Desiderio de Ricardo Marques (não edições, 2022)

 

Uma viagem que fiz ficou ligada a um livro de Ricardo Marques, Lucidez (e Outras Sombras), e de vez em quando penso nisso com alegria e assombro. A imagem que se vê na capa é baseada numa fotografia que tirei a um fragmento de uma estátua, uma peça de um rosto de mulher que está num museu relativamente obscuro de Roma, ou pelo menos não tão visitado quanto devia, o Centrale Montemartini, no Quartiere Ostiense. Pouco central, pouco conhecido e alojado numa antiga central termoeléctrica, a única atracção turística de que não fica muito longe é do Cemitério Protestante, onde estão sepultados Keats, Shelley, Gregory Corso e outras pessoas que, bem vistas as coisas, são caras ao imaginário do Ricardo. Este museu reúne um acervo de estátuas romanas que não couberam nos outros museus da cidade e foram ali deixadas, um pouco como em depósito. Mas este depósito é um dos museus mais inacreditáveis que conheço, com obras supostamente menores da antiguidade que são tão extraordinárias quanto obscuras. A fotografia que tirei de uma dessas obras o Ricardo viu-a na rede social mais batida de todas e perguntou-me se a podia usar para um livro seu e eu disse que claro que sim, e depois fiquei a pensar que este episódio era típico da curiosidade e do espírito aberto e um pouco flâneur do Ricardo. Pareceu-me que afinal tinha ido ao Centrale Montemartini por causa do livro dele. E achei que esta ideia de pôr esta cabeça de mulher meio mutilada na capa de um livro chamado Lucidez dizia qualquer coisa de urgente acerca da poética do Ricardo, e Lucidez é de resto um livro que pode ser pensado como contendo algumas artes poéticas, e algumas delas inesperadamente assertivas e urgentes (penso aqui em poemas como “Avidez,” p. 32, “Eles não são os meus pares,”p. 56, “O lepidóptero,” p. 57, “Frag mento,” p. 62) onde aflora um juízo estético/ético que pode, ainda que em alguns destes poemas indirectamente, referir-se aos contextos do que significa escrever poesia. Lucidez é um destes livros que deixa patente o labor – uma palavra melhor que esforço, porque o Ricardo faz tudo isto parecer muito natural: as traduções, as antologias, os livros de poesia, a novela escrita durante a pandemia, as exposições, as leituras de poesia, o conhecimento certeiro e infalível do melhor restaurante de ramen na cidade de Lisboa – de um poeta que escreve não para pregar, nalguma espécie de exposição didática (penso que nada poderia estar mais longe do espírito do Ricardo), sobre o que seja lucidez, mas para tentar reunir alguma num livro que não impõe nada, apenas vai, poema a poema, iluminando a necessidade de falar de algumas coisas que estão no campo de forças desta palavra e, afinal, da profunda necessidade de a procurar, de ir tentando chegar a ela. Escrever desta maneira é uma forma de exploração ética e, por aí, de desejo: envolve uma viva atenção, disponibilidade e vulnerabilidade, que são três condições sem as quais, de resto, acho difícil que se escreva poesia.

Parece-me adequado que a este livro de poemas se tenha seguido, com uma novela ensaística pelo meio (A Varanda, Companhia das Ilhas, 2021), um livro sobre, exactamente, o desejo: Desiderio (não edições, 2022), que colige poemas que o Ricardo foi escrevendo acerca deste tema. Pode-se pensar em Ricardo Marques como um poeta que constrói os seus livros em torno de um só conceito (foi este o caso em Metamorphoses, Ruinenlust, Lucidez e agora em Desiderio), com uma preferência por uma precisão minimalista e por uma certa clareza vagamente derivada da dicção dessa poeta que, de acordo com a classificação sugerida por Miguel Tamen e António Feijó num livro de referência recente, O cânone, não operou qualquer revolução em termos da língua – Sophia.

Não há, em Desiderio, nenhum ângulo particularmente vanguardista. Mas isto talvez seja apenas no sentido em que o que parecem ser por vezes os poemas mais à retaguarda de um determinado momento literário são eles próprios uma forma de resistência ao tempo, que por aí ganham um outro potencial de inventividade e renovação. Mas Desiderio pode ser só mesmo lido desinteressadamente, e na verdade, convida o leitor a isso. Sendo, no entanto, um livro sobre um tema por definição privado – o desejo –, Desiderio faz-nos pensar sobre os discursos sociais que criamos sobre o tema, sobre os ícones e convenções por que estes discursos se expressam (de Antínoo a Leonardo a Corbet a Louis Garrel, passando por Hilda Hilst). E quase todos os poemas buscam um diálogo ou uma reflexão acerca da presença dos outros na nossa intimidade. Desiderio é assim um livro onde se insinua uma ideia de desejo como modo de viver, uma busca do outro à luz de uma certa lucidez, às vezes estoica e irónica, imposta pelo frágil equilíbrio entre triunfo e derrota que desejar alguém traz consigo, expondo assim a vulnerabilidade de quem fala (veja-se um poema como “Entre cão e lobo:” “dois cães conversando seus alvos/ de seara em seara trigo passageiro/ moído amiúde com o tronco/ das árvores a minha mó/ feita em miúdos// dois cães um deles mais lobo/ o outro mais magro/cães que caçam separados/ as sobras nos cantos” (p. 50).)” Noutros poemas, encontramos um eco da desesperada vitalidade de Pasolini de “O Pranto da Escavadora,” um poema onde se lê que só amar e só viver importam, não o ter amado ou o ter vivido: “só a beleza aberta/ aquela que abre é a beleza” (“Noli me tangere,” p. 42). Às vezes esta reflexão é simplesmente sobre o lado estético do desejo, a sua contemplação deslumbrada, talvez com qualquer coisa do tropeço adolescente de que falava O’Neill (penso aqui num poema como “Kouros na Biblioteca Nacional.”). Há um poema assombroso, “Voyeurismo” (p. 74), que numa nota discordante recorda, ou parece recordar, o tipo de desejo clandestino que Jorge de Sena descreve em Sinais de Fogo, um mundo de encontros avassaladores e clandestinos. Este poema é imediatamente seguido por um poema onde o desejo confina com a ternura, talvez com a alegria do amor (“Viçoso Vício,” p. 75).

