Kazuo Ishiguro

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Ontem foi dia de Nobel da Literatura, venceu Kazuo Ishiguro, do aclamado The Remains of the Day, que o cinema ajudou a popularizar. É um autor pouco, e talvez mal, traduzido em Portugal (desconheço a situação brasileira), a Enfermaria deixa aqui a tradução de um retrato que a célebre revista francesa Le magazine Littéraire fez dele em 2015.

“Chegado ao Reino Unido, vindo do Japão, com seis de idade, o autor de The Remains of the Day tornou-se um dos escritores britânicos mais emblemáticos. Com uma fleuma inoxidável, há dez anos que não publicava um novo livro.

Antes de mais, há uma extraordinária dualidade: a face indubitavelmente japonesa e a expressão absolutamente britânica. Quem é Kazuo Ishiguro? A primeira vez que o encontramos, em 1997, aquando da publicação em França do seu romance The Unconsoled, tinha-nos recebido na sua casa londrina, tipicamente inglesa, «ou melhor, tipicamente inglesa como a imaginam os franceses», corrige ele hoje. Fomos embora um pouco desorientados: um escritor anglo-japonês, capaz de escrever com o absoluto domínio do estilo «japonizante», até mesmo japonês, e ao mesmo tempo capaz de se inscrever na mais pura tradição romanesca britânica (The Remains of the Day), antes de construir, com idêntico sucesso, uma obra claramente da Mitteleuropa (The Unconsoled). Estavamos, com certeza, na presença de um problema de identidade...

Dez anos depois do seu último livro, Never Let Me Go, surpreende-nos novamente com The Buried Giant, uma espécie de narrativa «pós-Arturiana» palpitante, cheia desse realismo mágico que fez o sucesso da literatura latino-americana e marcou, para o melhor, toda uma geração de autores britânicos vindos de fora. Ocasião para, neste novo encontro num bar de um grande hotel parisiense, tirar tudo a limpo. «Não, não tenho problemas de identidade. Sinto-me britânico, e de uma certa forma muito inglês, mesmo se a minha parte japonesa é para mim importante. Cresci na Inglaterra, vi a sociedade mudar, e enquanto escritor tive a minha parte de responsabilidade nessa mudança. Por isso, sinto-me cada vez mais inglês.»

Rápido salto no tempo, como nessas analepses que ele tanto usava nos seus primeiros livros. Estamos em 1960, Kazuo Ishiguro tem 6 anos, o seu pai é convidado pelo governo de sua Great Majesty a vir prosseguir em Guildford (Surrey) as investigações em oceanografia. A estadia devia durar 3 anos, será definitiva. Quinze anos depois do fim da sangrenta guerra que opôs o Japão aos Aliados, imagina-se que não terá sido propriamente fácil para o jovem Ishiguro de ser aceite pelos colegas da escola... «Nada disso. Era o único não-branco da minha turma, mas nunca sofri a mínima marca de racismo.» Acrescentando que quando brincava à guerra com os seus pequenos amigos, insistia «para estar no lado dos que combatiam os alemães, não os japoneses. E que se, por azar, os japoneses eram os inimigos, podia fingir ser coreano.»

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Sucesso imediato

Uma infância inglesa das mais banais, ritmada pela ida à Igreja, à escola e a amabilidade da vizinhança. Uma única nota falsa numa noite de «the joyful day of deliverance», tradicionalmente organizada além-Mancha no 5 de Novembro para festejar a derrota da Gunpowder Plot em 1605. A fogueira sobre a qual se queima simbolicamente o manequim do malfeitor Guy Fawkes estava no jardim dos pais de um colega de turma. «Quando ele viu a minha mãe, que tinha ficado na penumbra, a face deformada pela luz das chamas, ficou muito pálido e desapareceu subitamente.» Soube depois que tinha estado alguns anos cativo num campo japonês conhecido pela sua dureza. Até ali muito cordial com os seus vizinhos japoneses, o ex-prisioneiro não tinha suportado a emergência circunstancial de lembranças traumáticas. Mas depois de esta viagem no tempo continuou a manifestar aos vizinhos a mais sincera simpatia.

Passou o tempo, e o rapaz, perfeitamente inserido nos anos 70 britânicos, sonhava ser uma rock star, ou melhor, um guitar hero. Depois fez um ano sabático viajando à boleia através dos Estados Unidos, antes de ir para a universidade estudar literatura inglesa e filosofia. E a escrita? Ela surgiu subitamente aos 28 anos, quando sentiu a necessidade de olhar, antes do desvanecimento total, para a sua breve infância japonesa. Tendo, entretanto, seguido cursos de escrita na universidade de East Anglia, dirigidos por Ray Bradbury, deidicou-se ao seu primeiro romance, A Pale View of Hillis. «Na época tinha um emprego social e não sentia a mínima esperança de vir a viver da escrita, confidencia. De qualquer forma, a literatura não possuia nessa época a aura que obteve mais tarde; a música e a televisão estavam muito mais na moda, um sucesso literário limitava-se a ter uma boa crítica num jornal de referência, nada mais.» O sucesso, no entanto, foi imediato: em poucos livros, distinguidos com vários prémios importantes, entre eles o Booker Prize para The Remains of the Day, Kazuo impôs-se como uma das vozes maiores da nova geração literária, ao seu lado estavam Salman Rushdie, Martin Amis e Ian McEwan.

«Ish», como lhe chamam os amigos, é um autêntico escritor inglês, quase um puro, mesmo se a escrita, pela sua fluidez e limpidez, beneficia, sem dúvida, do legado nipónico. Subsiste uma questão: que coerência há numa obra tecida de universos tão díspares, marcada por tantos saltos no tempo e no espaço? Acreditando nele, uma busca incansável para tentar «compreender o que é verdadeiramente importante para um ser humano». «Enquanto escritor, não procuro tecer uma constatação sobre o que se passa num dado sítio e numa dada época. Preocupo-me com questões mais filosóficas, eternas, universais, mesmo se desconheço as respostas que lhe poderei dar.»

Daí a opção pela via metafórica, escrever de uma forma tal que mesmo os romances como The Remains of the Day, situado numa época e num lugar específicos, não pareçam demasiado realistas, uma maneira de levar o leitor a «procurar neles verdades eternas, e não informação sobre a sociedade da época». Explica que com The Buriet Giant quis colocar a questão da memória dos povos, correndo o risco de confrontar o dogma do «dever de memória», ao qual a modernidade se apega tanto. «Será mesmo necessário manter a memória do passado? Não será melhor algumas vezes esquecer as guerras, os acontecimentos trágicos, afim de evitar novos banhos de sangue? Não sei verdadeiramente o que pensar... Talvez o esquecimento seja preferível.»

