lugar
um cão raivoso acorrentado
um gato no cio
que não cessa de miar
a auto-mutilação é inútil pois
elas voltam com diferentes caras e
diferentes vozes e diferentes canções e
tudo germina e cresce
outra vez
outra primavera
merda para as musas


Disseste que as Musas “enchem-nos a cabeça de nuvens / e o estômago de sol”, e talvez noutro século as celebrássemos como justas deusas; hoje sobra-nos, a nós que as conhecemos desses calhamaços que fingimos que já lemos ou naqueles que lemos e nos pesaram demasiado, a sua experiência fingida, a bazófia da sua inspiração. Como disseste em “um buda feroz” (embora fucked up Christian também pudesse servir como título), “carrego sempre um pequeno monte / de livros quando vou para a cama (...) agradeço-lhes o frete”. Partilho também eu esse teu heróico terror perante a angústia do que deveríamos ler e nunca pudemos, especialmente se a causa é uma preguiça cristalina. Talvez por isso suspiremos e insultemos agora as musas, múltiplas e todas, e fiquemos como “gatos com cio”, tal como escreveste, perante a volúpia de uma grande e inacessível biblioteca. Reparei que a frase merda para as musas figura três vezes: no título do poema, no primeiro verso e no último, uma espécie de cápsula sagrada – como em algumas religiões se faz – para tornar sagrado o que queres revelar. És talvez um poeta mais lírico do que queres fazer acreditar, talvez porque ainda insultas as musas. Sabes, também eu acredito nelas, e sou estúpido o suficiente para saber que sou apenas mais um aglomerado de sangue e nervos: conheço os nossos erros porque partilho grande parte do universo que colocas em verso. Nunca poderia escrever como tu, mas leio muita coisa como tu. Não nos camalhaços do nosso “buda feroz”, mas apesar deles, como tu bem sabes.

Volto à primeira parte do teu livro. Chama-se “perguntem ao whiskey”. E logo no primeiro poema, “o buraco da cozinha”, assumes uma voz masculina, vagamente boémia, e reclamas “não escolhas uma mulher que tenha tido muitos homens / não escolhas uma mulher que tenha tido poucos homens”. Há neste poema uma certeza do feminino – que ao contrário do que se pensa, pode ser muito saudável – ou pelo menos do amor entre um homem e uma mulher – a consciência de que este não é salvação nenhuma, apenas um encontro de paranóias. E de facto, no teu pequeno livro, não se sobrevive a nenhuma. Não sei se é verdade o que João Bosco afirma no posfácio do teu livro, onde atesta que és o Bukowski português. Como teu amigo, não te desejo nada disso, seria aliás cruel da minha parte. O risco biográfico de Bukoswki é demasiado, e embora me ria muito com as suas mulheres, tenho por ele uma espécie de piedade deslocada, que não quero sentir por ti. Quanto à segunda parte, Bukowski português, então não te desejo de todo seres português, é demasiado pouco. Podes até ter duas personagens nos teus poemas profundamente portugueses, o puto da Bica, um bêbado com a proverbial bazófia de quem não é incapaz nem capaz, mas capaz de tudo, e um bulldog inglês, que “arrumava carros e motas / e insultava quem não lhe dava moeda / por apontar com o dedo certeiro / o lugar vago para estacionamento”. Mas a sua portugalidade esboroa-se na tua frieza capital, de quem conhece outras europas e outros mundos, e vê uma cidade que nunca será sua – nem Lisboa, nem Porto, nem Veneza, nem nada – contaminada por essas surdas hordas de turistas que agora desapareceram, mas não tardarão a voltar com as suas máscaras cada vez mais elaboradas. É isso que se conclui no final do teu “puto da Bica” – a ironia dos poetas da nossa geração, que cada vez mais abominam a ausência dos versos nas suas ruas, e que têm de os encontrar no sítios mais ausentes:


“isto é que é uma maravilha” disse o puto da Bica
olhando embasbacado para as estrangeiras que desciam do ascensor
com o copo inclinado em ameaça de
verter o vinho a qualquer instante
é um talento raro equilibrar ao mesmo tempo
a embriaguez e a volúpia
sem fraquejar
e nós cedemos sempre