Com que outras poéticas do desejo dialoga este livro? É óbvio talvez pensar em Ovídio e na sua Ars Amatoria, mas não há em Desiderio o lado expressamente didático desse manual de seduções da Antiguidade. Os poemas que aqui leio não me parecem almejar, porém, ao contrário do que sucede com Ovídio, a uma pedagogia da sedução, são antes sobre momentos privados, intensamente vividos, que são revisitados idiossincraticamente, mais ou menos despretensiosamente (embora haja por vezes uma ironia que terá a ver com uma certa preocupação com uma beleza do estilo e a espaços uma gravitas, reminiscente da dicção de Sophia, que é uma forma de falar da elevação do desejo), o que talvez venha de uma consciência de que no desejo o caçador pode tornar-se facilmente o caçado: penso aqui na lúdica sequência de dois sonetos, “Soneto do Activo” e “Soneto do Passivo” – que ironiza sobre estereótipos limitados que têm que ver com um olhar preconceituoso da heterossexualidade sobre a homossexualidade, mas brincando com o contexto da economia (o que, num contexto diferente, recorda outro livro onde este interesse pela intersecção entre economia e poética está presente, Divida Soberana, de Susana Araújo). A exploração de uma psicologia do desejo que está aqui em causa terá então, talvez, mais que ver com o mundo dos diários de Anaïs Nin, no sentido em que se procura aqui uma descrição da experiência do desejo, do que com Ovídio. Há qualquer coisa de escultório na poesia do Ricardo, de um modo mais geral: eles convidam à contemplação, pedem de nós a delicadeza de reparar nos detalhes onde, como se lê num poema de Franco Alexandre, habita um deus.

Numa breve nota introdutória ao livro, Ricardo Marques explica que Desiderio, em certo sentido, reúne quarenta anos de poesia, a mesma idade que é a sua, que os poemas estavam dispersos e foram sendo recolhidos (o primeiro poema data de 2012, o penúltimo de 2021, o último, “Biografia,” não tem data), que muitos deles nascem de coisas (peças, exposições, filmes) e pessoas vistas em viagens. E acrescenta que foi “essa surpresa da desadequação” que o fez escrever. Esta surpresa da desadequação, que tantas vezes é o primeiro indício do desejo, é talvez o fio condutor mais vital que une todos os poemas deste livro. É também isso que o torna tão adequado. Quia pauper amavi, como diria Ovídio.

Oxford, Novembro de 2022-Janeiro de 2023

Dedo nosso entrando em ferida nossa

Abre-se a boca, a luz entra na garganta feita clarabóia, e tudo principia. O corpo dá-se à claridade, dilata-se para receber a manhã iluminando as suas entranhas. O seu reflexo torna-se também visível, bem como seu lastro. Imbuído por essa claridade, não fica, ainda assim, vazio, por muito que se esvazie. O vácuo aberto pelo derrame é preenchido por uma nova forma de vazio, um vazio que não é letárgico, que não é ausente, mas que é ocupado por uma outra forma de estar no espaço, uma outra forma de materialidade.

            Por onde se abre, o corpo também se deixa invadir, torna-se porto de passagem de forças aparentemente ocultas, misteriosas. E assim, ele conquista a sua própria escuridão. Saindo do corpo, o que move o corpo aproveita a maré de luz exterior para com ela partir rumo à descoberta do interior do lugar onde morava. Encontra os seus elementos primeiros, as suas estruturas, os seus mecanismos, mas também as pinturas rupestres sobre as grutas, o bolbo soterrado das imagens cravadas na carne dando envolvência e peripécia à viagem, perturbando-a, tornando-a ainda mais explicitamente provisória.

            Não é, contudo, um prado em plena ebulição da juventude, nem a cidade consegue esconder as feridas da guerra. O que desconcerta é como irradia aquilo que Thomas Bernhard chamaria uma manhã sem destruição, um momento em que a natureza encara a sua própria violência com ternura, como um impulso redimido. 

             É a célebre pintura de Caravaggio “a incredibilidade de São Tomé”, Tomé olha a chaga de Cristo, quer tocar-lhe.  E Cristo, lânguido e prostrado, aceita ver-se penetrado pelo dedo céptico de Tomé.  O triunfo sobre a dor é a prova da divindade, e isso teria desconcertado aquele que não cria. Como poderia uma criatura ser indiferente à sua própria dor, deixando que um dedo penetrasse a sua ferida como se arrumasse... fósforos numa caixa.

            Ver figura humana ajudando a perfurar sua própria carne é como ver poeta que nos fala dos seus sentimentos, alheando-se da sua presença e evidenciando seu abandono. Eles são-nos visíveis, estão-nos oferecidos como ferida aberta sangrando tal qual se espera dela, mas a ausência de propriedade (ou de proprietário) arrepia-nos, como se pusesse em causa a própria fundação da nossa identidade: as nossas emoções mais puras.

            Quando Miguel Royo nos sugere que somos apenas orifícios que comunicam, encontramos aqui, como na pintura de Caravagio, um estranho fenómeno de anulação do ego. Mas enquanto Cristo de São Tomé se anula porque sabe consusbtanciar-se em algo que o transvaza, o alheamento do poeta parece-nos porventura mais bizarro, pois joga com um revólver na cabeça a efemeridade da sua própria morte.    

            O inventário do que nos compõe continua, dir-se-ia que o escritor tomou o lugar do fisiologista e que analisa com meticulosidade cada elemento do que compõe a carne humana. Não necessariamente para organizar um compêndio que possa ser inserido numa rede de transmissão de conhecimento. O seu regresso à materialidade é quase místico, porque tornando a matéria plástica consegue evidenciar tudo que dela emana, a sua própria sensualidade, a sedução de uma vertigem que sabe ser o desejo sublimado da queda.

            Mas ao anular-se, o sujeito procura anular aquilo que Freud dizia haver mais íntimo e fundacional: sua dor. Ainda que depois mergulhe nela, através das palavras, porque, muito embora elas se prostituam como palavras unindo as nossas ilusões de contacto, a sua duplicidade faz delas tão dignas de interesse quanto o corpo: a sua falsidade, a sua escuridão é a sua ficcionalidade, é aquilo que as torna bífidas, capazes de serem campos intensivos produtores de sentido, estimulando o nosso desejo.

            As palavras revelam-se a fundação do canto. Não se sabe bem como é que surge um corpo profundamente telúrico capaz de cantar. Nem de onde vem esse canto, se é um grito de agonia de alguém que asfixia momentaneamente, se é um fenómeno milagroso sem origem sondável, se é, como outros, um fenómeno natural da paisagem. Sabe-se, apenas, que é indagando a carne e suas feridas, que é encostando-lhe o gume como ameaça, que o canto começa.