Um questionamento que, segundo ele, vale também para o domínio do íntimo. Qual seria a esperança de vida de um casal se cada um mantivesse as memórias dos diferentes passados, acumulando rancor e frustração? Não valerá mais a pena, no fim de contas, à imagem do casal do seu último romance, aprender a esquecer, em nome do amor que se tem pelo outro? E assim tornar a ser uma página em branco, para que o romance prossiga...”

Para uma boa intolerância

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O mote para este texto (demasiado e insuficientemente longo) foi dado, à maneira de um murro no estômago, pelo recente atentado terrorista de Barcelona. Os abdominais do hábito fizeram o seu trabalho e já se pode respirar depois do soco, mas ainda dói, dói muito. E depois, começo a cansar-me do eterno retorno das encenações de luto dolente: choros e orações ecuménicas, flores, peluches, velas, minutos de silêncio, apelos à paz e à tolerância... Uma panaceia que tem algo de necessário e muito de inútil, ela conjura algum do sofrimento, mas não altera, numa vírgula que seja, a estratégia terrorista dos fanáticos religiosos, os futuros candidatos à jihad não serão, com certeza, convertidos ao peace and love através destas manifestações de pesar. Há até quem compare a tolerância ingénua que hoje temos pelo islamismo fanático com a desvalorização, pelos pacifistas de outrora, da emergência do nazismo alemão. Acontece que se alguém critica o islão, a sua escala de valores, o seu proselitismo, a sua vontade de domínio, o seu sexismo arcaico (a incrível menorização do feminino)... é imediatamente acusado de eurocentrismo, neo-colonialismo, islamofobia. O politicamente-correcto (substantivo-o) e o bem-pensante (do francês bien-pensance) está em ser multiculturalista, abandonando para isso, condição sine qua non, os princípios republicanos, liberais, libertários, igualitários... Se aceitarmos todas as linhas culturais, então temos de tolerar as sociedades onde o islamismo de Estado obriga o feminino a velar-se mais ou menos integralmente, onde a homossexualidade é punida severamente (é isso que faz, por exemplo, o Hamas; a talho de foice, na Faixa de Gaza houve pela primeira vez em 10 anos uma sessão de cinema, ainda assim propagandística), as manifestações artísticas e a imprensa suportam uma censura sistemática, as instituições de segurança interna são extraordinariamente repressivas, a laicidade é proibida ou radicalmente estigmatizada... Temos de aceitar que isso colonize o nosso horizonte cultural de tolerância, abertura, igualdade, democracia; veja-se o testemunho arrepiante deste director de uma escola pública de Marselha sobre a conquista islâmica do seu estabelecimento de ensino.

Neste ensaio vou defender que a condescendência das democracias liberais facilita a implantação do islamismo radical, irredutivelmente oposto à laicidade (ainda por assegurar, não o esqueçamos), liberdade individual, exercício crítico, isto é, inimigo da modernização moral e intelectual que o Ocidente iniciou no século XVIII e que agora, mais ou menos intensamente, é combatido pelas facções islamo-fascistas e seitas nacionalistas. As instituições democratas deixam prosperar os seus inimigos, os fanatismos religioso e ideológico não sentem muita resistência à sua mobilização social e armada; pondo em perigo a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (documento que alguns, em delírio intercultural, consideram neo-colonialistas). Custou-me bastante fazer esta opção teórica, tive de estabelecer compromissos com a minha auto-censura e reinterpretar o conceito de hospitalidade de Jacques Derrida. Neste caso, ficou claro que a sua hospitalidade incondicional, ou “pura” (“visitation”) vive no campo místico do messianismo sem Messias derridiano. É uma condição extra-política de exposição quase teológica à alteridade. A outra hospitalidade (“invitation”) é condicional, recebe-se o estrangeiro em função das regras que estão em vigor. Esta hospitalidade é política e preocupa-se com o bem ou o mal que o outro pode trazer. É este protocolo de abertura, controlado pelas instituições, a justiça, o Estado... mais do que por movimentos sociais conservadores, que proponho.

"Neste ensaio vou defender que a condescendência das democracias liberais facilita a implantação do islamismo radical, irredutivelmente oposto à laicidade (ainda por assegurar, não o esqueçamos), liberdade individual, exercício crítico, isto é, inimigo da modernização moral e intelectual que o Ocidente iniciou no século XVIII e que agora, mais ou menos intensamente, é combatido pelas facções islamo-fascistas e seitas nacionalistas."

Não há valores absolutos, foi isso que nos ensinou Nietzsche ao virar Platão de pernas para o ar. Tudo o que consideramos valioso tem uma genealogia, um percurso histórico que foi cimentando essa apreciação, e por isso a sua ontologia é acidental. Por um lado, a tolerância vive, pois, nesta condição, e é por isso que talvez devêssemos falar em tolerâncias, disposições multiformes para se consentir, numa determinada circunstância, um comportamento, lato sensu, que julgamos subjectivamente reprovável (se dissermos que toleramos o tolerável entramos no sem-sentido). Por outro lado, há qualquer coisa de fixo, objectivo na tolerância: justamente, só se pode tolerar algo que, mais ou menos intensamente, reprovamos. É isto que cria dificuldades, não apenas porque é difícil acolhermos o que parece inaceitável, como percebemos intuitivamente que a partir de um certo limiar de tolerância contribuímos para a destruição de uma escala de valores que queremos defender.