Estas são, de facto, umas musas de merda. Não deixam, porém, de nos convocar para a tragédia da sua épica deslocada. Como nesses filmes de Hollywood de que te queixas no segundo poema do teu livro, em que o sujeito lírico “bate uma” (não sabes como estive à espera toda uma vida académica para poder dizer algo como isto – o sujeito lírico “bate uma”, e repara no pormenor das aspas) à espera de melhores filmes, enquanto no seu íntimo assoma já o segundo andamento da sétima sinfonia de Beethoven – aquele mesmo andamento que já iluminou tantas películas, como o absurdo início do The Tree of Life do Malick. Esta sinfonia é precisamente a banda sonora do teu terceiro poema, abafada pelo olhar incómodo de uma mulher e pelo ruído branco de uma máquina de lavar – 1400 rotações por minuto, 1400 ruídos que atrapalham as nossas musas de merda, a angústia de sentirmos o que quer que seja, uma angústia que não é só de Bukowski, mas do nosso mundo moderno. “Que queres tu?” perguntas duas vezes nesse poema e concluis, sarcástico como sempre, que “basta de falar de amor por hoje”.

Talvez não saibas, porque me conheceste numa aula de literatura, onde eu a contragosto me irritava com a minha voz professoral de vão de escada, prometendo saber coisas que não sabia (como gosto tanto mais de ensinar línguas mortas!), mas também eu tenho um terror religioso por musas, especialmente as de sarjeta. Almornos foi a minha pátria; uma improvável aldeia de Sintra que nos anos oitenta tinha os jovens da minha idade amarrados à heroína – não uma Fedra ou uma Cleópatra – mas à droga, pura e dura. Não conheci os vizinhos por um medo instintivo de pais refugiados. E depois veio a vida de subúrbio, sempre contaminada pela distância, Caneças, Odivelas, estertores de cidade, e eu sempre fugido para Lisboa nos autocarros da Rodoviária Nacional. Ao menos tu encontraste as musas certas em Foros de Amora, invejo-te por isso. Soubeste no teu poema sinfonia em ré menor – o som dos rateres das motas de fim-de-semana – ter como musa uma vizinha de cima, que queria fugir de casa e acabou coxa, engolida pela violência e pela polícia. E embora a tua visão seja ainda de fora, como qualquer céptico que se preze, sente-se aquele lirismo de que nunca te conseguirás libertar, espero eu, e que faz de ti um poeta que nunca terá os 27 anos que afirmas ter no teu livro – uma tensão a que nunca resistes, embora tanto tentes, e a que sucumbes de vez em quando, como no teu poema “vamos provar o sol” ou na tua “lareira”:


o cheiro de um novo amor
é como o cheiro
de lenha a queimar na lareira
entranha-se na roupa
na pele
nos lençóis
e permanece
e perdura
até que precisemos de novo
à noite
de acender outro fogo


É assim a segunda parte do teu livro, “afogado em chamas”; se bem li, estas chamas vieram da “alvura das chamas do tecto” do teu “buda feroz” – o poema que poderia servir como pivot do teu livro. Gostas de repetir versos que dão ritmo, e um em especial se destaca neste poema: “alguém que nos proteja dos nossos demónios” – um demónio bem pariensiense que se espalha por cinco poemas em chamas. “Estou fodido” é talvez o título que melhor suplica a empatia com um leitor solidário, que estuda nos teus versos a verdade ou a ficção da escrita, um leitor homem, preso ao corpo da mulher, que se tenta libertar também ele de uma femme fatale cujo ridículo conhece melhor do que ninguém:


toda a graça e mágoa
de uma diva de cinema se reuniam naquela mulher
era uma mulher de alfazema na mão
ou de bâton-rouge em riste


Nesta segunda parte ouve-se muita música, Haendel, Ray Charles, até entrar por lá uma musiquinha absurda de Vivaldi; só quem escreve em música sabe o quanto o som errado pode estragar uma musa, nem que seja uma musa fingida, como é o caso.