            Talvez importe aqui, relembrar, o título do livro Na Pedra a Luz Afia o Gume, porque a estarmos perante uma teoria geral sobre as coisas da vida, não podemos deixar de notar a equivalência entre a luz e o canto. Sendo, por isso, válido questionarmo-nos tendo em conta o que faláramos sobre a escuridão do corpo - se o que se procura com o canto não será desvelar alguns dos mistérios dessa sombra.

            Se esta hipótese fosse verdadeira apunhalaríamos mais um fantasma do sentimento da identidade, porque nem o canto, ou o discurso poético, seria a prova de algum tipo de instância singular, de propriedade não-partilhada com mais nenhum corpo circundante. Este canto, assemelhar-se-ia mais a um coro do que a uma ária, ainda que invoque a primeira pessoa do singular recorrentemente, como uma espécie de cobaia que é atirada na praça pública, para experimentar o espancamento de uma multidão.

            Quando nos é dito sou o sonho do cavalo dentro do homem/ castrado da sua natureza aérea é logo rapidamente rebatido mas sou  o punho/ no teu ventre arrependido/ a mão na pedra que se recusa a abrir/ por não revelar nada a não ser/ a disponibilidade total de um membro, ao que é acrescentado mas sou a dentadura da morte/ o único árbitro que sorri no escuro. Ainda que seja ensaiada uma espécie de definição identitária espiritual, um sujeito como algo que precede e extravasa a carne, ela é logo de seguida desfeita: o sujeito é rapidamente subsumido em matéria corporal e despersonalizado, constituído enquanto entidade comum.

            Mas este não é o único momento de despersonalização, nem tão pouco do esvaziamento do sujeito para ser tomado por um outro alento. Consideremos ,porventura, se estas mãos me rangem é porque têm dentes/ e se têm dentes é porque não são minhas, mas também o futuro/ se vier/ que suba pela mecha dos meus músclos/ estendidos sobre a mesa dos dias/ em ígnea submissão, ou mesmo que o corpo se transforma/ no adubo de pensamentos alheios e a pessoas passeiam/ longe dos nossos restos porque cheiram ainda a movimento/ e a diálogos abertos. Neles se intui, não só o não-desaparecimento da agência mesmo quando o sujeito é reduzido aos seus instrumentos de percepção ou de actuação sobre o mundo, como também se constata o alheamento desconcertante que havíamos referido anteriormente.

            Por muito que os próprios pensamentos sejam alheios ao corpo há uma força motora que procura a escuridão, a escuridão da morte, impulsiona o corpo a flagelar-se, a rejeitar o sono, a cair verticalmente na doença. Na sua própria indefinição procura a febre eminente da noite num corpo distendido sem definição e dá lhe a forma urgente para afrontar o sono com as mãos e combater a morte no seu território ou a noite trabalha a carne com as mãos roubadas às insónias e ousa todas as formas até que uma brecha no escuro nos devolva as mãos e a luz.

            A confusão entre interior/exterior surge como consequência natural do desaparecimento do sujeito e viaja pelo livro todo, é o seu próprio fardo e, sarcasticamente, a prova viva da sua singularidade, porque não é nem o sujeito desaparecido puramente contemplativo de algo que lhe é externo, nem tão pouco o psicótico que transforma a aparência da realidade com as suas convulsões, é, uma outra coisa, um corpo que mira a paisagem sendo a paisagem, ou uma paisagem que encontra no corpo o seu reflexo e sobre si nele medita, podendo ser um ou outro, ou mesmo os dois em simultâneo: esta paisagem é o mundo que se deita sobre os nossos olhos… por pudor a ser desvendado volta-se sobre si mesma como um animal ferido à altura da nossa vista. A relação umbilical entre a paisagem e quem a observa parece sugerir que um e outro dependem da existência mútua para poder sobreviver, como se um e outro fossem o mesmo corpo.

            Talvez, é por saber a sua condição de primeira fila no batalhão que este falso-sujeito se presta a caminhar tão próximo da morte, sendo curioso observar que, quando se aproxima, ele torna-se cada vez mais apaixonado.  A morte surge como uma fuga, uma nesga ou, cito também, frincha entre as vedações do sentido, um ponto sem retorno da vedação do sentido. Mas também como reforço do alento.

            É sobre o parapeito dessa vertigem que caminhamos, como se tacteássemos uma noite como um grande mistério cravado no céu da boca. Porque, aqui, a morte e a noite são siamesas, procuro a febre eminente da noite num corpo distendido sem definição e dar-lhe a forma urgente para afrontar o sono com as mãos e combater no seu território. A noite paira no corpo, enquanto o corpo escapa às sondas do sentido e é possuído por um alento incógnito, movido por forças recônditas. Esse movimento centrífugo é sinal de inteligibilidade, de inteligência, começo a recear que é no nicho da sombra que principia a lucidez. Pelos corpos adentro escavo para encontrar a luz, muito embora não seja claro se isso chega para se falar de uma singularidade.

.           Seria impossível falar-se da anulação do sujeito, sem falar da morte, porque a morte é a sua arena principal. A morte e, aliás, a noite são sempre elevados ao enigma primordial, que seduz e atrai o sujeito a abandonar-se e deixar-se navegar pelas suas ondas, ainda que o perigo de afogamento seja evidente.  Só a incógnita remete para um desfecho do ego. Ou uma hermenêutica do invisível, contra ela, o poeta tem dois movimentos distintos, porque se por um lado,  a procura apaixonada por desvelá-las é afirmação do corpo como força intensiva e pregnante - como uma força própria da vida, viva por isso-, por outro lado,  a morte é também vista como descanso, a concretização do corpo com a paisagem que integra, ou, o corpo retraído na coordenada vaga onde o mundo acaba e principia o mistério.

            Ainda que este livro não seja propriamente uma elegia fúnebre, porque nos fala, porque seus órgãos estão vivos, a boca, a garganta, os seus olhos, as suas mãos, a úvula, a sua bílis trabalhando ainda, os tímpanos tísicos de tudo conservar. E estes órgãos são lhe familiares, próximos, viscerais, cobertos de nevoeiro, ainda que estanques e imóveis. Um olhar que é presa do mundo que o ataca, pulsos abertos sangrando abundantemente sobre os mapas, os corpos esmurrados por sussurros de uma vida externa que lhe é estranha e sobre o qual se debruçam: abrem-se os corpos como campos feridos com a chegada do estio… são os campos que inauguram os incêndios e ardem… voltando-se para o interior do lume.