Recordo que os gregos antigos (recorro frequentemente a eles porque foram mais lúcidos do que nós) se concebiam inteiramente a partir da oposição entre civilização e selvajaria, a polis e a natureza não domesticada, antropologia política recente e seres monstruosos de épocas primitivas (míticas) ou estrangeiros distantes. A paideia, esse grande dispositivo, multi-dispositivo educativo, consistia, por um lado, em resgatar os indecisos do abismo da bestialidade e relembrar constantemente aos seres do território cultivado o seu compromisso com o modus vivendi político, afastando-se dos animais e dos bárbaros. Por outro lado, insistia em alertar para a fronteira transcendente, os humanos não se deviam confundir com os deuses. A vida na polis supunha a rejeição do abismo que chamava a cada instante pelos divergentes. É por isso que a tolerância não fazia parte da sua escala de valores (mas havia a “piedade”), ou se fazia era quase irrelevante. O intolerável, tudo o que estava fora das suas condições imanente e transcendente, mantinha-se como tal, definindo um limiar que impunha os piores castigos a quem a transpunha (Édipo, Antígona, Clitmenestra, Penteu, Prometeu... e até Sócrates). Claro que a transgressão (controlada, passe a contradição) é essencial à vitalidade de uma comunidade, e os heróis trágicos, apesar de punidos, foram muitas vezes secretamente louvados (Prometeu, Antígona...). Mas no essencial, durante séculos a civilização helénica protegeu-se na riqueza da sua cultura e pela exclusão da barbárie, isto é, daquilo que não estava humanizado, ou politizado, à sua maneira (sofisticada, eles inventaram o Ocidente).

Outra fonte matricial do pensamento ocidental, o cristianismo, teve, porém, uma linha de interpretação diferente: tolerar as pessoas diferentes porque nelas também habita Deus. É verdade que a prática inquisitorial (bem anterior à Santa Inquisição – o termo “Santa” sugere, aos incautos, inquirições infalíveis e bondosas) vasculhava os confins da consciência à procura de desvios, mas a finalidade era conjurá-los, tratar as torções inaceitáveis, não excluir (apesar da figura, pouco bíblica, da excomunhão). Claro que a vontade de inclusão cristã usou proselitismos violentos, impôs mais do que seduziu e acolheu (Santo Agostinho defendia que para endireitar um pau era preciso aproximá-lo do fogo). Claro que no tolerante se destaca a sobranceria do dominante, neste caso porque depois da sua marginalidade original, o cristianismo comandou a economia espiritual de grande parte do mundo durante séculos. Mas o princípio mantém-se, e é talvez por isso que intrinsecamente, sem contexto, a palavra tolerância é muito mais apreciada do que a sua antónima. Isto remonta ao momento em que a Europa, nos meados do século XVII, terminou as suas maiores guerras de religião. É sintomático que seja já no último quartel desse século que John Locke publica A Letter Concerning Toleration (originalmente escrito em latim), onde coloca a tolerância no centro nevrálgico do cristianismo (é esse o sentido evangélico), ao mesmo tempo que reflecte sobre os limites das prerrogativas do governo civil, defendendo a irredutibilidade da liberdade individual em relação a todas as formas de poder. Quase um século depois, Voltaire, um dos maiores críticos do fanatismo religioso, escreve Le Traité sur la Tolérance (com ressonâncias da epistola de Locke), onde, a partir de um caso real de sectarismo religioso, conduzindo à acusação, e morte, de inocentes (caso Calas), retoma e amplifica a bandeira da liberdade individual, sobretudo a do livre-pensamento, incluindo necessariamente a liberdade religiosa.

"é talvez por isso que intrinsecamente, sem contexto, a palavra tolerância é muito mais apreciada do que a sua antónima. Isto remonta ao momento em que a Europa, nos meados do século XVII, terminou as suas maiores guerras de religião. É sintomático que seja já no último quartel desse século que John Locke publica A Letter Concerning Toleration"

Mais tarde, os séculos XVIII e XIX fabricaram uma enorme dose de optimismo cultural (traduzido num culto acéfalo do progresso), permitindo as hipóteses mirabolantes de religiões civis capazes de criar comunidades sem facções, lugares onde, na ideia de Leibniz, as pessoas dialogariam a partir de mecanismos racionais tão eficientes que à semelhança da máquina de calcular haveria máquinas de dialogar, sabendo-se sempre quem tinha razão. Mas o idílio foi desbaratado pelas carnificinas mundiais da primeira metade do século XX. Aliviada essa fúria imensa (nunca totalmente domesticada), voltou-se a imaginar, capturando e divulgando ecos da modernidade lógica e técnica, um lugar sem fanatismo porque as democracias liberais ocidentais iam fertilizar qualquer canto do mundo. Engano. Os nacionalismos reavivaram-se, primeiro no mundo islâmico misturados com uma linha teológica reaccionária, depois um pouco por todo o lado, culminando nuns Estados Unidos ensimesmados, numa Inglaterra a construir um neo-império para dentro, numa Rússia a regressar ao estádio de auto-exclusão, com alguns países do antigo bloco soviético a imaginarem-se rodeados de inimigos... Regressou, pois, a velha estratégia identitária que julga ganhar tanto mais força inclusiva quanto excluir o que parece ameaçá-la, incapaz de integrar ou sequer dialogar com o diferente.

Na verdade, o princípio vital deste regresso estava apenas adormecido e era relativamente fácil imaginar a sua emergência. É simples ver que a dialéctica inclusão/exclusão existe sempre que há Estado ou religião. O Império Romano, tolerante em termos religiosos, não admitia nada que pudesse ameaçar a sua autoridade. Na Grécia antiga havia decretos que condenavam quem não reconhecesse a existência dos deuses (veja-se, entre outros, o processo de Sócrates). O judaísmo assenta numa intolerância dogmática, herdada pelo cristianismo (que se no início perdoava e acolhia as pessoas divergentes, nunca tolerou as heresias). O Islamismo é intransigentemente severo com os dissidentes, o crime de apostasia é ainda castigado com a pena de morte em muitos países. O hinduísmo, aparentemente mais acolhedor, também pôde inventar um fanatismo teo-nacionalista, projectado no Bharatiya Janata Party (partido no governo), culminando na eleição de Ram Nath Kovind, até os budistas birmaneses perseguem sistematicamente a minoria muçulmana rohingya. Do ponto de vista político, basta olhar para o neo-nacionalismo americano ou, entre muitos outros exemplos, a xenofobia em alguns países europeus do ex-bloco soviético.