Ainda bem que há livros de juventude – e este teu livro é, sem dúvida, um livro de juventude, e talvez o venhas a escrever mais vezes, se a merda das musas o permitirem. Mas devo-te confessar uma coisa, que talvez diga mais sobre mim do que sobre ti, caindo aqui no ridículo daqueles que apresentam os livros dos outros sempre com um enorme espelho na audiência. A tua juventude faz-me lembrar aqueles filmes jovens dos anos 60, a preto e branco. Fazem-me lembrar o Roberto de Il Sorpasso – talvez o mesmo Roberto por quem os sinos já tinham dobrado em Hemingway. Dino Risi faz da juventude uma coisa antiga, repetida, violenta, que se vai rindo até morrer num desastre de automóvel, excitada pela velocidade, como Alexis na Phaedra de Jules Dassin. Os jovens ficaram sempre presos nos livros e nos filmes, tal como Anthony Perkins e Jean-Louis Trintignant ficaram. Uma coisa difere, porém, e que me faz respeitar-te talvez mais, ou pelo menos rir-me mais contigo; enquanto estes dois morrem em carros de alta cilindrada, excitados pela vertigem da velocidade e das rotações de um motor que excedia largamente as tuas 1400 rpm, o jovem do teu livro continuará sempre sentado na sua Vespa em vertigem de amizade, bêbeda, cantando Carosone, um Sarraccino tão napolitano como a merda das musas:


vertigem
é estar montado numa Vespa
enquanto o teu amigo guia
(os dois bêbedos)
cantam o “Sarraccino” de Carosone
e a “Malafemmena” de Murolo
e tu te apoias no assento
com a mão esquerda
e falas com o teu amor ao telefone
com a mão direita

sem capacete

porque a verdadeira vertigem
é essa voz que
te sussurra ao ouvido

Pedro Braga Falcão

Do teu Quarto em Atenas (dois anos depois)

Do teu Quarto em Atenas (dois anos depois)

(…) Por isso te digo o seguinte: tu escreves fundo. Demasiado fundo, pouco fundo, à superfície e por dentro. Escreves por todo o lado. Mas mais do que tudo, o teu quarto não está vazio de gente. Pode ser pequeno, pode não haver espaço para todos os livros, filmes e gesso que lá guardas, mas ele está profusamente habitado e é acanhado porque tem muita gente lá dentro. (…)

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Not me

Artur,

 

   lembro-me de ti, estarias sentado ou serias a escada em que te sentavas? desculpa-me a pergunta, hoje acho que é parva, na altura julguei que a escada se tinha desmoronado em ti, ainda sinto os degraus. 

 

   A primeira coisa que te disse?... há coisas primeiras?... julguei que tinhas pouca experiência nestas coisas do “eu era” ou do “quando”... eu não estava aqui, ainda não estava aqui, tinha-te aclamado, e distorcido a tua voz a um ponto em que não tinhas degraus (ou serias uma escada?).

 

   Disseste-me: “sou um amigo”.

 

   Um amigo?... Fiquei embrulhada. Olhei-te nos olhos, havia algo de estranho nos teus olhos, reflectiam demasiada coisa, ou eram demasiado mortos... e então, bateu-me, é claro, pensei que já tinhas morrido, há muito, muito tempo. Não posso dizer que não estivesse surpreendida. Soube que todas as histórias, desde agora, começariam por “há muito tempo”, porque de facto tinham tempo demais. Por isso me senti sozinha, porque estava sozinha contigo, há muito, muito tempo.

 

   Vieste? Sorri com a tua arrogância de cometa: não fui eu, disseste, enquanto destruías lá de cima todos os astros que alguma vez caíram. “Nunca perdi o controlo”, como se fosses filho do sol, ou coisa assim. Olhei-te nos olhos: vendeste o mundo por um punhado de ideias. Imbecil. Dei-te a mão, um inócuo passa-bem, e voltei a casa com a tua arrogância na cabeça. Filho do sol o caralho. E durante anos aquilo ficou-me na cabeça, o filho do sol, quem diria, durante anos olhei-te com um olhar parado, e quando dei por mim estava a caminhar contigo durante um milhão de anos.

 

   Disseste: “agora estamos mortos juntos”.