            E novo desconcerto, é que não só os órgãos nos trazem a expansão fulgurante de uma vida que está para lá do corpo, como essa vida nos traz o rasto de outras narrativas, pegadas de cabras que passaram para nos beber os sonhos. É por isso que, talvez, relembrar é como um espasmo de morte, como nos é dito, porque a memória parece impedir o fluir livre da vida sensorial sobre os órgãos. Ela é maliciosa, onde armazena os enigmas da vida, onde amarzena as noites, torna evidente o carácter provisório de tudo o que lhe rodeia. Mas é, também, a segunda prova de que o corpo está vivo e isso não nega a sua função de fio condutor da corrente elétrica. A memória, quando não traz trégua, traz a obrigação da procura, constituindo-se enquanto terceira voz à digladiação interna entre os elementos da paisagem.

            Ainda que pareçam todos mediados pelo mesmo denominador (dada a ausência de carácter singular e a aparência cosmogenética da descrição que é feita) os elementos da paisagem não são idênticos. Não é certo o que os distingue senão a sua composição, porque se recusa quase sempre falar de uma identidade dita espiritual ou transcendental,  porque tudo parece alimentado por forças vizinhas. Talvez, a singularidade venha de fardo antigo, tenho o sangue contaminado pelo tempo a razão da sua diferença seja a descendência, o seu genoma porque o sangue transporta a descendência, a trama infindável de paixão

            Ainda que os corpos se sucedam, e que a descendência apareça como um estranho fenómeno de iteração marginalmente alterada. Ela tem dentro de si o seu próprio equilíbrio funcional de forças, a relação entre a mãe e o filho, entre o neto e seus antepassados. Permite-nos, dessa forma, partir rumo ao cerne do seu caos harmonioso, onde a dor e a morte aparecem desveladas como algo próprio da natureza e, por isso, belo. Por mais violento que ela possa ser. Filhos que abandonam ideias em chamas, cuja natureza icariana faz que só pela dor concretizem o que aspiram ser.  Avós que assombram os netos com seus sonhos e profecias. Mães que observam os fihos cumprirem-se sobre o gume da morte.

            O desconcerto, provocado pelo desvelar dos conflitos internos da paisagem com outras vozes, assemelha-se mais a uma arena do que a um horto, é aliás bélico. É um balanço permanente entre a imagem e aquilo que a imagem evoca, mas não num plano tradicional da oposição da fenomenologia clássica, é uma luta dentro da própria imagem, é dentro dela que uma parte entra em conflito com o restante, o mundo atacando,  a memória como uma revelação, o mundo retaliando, e o corpo respondendo, não serve estar ferido nos olhos e capitular. Urge desdobrá-los… como um punho ou um baluarte erguido na frente das trincheiras do mundo.

            Esta luta pede aliás um tributo para as tramitações da carne porque é aos corpos que é exigido que encenem este combate, porque é do que lhes compõem que vêm o que gera a confrontação, as mãos que não são só, como dissemos, elemento primeiro de reconhecimento do mundo, mas também que trazem sedes próprias (fomes que nem o pulso apaga), que rangem raivosamente para morder.

            Esta submissão do sujeito para dar lugar ao corpo encontra-se também reflectida nas imagens propriamente eróticas, no sentido clássico da palavra, isto é, como aquilo que diz respeito ao amor. Porque até aqui, não encontramos, propriamente, o amor como resultado do desejo de quem ama, nem tão pouco na candura ou desenvoltura de quem é amado: o amor aparece tão só como mais uma das dinâmicas de confrontação entre os corpos, como um enigma próprio da paisagem, e o beijo como um detrito do vocábulo ou um ósculo de rebentação. Quando amados, os corpos procuram a sua proximidade, querem a faísca do seu magnetismo, procuram visceralmente ceder à sua vertigem. Quando amados, ou, melhor dizendo, quando atraídos pelo amor, os corpos desmembram-se e tornam-se elementos da paisagem.

            O amor tem essa faculdade, de operar uma transformação das coisas, dando-lhes exaustiva vida própria, uma outra utilidade, vemos neste livro, mãos que se tornam água, que arredondam pedras, que sulcam a derme e fendem desejo, que se alimentam do que criam e que criam o que alimentam. É um momento de subtração para gerar novas substâncias, de cair verticalmente a meio e aparecer de pé sobre a laje do teu futuro.

            E é quando há a possibilidade de o amor desaparecer, mais que quando se extinguiu o ânimo de uma criatura, o sujeito de um corpo, ou a textura de uma paisagem, surge o momento de maior fulgor e violência nos poemas. Fala-se de rasgar o corpo amado de cima a baixo, de incendiá-lo e encontra-se o verso que dá título ao livro é na pedra que a luz afia o gume, como se fosse possível torcer a própria espinha dorsal da luz, do canto, para torná-lo acutilante, perigoso, feroz, penetrante como uma faca.

            Neste livro assistimos a uma cosmogenese, o que há de substantivo parece surpreendentemente alinhado num conjunto de teses que organicamente dialogam entre si e se reforçam, sobre a aparência de uma linguagem desconcertantemente límpida e soberana. Tem lugar um teatro dos corpos alimentados pela sua própria paixão mas sem ter, propriamente, um pendor onírico, uma fabulação romantizada.

            A paisagem está descarnada, despida, os ossos expostos. Onde nos desconcerta, é a sensualidade que evoca este desvelar por vezes tórrido, por outras vezes sereno. Os corpos enquanto actores, figurantes e cenário procuram-se e procuram se a si próprios, enfrentam a noite e a escuridão de tudo o que lhes rodeia, do seu desígnio, do seu passado, da sua descendência, da sua paixão, a dor e a morte despem-se, apresentam-se puras, não-mediadas, escorrendo sem coágulo.