Este caldeirão de bruxas produz perplexidades. Acreditava-se que a linha iluminista instauraria um reino de paz perpétua, baseada num racionalismo moral capaz de definir uma justiça humana que rivalizaria com a divina. Mas continuou-se a destilar poções obscurantistas, pretensamente capazes de saciar homeopaticamente a estupidez de milhões de humanos. Ora, como sabemos, a estupidez não combate a estupidez, amplifica-a. E hoje, em consequência, vive-se numa imbecil banalidade do terrorismo (aproprio-me, mutatis mutandis, do conceito de “banalidade do mal” de Hanna Arendt, destacando o carácter histórico, acidental do mal). Quando evocamos o espírito do tempo temos de referir o quase monopólio conquistado pelo islamismo radical. Ponto de ordem: para mim todos os ismos teológicos são igualmente nocivos, islamismo, judaísmo, cristianismo (actualmente um “ismo” bastante esbatido, mas capaz de voltar a extremar-se, por exemplo, nos movimentos evangélicos do continente americano ou no catolicismo conservador polaco), hinduísmo... mas oriento a minha crítica mais para o islamismo porque é sobretudo nele que nasce hoje o fanatismo niilista. É isso que Agnes Heller, a grande pensadora húngara, sobrevivente do holocausto e do imperialismo soviético, defende. Numa entrevista ao El Pais, encontra no islamismo radical uma ideologia totalitária, que a ingenuidade das democracias liberais (aquelas onde se vota, há instituições fortes e liberdade de pensamento) tolera porque acredita que todos partilham, ou virão a partilhar, a sua visão do mundo. O islamismo, claramente aquém do processo de separação de poderes que a Europa iniciou a partir do século XVII (John Locke insiste nisso), é, além disso, intrinsecamente expansivo, propõe-se construir um império espiritual e político esmagando os “infiéis”. Bem no tom do Antigo Testamento (relembre-se a sua origem abraâmica). Em Tristes tropiques (1955), Claude Lévi-Strauss assegurava já que o islão se “fundava menos na evidência de uma revelação do que na impotência para criar laços com o exterior.” Mas talvez tudo não passe de uma máscara desse poderoso e imortal sentimento de ressentimento de que falou Nietzsche (creio que Hegel, por outras vias, também o refere, embora em contraluz, ao pôr o motor da história a carburar com a energia do reconhecimento, ferramenta ontológica e axiológica, veja-se o caso da dialéctica “senhor/escravo”).

"O islamismo, claramente aquém do processo de separação de poderes que a Europa iniciou a partir do século XVII (John Locke insiste nisso), é, além disso, intrinsecamente expansivo, propõe-se construir um império espiritual e político esmagando os “infiéis”. Bem no tom do Antigo Testamento (relembre-se a sua origem abraâmica). Em Tristes tropiques (1955), Claude Lévi-Strauss assegurava já que o islão se “fundava menos na evidência de uma revelação do que na impotência para criar laços com o exterior.”  [...] acumulam-se nos indivíduos mais insatisfações defensivas e ofensivas, amplificadas até ao limiar dos actos de expressão possíveis, que não podem ser conjuradas pelas produções culturais de massas ou reconciliadas pelas terapias individuais."

Nietzsche trabalhou sobre a categoria do ressentimento em Para a Genealogia da Moral (1887), inspirado, tudo o indica, pela leitura de uma versão francesa dos Cadernos do Subterrâneo de Dostoiévski. Com ela acrescentava alcance e rigor filosóficos ao seu anterior “espírito de vingança”, querendo sobretudo revelar, e denunciar, uma disposição impregnada de exaltação moral, um sentimento negativo constituído por ambição e ódio, incapaz de se exteriorizar afirmativamente, vivendo assim num processo de auto-envenenamento até ao momento da detonação, isto é, da libertação violenta contra um exterior malévolo. Ainda sobre esta disposição, moral e psicológica, Peter Sloterdijk realça que as democracias liberais são incapazes de pôr em prática os seus ideais de riqueza e prestígio para todos, alimentando o ressentimento de uma parcela cada vez maior da população. No seu último livro, Die schrecklichen Kinder der Neuzeit (Après nous le déluge, na tradução francesa), mostra como se libertam muito mais desejo e sonhos do que os que se podem integrar pela distribuição dos bens e das possibilidades vitais. Por isso, acumulam-se nos indivíduos mais insatisfações defensivas e ofensivas, amplificadas até ao limiar dos actos de expressão possíveis, que não podem ser conjuradas pelas produções culturais de massas ou reconciliadas pelas terapias individuais.

Escreveu-se muito, é verdade, sobre a boa integração dos terroristas de Barcelona: eram bons alunos, tinham famílias estáveis, não sentiam dificuldades económicas ou laborais, demonstravam ambições hedonistas... No entanto, um artigo no El Pais desmente numa frase esse olhar superficial. Rashid, primo de dois dos terroristas, disse ao jornalista: “sim, criamo-nos aqui e não temos problemas de convivência, mas somos, e seremos sempre, mouros. Na escola éramos os mouros e as raparigas não queriam sair connosco. E os adultos crêem que vendemos haxixe.” Ora, parece-me que devemos seguir este filão hermenêutico, só ele, associado à enorme capacidade de persuasão do imã que os doutrinou, permite compreender a loucura do atentado de Barcelona. Pode estar aqui o ressentimento de que falei acima, motor pérfido da civilização dos “últimos homens”. Os terroristas foram contaminados por um sentimento de frustração que só encontrou saída numa redenção mortífera (a ditadura do “pensamento positivo” bloqueou a reflexão sobre a naturalidade, e importância, dos sentimentos negativos, ampliando a ignorância sobre essas pulsões; leia-se Smile or Die, de Barbara Ehrenreich). Há sempre, e desde sempre, erros profundos nas categorias emocionais que habitam quem se julga, ou é julgado, estrangeiro. E isso pode ser sublimado num processo de vingança, tanto mais eficaz quanto se for capaz de acreditar, em auto-hipnose, que uma acção terrorista conduz à beatitude. A hipertrofia moral e a sensação de desprezo geram a embriaguez do impossível. Lévi-Strauss viu claro quando acusou o islão (a forma mais evoluída, mas não a melhor, do pensamento religioso) de avançar com soluções simplistas para superar as suas contradições, por exemplo: se há preocupações com preservação da virtude de mulheres e filhas enquanto os homens estão em campanha militar, então obrigam-se a velar o corpo. (cf. Tristes tropiques).