 

   E ninguém nos disse. Quem sabe?... Eu não. Nunca perdi o controlo, especialmente quando falei com os teus olhos, há muito, muito tempo, como todas as histórias que morreram antes de nós, antes de teres vendido o mundo para dares umas voltas no carro do teu pai. Com o homem que vendeu o mundo. Olhos nos olhos.

 

Desculpa.

 

Isabel

Isabel responde a Artur

Artur,

 

 

   Artur, Artur, como estava enganada. Nesse quarto escuro tu não me tiraste a virgindade, tu emprestaste-ma. Lembras-te talvez das paredes cheias de mofo, daquela cadeira empoeirada e coçada, desfeita, da tua cama que rangia sem consequência?

   Pois eu lembro-me de ti. Lembro-me de estares gordo, não de seres. Lembro-me dos teus olhos castanhos. Sempre disseste que eram banais. Não percebes nada de mulheres.

   Nunca te perguntei se era feliz? Pergunto-te agora: sou feliz?

   Os meus filhos estão quase a chegar a casa, cheios de merda na cabeça, espetaram-lhes os mallsno fígado e agora cospem prendas baratas, têm vírgulas nos crânios e enfrascam-se contra as paredes, mesmo sem carro. Boston é nojenta. Não tenhas dúvidas. É nojenta. Detesto americanos, e agora sou um deles. Que horror.

   E o meu marido é mais flácido do que tu. E fode bastante menos que tu, ainda bem. Tu ao menos davas-te ao trabalho de fingir que estavas comigo. Ele, nem por isso.

   Sou feliz? Nunca te perguntei se era feliz?... E é agora que o dizes!... Agora!... Agora?... Não tenho medo, ou melhor, duvido que tenha medo de te escrever, como sempre te escrevi. É que nessa tarde já me tinhas perdido. Naquele café, que tu tão bem descreveste. Perdi-te até no empregado. Não me lembro do cão, estava demasiado preocupada com o resto da tarde. Só tu para olhares para a merda do cão. Ah, mas demorei anos a perceber; não era, não era, não era nem virgem antes de te conhecer, nem qualquer outra coisa. E, no entanto, deste-me algum tipo de pureza – não aquela pureza parva dos homens que tentam o mundo sem o penduricalho que lhes entristece as pernas – não, deste-me o peso do teu corpo. Aí percebi que gostava de homens. E que tu nem de mulheres nem de homens. Mas isso, Artur, não faz de ti o infeliz que pensas que és. Também tu tens algo de estupidamente feliz em ti: não és perfeitamente infeliz.

   Sou feliz?

   Idiota.

   Sempre fui feliz ao teu lado. Não percebes nada de mulheres. Nada. Deve ser por isso que és tão gordo. Mas nem que fosses perfeitamente gordo serias totalmente infeliz. E se calhar nem te lembras, que digo eu?, claro que não te lembras, de como o fizeste. Como de facto foi. Lembras-te da cama, do quarto, do mofo, do cheiro, do raio do cão, do empregado de café, de tudo, menos do que aconteceu. O que aconteceu? Despimo-nos um ao outro. Beijámo-nos. Eu sei que tu fingias beijar, querias saber se eu queria ou não fazer aquilo. Eu não. Eu beijava-te. Não pusemos música. Deitamo-nos. Abri as pernas. Puseste-te em cima de mim. Beijavas-me, sempre a fingir, e perguntaste-me milhares de vezes se eu tinha a certeza. Que porra. Claro que sim. Não percebes nada de mulheres. Senti o teu corpo e mais do que a ti, uma dor intensa. Desapareceste e deste lugar àquela dor, mas continuaste lá com ar culpado. Foi aí que percebi que não era virgem. Que nunca fui virgem desde que me conheço.

   Se sou feliz?

   Ainda agora quase me matei a beber. Uísque, cerveja, que o vinho aqui fica muito caro. Os meus filhos nem percebem que estou bêbeda. O John muito menos. Tinha que se chamar John, pois está claro. John. Banal, banal, banal.

   Se sou feliz?

   Não me ofendas, gorducho, fofinho. Não percebes nada de mulheres.

 

 

   Isabel

 

P.S.

 

vai-te tratar