            Só, talvez, na memória dos anciãos da família, surge uma afecção dir-se-ia pessoal, mas em todo o resto é um livro completamente acabado e que nos perturba na medida em que se alheia categoricamente do que nos é próximo, como uma casa nossa que nunca visitáramos onde de cada aresta depende o confronto com a ruína. Na mesma medida que se afasta de si próprio, procura-se a si próprio como um outro, como um olhar projectado de fora do crânio para o corpo mas não como um corpo que se olha ao espelho, porque não é necessariamente reflexivo, não é o sujeito que se pensa, é algo que pensa fora do sujeito sobre o sujeito e que para isso usa o que vê, as pegadas que invocam a passagem do tempo.

            Não há linhas de fuga projectadas por eventuais desequilibrios, as única linhas de fuga são as que o seu próprio corpo indica e lança para lá de si, um corpo desmembrado, para depois ser recosido, e ainda assim manter todo o seu potencial alegórico, a sua fantasia. Foi a isto que quisemos chamar desconcerto. Um dedo outro entrando em ferida alheia sendo um dedo nosso entrando em ferida nossa.

Que Túmulo Em Que Talhão - Recensão

Revisão 25/06/2023

A poesia repete-se e reinventa-se permanentemente, é, como as outras artes, reacionária e progressista, tem um pé no passado e outro no futuro. Se, por um lado, pelo menos desde o modernismo, desapareceram quase todas as restrições formais; por outro, permanecem campos específicos, edições e prémios, por exemplo, que não a deixam confundir com o resto da ficção. Há, até, a crença popular (pouco justificada) do talento poético da cultura portuguesa, provando o reconhecimento de um ethos que a diferencia no mundo das artes da palavra.

A obra de João Moita (ele recusa tê-la, cada livro, diz, é um começo, mas a bandana de Que Túmulo em que Talhão seleciona Fome — Enfermaria 6, 2015/17 — e Uma Pedra sobre a Boca — Guerra e Paz, 2019; juntando-se a isso um trabalho profundo de tradução poética: Antonio Gamoneda, Saint-John Perse, Arthur Rimbaud, Pierre Louÿs, Paul Verlaine, Walt Whitman) tem a marca da inclemência, há sempre uma tensão que atravessa o que é dito e mostrado. Um sopro frio sacode o espúrio e o sagrado (o que se considera como tal), como nos cínicos gregos, que para serem autênticos tanto se lhes dava como se lhes deu. Neste sentido, talvez a poesia de João Moita seja dedicada a Deus, impotente ou tolerante perante o mal, um evangelho do negativo. Por isso, capturando sem falhas o concreto e o sensorial, Que Túmulo em que Talhão foi composto com símbolos incomuns: foice, bafio, ranço, peçonha, salobra, asfixia, vertigem oblíqua, gangrena, podridão, emboscada, putrefação, morte, cadáver, chiqueiro, epidemia, matança, veneno, negrume, lamaçal, vísceras, visco, pestilento, tumor, bafo, entulho, escuridão, náusea, indigesta, fome, mórbido. A solidão pobre, o tédio, as iras domésticas, uma paz que sufoca… Talvez para melhor confinar a linguagem à função de descrição física e de localização. Ou achar que são as melhores palavras para ir para lá da linguagem.

Não sei se João Moita quis exprimir ou expulsar sentidos que o compõem ou se deixou que algo emergisse através (sim, atravessando-o) dele. Die Sprache spricht («A linguagem fala», Martin Heidegger, que admirava Hölderlin e achava que o Ser habita na poesia). Respeitando a sua vontade de desaparecer por trás dos livros que vai escrevendo, avanço a hipótese de uma linguagem da Lezíria assomar na ponta da sua caneta, ditando o fulgor amoral, patético, repugnante, viril, cruel… da vida/morte. Um livro que podia, assim, não ser assinado, mesmo reconhecendo que a linguagem da lezíria não escolheu o João por acaso. Creio saber que ele não gosta nem da embriaguez dionisíaca nem do humanismo apolíneo, tomados nesta dicotomia simplista, é também avesso, quando se concentra no individual, tanto à autocomiseração quanto à autoglorificação. Daí compreender-se que tenha procurado «representar a natureza em toda a sua esplendorosa indiferença e amoralidade».

Quis também «Eximir o sujeito poético ao poema». Sim, e não. Por um lado, contra ele, é indesmentível que estabelece um discurso direto com o leitor no primeiro poema, um prelúdio disparado imperativamente. Quer introduzir-nos no desencanto, para enquadrar a leitura do livro, e abrir horizontes de expetativas existenciais. E o sujeito poético emerge noutros lugares: pp. 64 («será a minha vida»), 67 («augúrio / que não decifro»), 76 («onde me detenho», «minha vida»), nas pp. 79 e 82 ainda mais claro, repete-se um «eu» e aparece um «ouço». Como o futuro foi anulado, culmina num «eu» a imolar-se na última estrofe do livro:

E eu,
couraçado pela solidão,
busco companhia
no milheiral
benzido
pelas chamas.
(p. 82)

Por outro lado, a favor do que disse, é surpreendente encontrar tão poucas vezes o sujeito poético, e nada de metapoesia (ultimamente tornou-se um vício, sobretudo nos jovens artífices). Mais, o humano quase se ausenta de Que Túmulo em que Talhão, «crianças da vila», «homem dobrado» e pouco mais. E mesmo quando aparece uma «mãe», é de gatos que se trata. Este desaparecimento desvia o protagonismo para a lezíria, sentimos que a desolação do ecossistema precisa da escassez humana, talvez exposta em contraluz nos mistérios da ausência-presença. Sem nós, a Lezíria viveria numa amoralidade exultante. É por isso que a luz direta que João Moita diz lançar sobre a natureza talvez não morra aí, ela acerta na Lezíria, certamente, mas reflete-se em algo para lá dela, e nesse além está, acredito, o humano, mas também o divino. Terei sucumbido ao magnetismo da ausência?