"à intolerância moral e religiosa dos fanáticos, dos fundamentalistas devemos responder com os mecanismos do Estado de Direito, com uma repressão legal, e não com uma forma inversa, ainda que mais subtil, de intolerância cultural (numa espécie de choque de civilizações)"

Perante isto, a palavra de ordem mais repetida na Europa é a de que “resistiremos a quem quer destruir o nosso estilo de vida”. Bem, em primeiro lugar era preciso definir esse “estilo de vida”, que na propaganda contraterrorista parece tão evidente, fixo, próprio ao Ocidente. Na verdade, existem múltiplos estilo de vida, insubsumíveis no simples conceito de democracia liberal. Vivemos em diversidade, e ainda bem, por isso a nossa resistência ao terrorismo deve passar antes por uma intransigência jurídica e policial (política, no fundo) em relação às contra-culturas do terror. Isto é, à intolerância moral e religiosa dos fanáticos, dos fundamentalistas devemos responder com os mecanismos do Estado de Direito, com uma repressão legal, e não com uma forma inversa, ainda que mais subtil, de intolerância cultural (numa espécie de choque de civilizações). Se o problema actual está no islamismo radical, façam-se leis que proíbam a sua prática, que evitem a circulação dos seus membros, que cortem as linhas de comunicação prosélitas, que acabem com os centros educativos para terroristas. Mas também, continuando no politicamente incorrecto (contrário ao mecanismo da boa-consciência tóxica, brilhantemente analisada por Nietzsche), controlar a imigração (na verdade, é isso que fazemos já, embora privilegiemos o critério do dinheiro – “vistos gold” – em vez dos culturais e judiciais). Todas as partes do meu corpo e da minha mente são anti-nacionalistas, a última coisa que defenderei é a transcendência da nação, esse mito serviu sempre interesses pérfidos, a única coisa que neste campo me interessa é o indivíduo. Mas como ele não existe isoladamente, protejam-se também as comunidades livres, tendencialmente igualitárias, gentis, solidárias... O sinal mais actual da decadência ocidental é o seu sentimento de culpa, acha-se culpado de quase todo o mal do mundo (creio que reavivando, num sentido laico, a ideia de pecado original), o de hoje e o de ontem (querem, por exemplo, que sintamos culpa pelo tráfico de escravos de há 500 anos, querem que sintamos culpa pela discriminação social dos brancos, por haver em África más práticas governativas crónicas, por na América Latina as desigualdades económicas e sociais serem arrepiantes, por os terroristas odiarem a nossa pobreza espiritual...). E este sentimento, um auto-ressentimento, instaura impasses, preocupações pletóricas, hesitações paralisantes... enquanto meia dúzia de loucos espirituais lançam carros contra desconhecidos, esperando matar o maior número possível (uma competição fúnebre). Neste estádio de radicalismo não há tolerância, moral ou cultural, que consiga vingar. Leve-se, pois, às últimas consequências a ideia de Estado de Direito e cumpram-se os horizontes de inteligibilidade dos Direitos Humanos, nomeadamente os inalienáveis direitos à igualdade, à vida e à liberdade. Se são estes direitos que o islão fanático repudia, então não o podemos tolerar, devemos ser, pelo contrário, jurídica e policialmente intolerantes, demolir todas as suas formas de colonização, ainda na condição larvar, se possível. O Ocidente deve continuar a afirmar-se para lá das transcendências teológicas ou das religiões laicas dos Estados totalitários. Noutra frente, é preciso continuar a alimentar o projecto da autonomia individual e do pensamento crítico. Os imigrantes, cuja vinda não será estancada, devem, por seu lado, abandonar a pretensão de fazer entrar novamente o religioso no político. Em vez de usarmos, repito-o, o critério discriminatório do poder económico, recebamos, passe o cliché, apenas “quem vier por bem”.

Modos de ler Nietzsche

A Enfermaria 6 publicará brevemente um Caderno sobre “Modos de Escrever”, título que organiza, em diversidade, testemunhos e reflexões sobre linhas de escrita. Nele falarei acerca da “escrita de sangue” de Nietzsche, mas hoje quero retomar um tema que me assombra há vários anos: o modo de ler. Sabemos que há diferentes estilos de leitura, por vezes coabitando numa oposição benigna no mesmo leitor: ler a acta de um Conselho Administrativo ou a bula de um medicamento é bem diferente de ler um artigo de Pourquoi nous sommes nietzschéens. Bom, mas alguns dias atrás fiz pelo menos isso (recordo-me agora que li também, além de outras minudências, as instruções de uma fotocopiadora industrial e um pouco de Peter Sloterdijk – Aprés nous le déluge), e essa esquizofrenia hermenêutica não me tornou insano. Por outro lado, ninguém, alfabetizado, julga ler mal, o que justifica talvez o pouco que se reflecte sobre este comportamento. Seria interessante pedirmos às ciências cognitivas que nos ajudassem a compreender este acto de civilidade, marca indelével da cultura ocidental, forma superior de domesticação. Não podendo, para já, apelar a essa moda epistemológica, capaz, segundo dizem, de definir totalmente como conhece o ser humano, sugiro que leiamos Nietzsche a partir das suas próprias indicações. Bem sei que parece servilismo, mas verão que pode revelar-se uma boa linha hermenêutica. A isso acrescento, já no final do artigo, a indicação de um nietzschiano livre, Giorgio Colli, próxima de um vitalismo que o caminhante de Sils-Maria aceitaria com certeza.

A disparidade de que falei acima deve, porém, ser restringida quando lemos Nietzsche, é essa a minha experiência. Até um certo ponto influenciado, confesso-o, pelo que o próprio autor escreveu no §137 de “Opiniões e sentenças misturadas”, Coisas Humanas, Demasiado Humanas[1], onde assegura que os piores leitores são como piratas, roubam aqui e ali, uma ou outra coisa, consoante as suas necessidades, contaminando aquilo de que não precisam. E mais tarde, no Anticristo (§52): ler bem consiste em “saber decifrar factos sem os falsificar pela interpretação.”[2] Portanto, simplificando muito, um bom leitor fideliza-se a um texto e a um método. Claro que não se trata de uma monomania hermenêutica, o próprio Nietzsche leu diversamente, autores e temas, foi, aliás, bastante prolífico. Mas talvez ele quisesse, naquela obra da segunda juventude (quando se é quase sempre positivista), preparar futuras indicações sobre a sua recepção. Estranhamente, apesar de muito ter feito para se tornar incompreensível, ou pelo menos dificilmente compreensível, deixou inúmeras pistas hermenêuticas; ao mesmo tempo que intensificou um solipsismo vital, criou guiões para ser... compreendido. Nietzsche hesitou sempre, é bom dizê-lo, entre o desejo de ser compreendido e a consciência de que não o seria, ou, pior, de que seria mal compreendido (e mais uma vez teve razão). Simultaneamente, projectou-se como um autor póstumo, porventura a única forma de poder escrever com o entusiasmo e a veracidade patentes no seu último ano de vida mental sã (Anticristo, Crepúsculo dos Ídolos, Ecce Homo, os libelos contra Wagner e um conjunto inestimável de Fragmentos Póstumos). Aí dirigiu-se para o seu destino com a certeza de um sonâmbulo. Nietzsche cumpriu totalmente o seu pacto com o futuro: dinamitar a modernidade filosófica e política, assente nas ideias de verdade universal e nacionalismo identitário, ele, perspectivista, que sempre gostou do Sul e, apátrida, se sentia somente europeu.