Expressionismo niilista. O único consolo — numa remissão tão frugal que é preciso ter a força de um estoico experiente — está, pontualmente, na indiferença. Mesmo quando não compõe uma imagem de fealdade e desarmonia, acaba por escrever: «acocoradas sob as telhas / as sombras preparam / uma emboscada». Quem se lembraria de mostrar num poema que

O frio eriça
as vísceras dos frangos,
enxameadas de moscas
para a postura
dos ovos.
(pp. 31-32)

No mesmo poema — do capítulo «A Vila», o outro é «Os Campos» — retoma episódios de elementos naturais que invadem a polis decadente, percorrida pelo destino do desaparecimento: «o sonar de um morcego / varre a ignomínia do quintal». Neste caso, o metafórico ganhou a relevância exata de um lirismo negro, como sucede na estrofe que se segue:

O sol lança chispas

sobre o caixão.
Jazem azuis e bolorentos
os limões,
como as chagas
imputrescíveis
da devoção.
(p. 33)

Há nisto um ver as coisas a partir de um ângulo pós-convencional, mas há também a vontade de inverter a pastoral, e desde logo uma das figuras mais emolduradas, a aurora: «Amanhece na campina / como o caruncho alastra / no sudário» (p. 39) Uma lírica perfurante para chegar à vida nua campestre, ou um neorrealismo desumanizado:

Coalha de lêndeas
o pêlo das grandes
ratazanas,
mosquitos sedentos
mugem os úberes
das vacas da charneca,
rodopiam,
em sua grande
transumância,
as pedras frias
do entardecer.
(pp. 50-51)

A aurora, o belo crepúsculo dos românticos, a terra, a luz, o céu…, nada dito tem suficiente força redentora para fazer frente ao poeta, ou aos poemas. Nem mesmo a metafísica resiste ao teste de esforço hermenêutico:

Cai varado
um deus
como um limão
na aridez
da charneca.
(p. 59)

É a segunda vez que limões e divino se cruzam, não o limão jovial dos cocktails, mas o da acidez que também apodrece, e antes cai desamparado. É por isso que me senti assombrado pela ideia da decomposição (termo que o João usa), do orgânico, seguramente, mas também a decomposição de uma certa forma de escrever poesia. É assim que ousa criar esta surpreendente analogia: «o negrume de um céu / de amoras pisadas.» (p. 69) Uma traição ao hábito, a que alguns chamam inventividade. Mas pode também ser, deixem-me arriscar, uma extrema fidelidade aos pormenores, envolvidos, dia e noite, num bafo pestilento.

A Torção dos Sentidos - Recensão

1507-1.jpg

Louve-se o aparecimento de um livro de filosofia (num sentido amplo, A Torção dos Sentidos segue a linha ensaística inaugurada por Montaigne), exercício de pensamento que nos habituamos a menosprezar desde que, há muito, em Portugal, lhe preferimos o lirismo ou o discurso comum. Não somos uma cultura filosófica, nunca o fomos, nunca o seremos. Uma fatalidade que construímos e com a qual nos damos bem.

Os que escaparam ao destino da indigência intelectual encontrarão neste livro bons estímulos para pensar o uso da tecnologia digital, uma crítica às sociedades capitalistas e uma fenomenologia, entrelaçada com uma hermenêutica, do amor, viagem, comunidade, estudo e arte. Se é verdade que não aderimos totalmente às teses do autor (sobretudo porque nos parece que há demasiados tipos de capitalismo para que se continue a pensá-lo uniformemente e porque a questão da desigualdade social deve ser, em primeiro lugar, abordada a partir da situação privilegiada, ou não, em que nos encontramos, uma ética antes de uma epistemologia), reconhecemos a importância do seu labor e confessamos que sentimos prazer ao lê-lo.

O capítulo inicial é sobre o que pode a filosofia perante a situação pandémica originada pelo SARS-CoV-2, um questionamento que terá várias respostas, todas, contudo, assentes num único eixo de sentido: poder de interpretar e poder de transformar. Isto segue, claro está, a inversão realizada por Marx: mais vale transformar do que interpretar, ou, no mínimo, só devemos interpretar se com isso quisermos e pudermos transformar (uma filosofia política que ocasionou, mesmo que numa versão bastarda, a civilização soviética, e agora, ainda com mais enxertos, a chinesa). Que na origem tinha uma atmosfera messiânica do reino dos fins, neste caso seria, mas o autor não vai tão longe, uma sociedade de iguais inconfundivelmente feliz. Assim, «a hipótese filosófica visa não a máxima adequação à realidade mas a máxima tensão entre a aproximação interpretativa e o distanciamento transformador.» (p. 21)

É, pois, necessário ler esta obra «com a pulga atrás da orelha» (expressão do autor), João Pedro Cachopo quer, pelo menos, transformar, com a ajuda de uma escolha calculada de comentadores (Zizek, Badiou, Byung-Chul Han, Agambem, Nancy, Rancière, Naomi Klein, Walter Benjamin…), a nossa perceção da realidade (mistura de subjetividade e objetividade, um pouco à maneira da «situação» sartriana), aderindo à sua cosmovisão. Será, então, um livro emancipador? Sim, se o lermos com a «pulga atrás da orelha».

Ora, o que Cachopo vai interpretar (para transformar) não é a pandemia em si, «as transformações que a pandemia revelou e acelerou já estavam em curso», mas as formas de aproximação e distanciamento (no amor, viagem, estudo, comunidade e arte) na era digital (evitando simultaneamente a desconfiança catastrofista e o entusiasmo ingénuo, a tecnofobia e a tecnofilia, as linhas do intelectual «apocalíptico» e, inversamente, do «integrado»). É por isso que a pandemia serve somente de lente de aumento para interpretar melhor, intempestivamente (não é a verdade enquanto adequatio que se procura), a realidade, descobrir as linhas de fuga que conduzem a previsíveis transformações, alteração «radical de os nossos modos de vida, de um modo consequente em termos éticos, políticos e ambientais». (p. 12)

Transformar matricialmente o quê? A era capitalista (neste sentido, o livro é neo-marxista), algo que alguns autores vislumbraram nos efeitos da pandemia, sobretudo com o decréscimo da produção industrial e a mudança das relações laborais. Em boa verdade, não se conseguiu «arrepiar caminho», a matriz capitalista permaneceu inalterada (não se muda uma civilização — conjunto de práticas e valores — de um dia para o outro). Mas a pandemia teve a virtude (política mais do que epistemológica) de mostrar à saciedade que «não estamos no mesmo barco» (Cachopo parafraseia Sloterdijk, invertendo a sua tese)[1], tornou ainda mais «patente as desigualdades que estrangulam o nosso planeta.» (p. 34)

Mas não sendo um livro de filosofia política, pelo menos diretamente, o autor vai pensar as transformações no «modo como sentimos, pensamos e agimos» (p. 36), tanto mais que isto, e aqui está a veia política indireta, sobrevém e influi nas transformações do «mundo» (não é indiferente em filosofia usarem-se os conceitos de mundo e de realidade, aquele é bem menos fenoménico do que este). Um mundo construído na «gritante fragilidade da engrenagem sobre a qual o capitalismo global erige o seu castelo de cartas.» (p. 39) Estamos, pois, no limiar de uma revolução, ou melhor, da revolução. Preparemos, pois, com a ajuda, entre outros, da Torção dos Sentidos, o nosso pensar, sentir e agir para o que aí vem.

E o que aí vem conterá estes últimos anos de remediação digital, mais visível durante a pandemia. A ação do digital herda a «reprodutibilidade técnica que revolucionou a experiência moderna na transição entre os séculos xix e xx» (p. 43). O digital, por exemplo, promete a «aproximação do distante», bem como uma «equalização das distâncias». Mas ao lado de promessas exequíveis e emancipadoras, há outras tantas que são de manipulação e exploração. É por isso, retomando uma ideia de Umberto Eco, que Cachopo distingue o intelectual integrado do apocalíptico, para, no final, os recusar em bloco. Acoplado às suas virtualidades, no primeiro uma «ingenuidade e leniência» (p. 58) desenvolve a ideia estéril, e filosoficamente imprecisa, de vivermos no melhor dos mundos possíveis; a partir do segundo, emerge um reacionarismo que não deixa avançar o mundo (revolução e progresso vão a par, pelo menos no discurso).

Mantém-se, pois, a pergunta: como «combater a revolução digital em defesa da experiência humana» (p. 66)? A resposta geral é a de que nos devemos orientar «não para uma rejeição genérica da tecnologia digital, mas para o discernimento dos seus usos, das suas potencialidades e dos seus perigos.» (p. 67) Salomónico. Mas, então, onde cabe a revolução? Talvez, finalmente, ela não passe de um bordão performativo, capaz de alimentar uma boa consciência que se resignou sem repousar, resignação semi-ativa.

Fiquemos, então, com uma reforma do sentido do amor, da viagem, do estudo, da comunidade e da arte. Estas parcelas do mundo ganham novos sentidos quando investidas pelo digital. Isto, diz Cachopo, sem esgotar significados, pretende somente «sugerir algumas — precárias, genuinamente indecisas — pistas de reflexão.» (p. 70) Não sabemos se esta modéstia esconde ou revela.

O amor, jogo de distância e aproximação, mas no qual o contacto entre corpos importa acima de tudo, não ganhará muito com a remediação digital, tanto mais que no namoro telemático não é possível, como muito bem viu Byung-Chul Han, ficar «olhos nos olhos», num dispositivo ou olhamos para a câmara ou para os olhos do outro, a simetria do olhar, tão decisiva, nunca acontece.

«Viajar é conhecer o mundo no contacto com ele», por isso, com o slogan «fiquem em casa», a viagem foi tão ameaçada pela pandemia. Sem deixar de ser crítico relativamente à massificação turística (quem não é?), o autor defende a necessidade de se viajar, porque só as viagens permitem certas experiências multissensoriais. Ao mesmo tempo, conhece-se o impacto ambiental, e social, negativo das viagens. Portanto, o «desafio não é deixar de viajar, mas viajar menos e melhor» (p. 77). E aqui também não é possível uma qualquer remediação digital significativa.

Sobre o estudo, recusando «elucubrações de cunho nostálgico e conservador.» (p. 80) — uma crítica a Giorgio Agamben —, concede que houve alguma remediação digital durante o enclausuramento pandémico. Contudo, nada que invertesse o novo statu quo universitário, que mais do que emancipar pelo pensamento, profissionaliza o pensamento, sobretudo o crítico. Além disso, acentuou o colapso da «hierarquia entre mestre e discípulo» (p. 82), sem que o autor nos diga que benefícios se retiravam dessa hierarquia, somos, até, tentados a ver aqui um pequeno lapso, tendo presente a críticas que faz ao desigualitarismo. Sabemos bem que a igualdade não significa ausência de hierarquia, ainda assim, sem que Cachopo nos queira explicar a sua ideia, ficamos com a «pulga atrás da orelha». Mas talvez o mais grave, continua o autor, tenha sido o desaparecimento da «vida em comum» dos estudantes, porque o «estudo é feito de encontros, atritos e colisões entre pessoas, objetos, experiências, ideias e palavras.» (Ibidem).

Na comunidade, esfrangalhada por décadas de individualismo e arrivismo, «foi o receio de não estar a salvo que motivou a comoção global, não a solidariedade.» (p. 87) Tomando de empréstimo uma ideia de Byung-Chul Han, João Pedro Cachopo vê o digital transformar o «rebanho ou a matilha» num «enxame»)[2] Assim, a remediação digital não criou qualquer novo tipo de comunidade, mas enxames, ajuntamentos de partículas pontualmente coincidentes que nunca chegam a formar um «nós». São, assim, um paliativo inconsequente para o isolamento. Daí que, com Catherine Malabou, alguns tenham, retomando o princípio rousseauniano (Les Confessions) de se retirarem para dentro deles, de combater o isolamento (resultado de não pertencerem ao enxame) com a solidão, ponto de partida para, paradoxalmente, se encontrar um «nós».

Finalmente, na arte a «verdade alternativa não é entre o acolhimento e a rejeição de novos media, mas entre usos mais e menos criativos, mais e menos ousados, mais e menos desviantes das tecnologias — incluindo as tecnologias de remediação — na prática das artes.» (p. 97) O autor justifica esta posição com exemplos de obras realizadas e difundidas telematicamente durante a pandemia.

No epílogo, do livro [e do mundo?], questiona-se a possibilidade de um «nós universal» (p. 107), capaz de renovar as «sociedades estranguladas por desigualdades». (ibidem) Mesmo sendo «universal», João Pedro Cachopo diz que o «livro prescinde de determinar a priori um “nós”».[3] (ibidem) Prescinde, porquê? Não quer ou julga ser impossível? Haverá ainda disponibilidade filosófica para se propor uma universalidade, não terá essa extravagância sido definitivamente revogada no final século xviii? Trata-se de filosofia ou de política? Seria esse nós, talvez a «vontade geral» rousseauniana, a traçar uma terceira via entre o pessimismo e o otimismo, capaz de encarar e intervir no mundo. Cuidando de não embarcar em antíteses incapazes de culminar numa dialética da síntese, o autor demarca-se de um «antiglobalismo» que parece «contribuir para o que pretende combater: o egoísmo nacional-capitalista.» (p. 109) Portanto, a passagem do «eu» para o «nós» só poderá ser realizada, bem realizada, com «experiências de estudo, arte, viagem, amor e comunidade.» (ibidem) Numa boa aliança entre «tecnologia e ecologia». (ibidem)

Desta forma, deixamos que se insinue um pequeno Pangloss e percebemos por que razão foi tão criticado o pessimismo, social e antropológico, sartriano (o «homem é uma paixão inútil» de O Ser e o Nada), pelo menos o do «primeiro» Sartre. A lógica do happy end, na economia política e emocional, continua a recompensar mais.