De qualquer forma, legou-nos várias recomendações hermenêuticas respeitáveis, entre elas costuma destacar-se a do prefácio, §8, de Para a Genealogia da Moral: “Evidentemente, para praticar a leitura como arte é necessário algo que nos nossos dias foi absolutamente esquecido – e é por isto que é preciso tempo para que os meus livros sejam legíveis –, algo que exigiria quase que fôssemos da raça bovina, e não um ‘homem moderno’, é preciso saber ruminar...” Cerca de catorze anos antes, numa carta a Cosima Wagner para o Natal de 1872, compunha já intenções inspiradas na sua formação em filologia clássica: “O leitor de que espero alguma coisa deve ter três qualidades: necessita ser calmo e ler sem pressa. Não necessita introduzir-se constantemente entre as linhas e interpor a sua ‘cultura’.” Exige-se, então, um leitor objectivo, pesquisador mais do que criador de sentidos. É verdade que por vezes, ao longo de toda a sua obra, aconselha o livre arbítrio hermenêutico, mas a ideia de um leitor rigoroso, filológico manter-se-á.

            Isto é muito mais do que uma simples metodologia, a hermenêutica incarna um ethos geral que perpassa por diferentes campos da existência. Tese clarificada no §256 de Para Além Bem e Mal, onde elege um “ritmo e uma lentidão aristocráticos” (vornehmen) contra os “trabalhadores desenfreados, quase se auto-dilacerando com o trabalho”. Um estilo de vida que é preciso educar, como nos indica no belo §334 da Gaia Ciência, onde a partir do exemplo do tempo longo necessário para aprender a gostar de uma melodia estranha, diz ser preciso paciência para amar e ser amado: “[…] Acabamos sempre por ser recompensados pela nossa boa-vontade, a nossa paciência, equidade, ternura para com o que é estranho, na medida em que essa estranheza despe lentamente o seu véu e se revela com uma nova e indizível beleza: – é a sua gratidão pela nossa hospitalidade. Também quem a si próprio se ama, tê-lo-á aprendido por esta via, não há outra. É preciso também aprender o amor [Auch die Liebe muss man lernen].”

Mas a condição da leitura lenta, ruminante, técnica e parcela de um ethos aristocrático (decidido na trilogia solidão, coragem e lucidez, em vez de numa qualquer herança classista), não é a única recomendação de Nietzsche. A par disto, é preciso audácia, curiosidade, desejo de experimentar: “Quando imagino a figura de um leitor perfeito, surge-me sempre um monstro de coragem e de curiosidade que, além disso, é também algo de maleável, astuto e previdente, um aventureiro e descobridor nato.” (Ecce Homo, “Porque escrevo livros tão bons”). No §32 de A Gaia Ciência acentua o carácter de combate hermenêutico quando refere que a sua “maneira de pensar exige uma alma belicosa, uma vontade de fazer sofrer, prazer em dizer não, uma pele dura”. Fazendo uma analogia com a materialidade da digestão, recurso metafórico abundantemente usado para explicar processos cognitivos, dedica, na edição de A Gaia Ciência de 1887 (“Scherz, List und Rache” §54), uma pequena rima ao leitor: “Bons dentes e um bom estômago – / É o que te desejo! / Se digeriste o meu livro / Certamente saberás entender-te comigo!” Há ainda outros guiões remetendo para uma materialização, uma vivificação da interpretação: sugere, por exemplo, que o leiamos enquanto andados, em voz alta, atendendo às sílabas rítmicas, respeitando as modulações, pregas do som, a complexidade fonética dos textos.

Para simplificar o ângulo de entrada em Nietzsche (mas é só a entrada) podemos ler o “Vorwort” do Anticristo, numa página resume bem, mantendo a recomendação do rigor filológico, os atributos do seu leitor: a) deve estar acima dos mexericos políticos e egoísmos da época; b) ser indiferente à utilidade da verdade; c) corajoso em relação ao que é proibido e labiríntico; d) ter ouvidos para a novidade, entusiasmo, respeito, amor-próprio e liberdade perante si. Atenção, liberdade e audácia. Apesar das recomendações, não há, pois, codificações categóricas, Nietzsche nunca quis discípulos em dedicação estéril. E preferirá sempre um leitor arrebatado a um burocrático, sobretudo aquele que esteja disponível para ser mudado pelo texto a esse outro que lê para confirmar velhas certezas ou acumular capital informativo.

É por isso que acompanho Giorgio Colli em Sritti su Nietzsche (Milano: Adelphi, 1980, p. 13): “Na realidade, não há nenhuma necessidade de interpretar Nietzsche, isto é, a que seja determinado conceptualmente segundo uma ou outra direcção, justamente porque a sua acção sobre a vida individual é directa. Basta acolhê-lo, não através de fragmentos ocasionais ou diversamente sugestivos, mas na totalidade e unidade que formam. Este caminho mais laborioso deverá privar Nietzsche de uma falsa popularidade. Em compensação, a sua acção – a que ele queria – manifestar-se-á pela primeira vez, e ninguém pode dizer se essa acção será salutar ou nociva.” Não sabemos, é verdade, mas creio que ao ler Nietzsche se adquire sempre um pouco de lucidez e de probidade, entendendo, como se um raio nos atravessasse, que o trágico pode ser radiante. Por outro lado, com ele resistimos melhor às consequências negativas do nosso cepticismo, nomeadamente os impasses que lastram a acção, e ficamos suficientemente livres para não nos tornarmos reféns de certas convicções.

[1] Prefiro traduzir assim Menschliches, Allzumenschliches (seguindo Filomena Molder), em vez do tradicional Humano, Demasiado Humano.

[2] É bem conhecido a afirmação de Nietzsche sobre não haver factos, apenas interpretações (Fragmento Póstumo de 1886-1887, 7[60]), mas as duas afirmações cabem bem no seu pensamento, os factos do Anticristo ligam-se a uma leitura filológica, enquanto os factos deste FP recusam a ideia de uma verdade universal e transcendente ao perspectivismo humano.