[1] Peter Sloterdijk, No Mesmo Barco. Ensaio Sobre Hiperpolítica, Lisboa, Edições Século XXI.

[2] Byung-Chul Han, No Enxame: Reflexões sobre o Digital, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Relógio D’Água.

[3] Pouco depois coloca-se novamente no «verdadeiro» escrevendo que se trata de «um “nós” que, mais do que pressuposto, pode e deve ser elaborado.» (p. 108)

UM TROPEÇO NOS DIAS QUENTES (nota de leitura)

tropeco+capa_pequeno.jpg

João Bosco da Silva é e não é um jovem poeta, trata-se do 8.º livro que publica (http://www.enfermaria6.com/joo-bosco-da-silva), tempo e trabalho suficientes para o retirar, biográfica e esteticamente, das incandescentes experiências dos neófitos. Ao mesmo tempo, ainda não se cansou das palavras, percebe-se que as acolhe como se fossem só amigas, difíceis, mas amigas. Por estar neste limiar, que é sempre um interstício de liberdade, e por eu gostar do que Northrop Frye escreveu (“A absurda fórmula quântica da crítica, a asserção de que o crítico se deve confinar a «extrair» de um poema exatamente aquilo que vagamente se assumiu que o poeta terá «colocado» no poema de um modo consciente, é uma das muitas e desmazeladas iliteracias que a ausência de uma crítica sistemática permitiu que alastrasse.”) vou dizer o que bem me apetecer, com o devido respeito pelo autor. E neste livre jogo de pensamento talvez coincida, de vez em quando, com o que ele queria que percebêssemos e sentíssemos.

O livro tem três conjuntos de poemas: “Tropeço nos dias quentes”, “Tóquio” e “Poemas Siberianos”. O primeiro é bastante mais vasto e forma o espírito do livro. Nele aparece por vezes, poucas vezes, o habitual erotismo, quase pornográfico, de Bosco da Silva (em geral, trata-se de um acto de imberbes que descarregam energias no primeiro buraco que encontram ou ejaculam para o ar). Mas no essencial, os poemas assumem uma viagem ao passado, ao seu passado. Sem nostalgia, e muito menos qualquer rito de auto-celebração, recordam o sem-valor e os falhanços. E quando aparece o avô é para irradiar tristeza, quase pura, sem a mediação poética (capaz, muitas vezes, de ressuscitar mortos e de os pôr a dançar, como se não tivessem viajado, paralíticos, para longe). É a tristeza do que se esvazia, não de quem busca catarses ou linhas de sentido para o presente e o futuro. Portanto, quando Bosco da Silva espera “que valha a pena o passado”, sente-se que a resposta só pode ser: não! Por nada em particular, somente porque ele está cheio de actos falhados, como o presente e previsivelmente o futuro (“Acredita que todos os dias também eu me perco um pouco mais / para sempre.”). Daí tratar-se de “tropeços”, desse embater, involuntariamente, sem inteligência, nas coisas que a vida vai semeando, em modo armadilha, na nossa passagem.

Este retorno ao passado está condicionado, como sempre acontece, pelo presente. Mais, para Bosco da Silva “o passado é [até] influenciado pelo futuro.” Assim, acontece ficarmos sem saber se o passado foi triste e com pouco sentido ou se o observador poeta está tão desolado que só pode lançar sobre o pretérito o seu estado de espírito niilista actual. Ao mesmo tempo, parece haver um efeito de ricochete, ao querer compreender, e julgar, o passado, este vira-se para ele e pergunta-lhe: “Olha lá, achas que te tornaste numa boa merda?”. De qualquer forma, “O regresso é apenas um desfile de ruínas, é uma amputação / certificada”. Talvez por isso, a par da palavra “passado” encontremos, similar na frequência e intensidade, as de “esquecimento” e “vazio”. Ir ao passado para constatar que “O que está perdido está perdido, não vale a pena mastigar o vazio que ficou.” Ou “deixa o esquecimento levar todos os sonhos e dores, lavar a poluição […] não vale a pena, apaga a luz e espera pelo fim da noite.” Tudo queima, em lume brando, passado, presente e futuro. Mas o que seria da civilização sem um mal-estar persistente e invencível?

É por isso que o título do livro poderia ter sido: “Querido passado não fizeste um futuro”. Apropriado a um manual do esplendor invertido, uma tragédia estóica, em vez do histrionismo catártico das tragédias mais conhecidas. Tragédia mais ética do que moral, porque se trata de um indivíduo ensimesmado, dando chapadas a si próprio. E nisto também se percebe que Bosco da Silva se transgrediu. Mantendo alguns traços do seu cânone (sexo, diatribes de infância, intentos surrealistas – apesar de Franco Alexandre –, experimentos alcoólicos, escatologias fisiológicas), esta viagem ao passado abriu a porta, quer ele a atravesse, quer não, para outra poesia.

Qual? Não sei bem, não sei sequer se ele saberá, e se isso interessa para alguma coisa. Se todos os poetas devem, para o ser, encontrar o que é duradouro no fugidio, cada um fá-lo-á à sua maneira. A maneira de Bosco da Silva será a que se lhe impuser sem remédio. Para já é muito bom que se desvie tão bem dos clichés, a principal causa da decadência da poesia em Portugal. Um cliché é uma ideia sem raízes inventivas, uma ideia-hábito, ou uma ideia-preconceito, ou uma ideia ready-made, que não projecta qualquer necessidade interior, que não se confronta com a possibilidade do universal, que não alcança qualquer noção de beleza. Mas acima disto tudo, eles impedem que o poeta desenvolva um estilo pessoal, e sem isto a sua vida artística será curta e aborrecida. Não se ter encantado pelos clichés, faz de Bosco da Silva um poeta para o futuro, tanto mais que tem uma certa genialidade panóptica. É com profundo interesse, pois, que esperamos pelo seu próximo livro. Entretanto, leiam este, terão muito a ganhar.