Roger Federer

Jogo ténis federado há bastante tempo, vou a torneios (sem grandes resultados, diga-se) e treino cerca de 3 vezes por semana. Vim do basquetebol, uma transição difícil, ali muitas coisas fazem-se no ar, o cesto fica lá em cima, no ténis, pelo contrário, os pés devem estar bem assentes no chão, embora não fixos, cada golpe de raquete (ou raqueta) tem de ser desenhado e impulsionado com os pés em contacto com o solo (há excepções, mas é muito difícil bater bem a bola em suspensão e será sempre uma pancada de recurso). Vi aparecer Roger Federer no circuito há cerca de 15 anos, e já na altura o achava genial, tecnicamente genial, mas tacticamente inconsistente, incapaz de se tornar um competidor de topo, de vencer sistematicamente os melhores jogadores. Isto parecia demonstrado por entre 1999 e 2002 ter perdido 3 vezes na 1.ª ronda de Wimbledon. Subitamente, contra os mais justos prognósticos, em 2003 ganha o torneio, o primeiro de 5 consecutivos.

Enganei-me tanto na minha avaliação que agora, apesar de conhecer muito melhor este jogo (hesito em chamar-lhe desporto), quase não aposto no futuro de jovens jogadores. Bom, mas ainda bem que errei, mesmo tendo sido um “erro forçado”, isso significa que Roger Federer foi capaz de desenvolver uma inteligência táctica ao nível da sua extraordinária qualidade técnica. Culminando na vitória de ontem em Wimbledon, a 8.ª (sem perder qualquer set), aos quase 36 anos (idade incompatível com a importância de se ser fisicamente explosivo, mas Federer compensa isso integrando harmoniosamente no seu jogo a experiência acumulada), aliás, este ano venceu o open da Austrália e os master 1000 de Indiana Wells e Miami, uma verdadeira excentricidade, questão de mito mais do que de realidade.

O blogue da Enfermaria partilhou há dias um artigo magnífico de David Foster Wallace, que foi jogador de ténis no circuito universitário americano antes de se dedicar à vertigem da escrita, a linha de sentido está no título: “Roger Federer as Religious Experience”. E Wallace escreveu isto em 2006, quando Federer tinha apenas 8 Grand Slams, hoje, com 19, só poderia ser considerado uma religião (inspiradora mais do que prescritiva). Milhares de outros artigos, sem exagero, foram e vão ser escritos sobre este acontecimento épico, não quero rivalizar com a qualidade de muitos, sobre ténis escrevem poetas e prosadores de alto gabarito. Mas não pude calar o impulso para render homenagem ao jogador que mais me inspirou, dizendo-me repetidamente sem reservas que não basta “pôr a bola do outro lado”, é preciso fazê-lo respondendo a certos imperativos do belo. É preferível fazer 50 erros não forçados a tentar uma pancada “perfeita” (é aqui que mora a beleza do ténis) do que ganhar um jogo a “cortar fiambre”, a dar “madeiradas” eficazes ou a lançar “bolas mortas ao adversário”.

É já um cliché dizer que Federer joga para lá de ténis, que o que ele faz tem mais a ver com a respiração cósmica misturada com leis da física sublimadas pela arte do que com bater numa bola com a raquete num campo. Tudo nele parece irredutivelmente natural, nenhum gesto é forçado, não se descortina cansaço, quase não transpira, baila no campo, devolve a bola de tantas maneiras que parece testar todas as possibilidades do jogo, e é silencioso, porque não precisa de qualquer exterior, o campo, a bola, a raquete e ele são uma totalidade plena, nada é acidental, artificial no seu jogo, ele é o jogo. É por isso que Federer suspende o tempo, uma resposta de esquerda angulada, um slice, um vólei... e o tempo pára, o que ele faz não foi previsto pelos demiurgos. E pronto, fica o apontamento, tosco, mas é meu dever escrever sobre o que admiro, o que me leva a tornar-me qualquer coisa de diferente. Hoje à noite, lá vou tentar no treino imitá-lo, o que resulta sempre num certo ridículo, mas por vezes vislumbro uma ténue aproximação, e isso basta-me. Para a história pode ficar a frase que Miguel Esteves Cardoso escreveu no Público: Federer “Não é só o melhor tenista de sempre. Melhorou o próprio jogo.”

 

Salman Rushdie: "Bem-vindos à era do impossível"

Numa entrevista recente para a revista de divulgação filosófica francesa Philosophie Magazine, Salman Rushdie desenvolve um pensamento crítico sobre os tempos que correm (não costumamos dizer que os “tempos andam”), resumido, como indico no título, no sintagma a “era do impossível”. Permito-me, tentando respeitar o princípio de propriedade intelectual da revista, expor as linhas de reflexão para mim mais importantes, acrescentando-lhe porventura alguns suplementos discursivos.

1. Uma fatwa individual e universal. Recordamo-nos da polémica teológica, e política, que a publicação de The Satanic Verses provocou em 1988, culminando na fatwa lançada pelo Ayatollah Ruhollah Khomeini em Fevereiro de 1989, à época líder supremo da teocracia iraniana. Rushdie, ateu, mas de cultura muçulmana, tinha ousado blasfemar contra o islão e o seu livro sagrado, o Alcorão; ao mesmo tempo, agravando a acusação, declaravam-no apóstata. Rushdie passou então a viver na clandestinidade, ainda hoje, em Nova Iorque, a sua segurança exige cuidados extremos. O histrionismo fanático provocou tumultos em várias cidades, editores e tradutores foram atacados ou mortos e o próprio Rushdie escapou por pouco a um atentando em Agosto de 1989. Enfim, os maníacos de Deus traçaram linhas de vingança e de reparação moral que passaram por tentar aniquilar todos os “impuros” que, de uma forma ou de outra, estiveram ligados a este projecto editorial. Recorde-se que ainda hoje, segundo os Guardas da Revolução iraniana, permanece válida a fatwa contra Rushdie. Mas, para o autor, esta espada de Dâmocles pende sobre todas as cabeças que querem “usufruir da liberdade de expressão, ter a possibilidade de não acreditar, beber um copo de vinho numa esplanada, ouvir música; como também sobre todas as mulheres que não desejam usar véu nem viver sobre o domínio dos homens... fomos todos condenados à morte pelos fanáticos.” Explanação que encaixa no 11 de Setembro de 2001 e posteriores ataques terroristas, destacando-se os do Bataclan e de Manchester.

2. A era dos impossíveis, ou como criar contradições estéreis. Rushdie convoca três impossibilidades que incarnam a realidade actual, são impossíveis-possíveis que desafiam a ideia de que o mundo é tendencialmente lógico. À pergunta sobre por que razão se sente inquieto, Rushdie responde que “entramos na era do impossível”. Justifica-se com três exemplos: a) o Brexit. A sua educação inglesa (diplomado pela Universidade de Cambridge em 1968) mostrou-lhe sempre os ingleses como “pessoas sensatas, inteligentes e calmas”, formados no pragmatismo dos comerciantes. Parecia-lhe, pois, impossível um Brexit que põe o país numa situação geopoliticamente insustentável, quase pária, com dificuldades reais em encontrar o seu lugar na rede das relações internacionais. b) Donald Trump. Vivendo em Nova Iorque, Rushdie testemunhou uma tendência de cosmopolitismo e aprofundamento das liberdades individuais nos dois mandatos de Barack Obama. Tanto mais que este presidente recuperou a economia da crise dos subprimes, “A América aberta e liberal (no sentido americano do termo) tinha ganho.” Mas houve uma guinada, e a estupidez e a autocracia tomaram conta da Casa Branca, admitindo Rushdie que afinal não tinha percebido bem toda a realidade do país onde vivia. O problema, defende o autor, não está na ignorância incomensurável de Trump, mas no facto de “não compreender o que saber alguma coisa significa.” Concluindo que ele “tem uma forma de se orgulhar da sua própria ignorância que põe a democracia em perigo.” c) Narendra Modi. Para Rushdie, o Primeiro-ministro indiano vai arruinando o pluralismo democrático assente no politeísmo indiano, uniformizando e instrumentalizando a religião para executar uma via nacionalista. Para este fim, aproveita-se da falsa ideia de uma homogeneidade hinduísta (construída pelo colonialismo inglês por facilitismo taxonómico), uma síntese ideológica falsa que aproxima o projecto de Modi da “própria organização do partido nazi.” Assim, a muitas vezes considerada “maior democracia do mundo”, apesar de imperfeita e corrupta, onde havia verdadeira liberdade de expressão, pluralismo político e alternância democrática, está hoje numa deriva nacionalista e fascista.

3. O inábil purismo da esquerda. Pode a esquerda política actual, cada vez mais fragmentada, evitar o crescente autoritarismo nacionalista? Rushdie confessa-se desiludido, nos Estados Unidos Trump ganhou a Hillary Clinton porque Bernie Sanders defendeu em muitos sítios a abstenção, o mesmo se passou com Jean-Luc Mélenchon em França, ambos preferiram manter-se fiéis às suas convicções em vez de, com o pragmatismo que se lhes exigia, combater a direita autoritária e populista. O problema da esquerda, diz, é a “obsessão pela pureza”, isso impede-a de estabelecer compromissos com a realidade e desenvolve dissensos graves entre os partidos políticos que ocupam esse espaço. Por exemplo, na Índia o purismo ideológico fraccionou tanto a esquerda que hoje existem cerca de 25 partidos comunistas indianos. Por isso, Rushdie acredita que agora só se pode “combater ao centro”, um centro, tolerante e inclusivo, permanentemente ameaçado pelos extremismos (contra Francis Fukuyama, a história continua).

4. A ficção: entre verdade e mentira. Em Outubro de 2006, Rushdie afirmava que só havia narrativas, a nação, a religião, a comunidade... eram produtos narrativos.  (Point of Inquiry) Ora, essa tese contradiz o seu presente combate às fake news. Rushdie admite o paradoxo, mas consegue explicá-lo. Mantém que os humanos vivem pelas narrativas, só elas dão sentido à existência. O problema é que actualmente proliferam os conflitos entre narrativas, o mundo israelita contra o palestiniano, claro, mas também, por exemplo, no interior dos Estados Unidos entre o aparelho mediático do presidente e a imprensa. Isto desenvolve, refere, um “fermento de guerra civil”. Portanto, não se trata tanto de polarizar verdade e ficção, esta distingue-se da mentira, visto tentar “aproximar-nos da verdade.” Seguramente é a-científica, mas procura, ainda assim, acolher a verdade “abrindo outra porta.” Pelo contrário, a mentira não pretende sequer vislumbrar a verdade, ela opõe-se irredutivelmente à verdade. Mais, fá-lo ocultando a sua natureza, enquanto a ficção revela imediatamente que é qualquer coisa forjada, produzida pela imaginação. Ainda assim, Rushdie mostra-se optimista, acredita que a verdade resiste à mentira. Mas talvez uma pletora de dissensos entre narrativas aumente exponencialmente a conflitualidade estéril no mundo.

5. O realismo reduz a esperança de vida dos romances? Rushdie assegura que os seus livros se inspiram na realidade (não cabe aqui discutir as fragilidades do conceito). Mas isso parece acelerar a obsolescência das obras. Bem, o autor tem o antídoto: “um romancista deve concentrar-se na dimensão humana”. Trata-se de desenhar personagens que os leitores vão seguir, e ser seguidos por elas, o contexto histórico é apenas um pano de fundo. Em Guerra e Paz, a campanha napoleónica é menos importante do que as personagens principais que compõem o romance, são elas que prendem o leitor. Assim, é possível ser racionalista e realista, como Rushdie pretende ser, e ao mesmo tempo criar ficções que trabalham no inverosímil. É que não temos apenas um “realismo hardcore”, à la Martin Amis, há igualmente, por exemplo, o realismo mágico de Gabriel Garcia Márquez, que Rushdie admira. Aliás, é bom que imaginação e razão se contaminem e controlem mutuamente. A “imaginação sem razão produz monstros”, é esse o caso de qualquer alucinação fanática. Conhecem-se também os perigos do racionalismo, por exemplo “o colectivismo soviético, ao tentar criar um novo homem sem religião nem espiritualidade, gerou horrores.” Por isso, defende o autor, é preciso ligar estas duas dimensões centrais do humano, sem isso emergem os riscos que referimos e, além disso, “nenhuma arte é possível”. Portanto, para se regressar à era dos possíveis é preciso insistir na articulação entre imaginação e razão, conhecendo e respeitando o que há, por vezes definitivamente fixado, e inventando outras formas de viver, sem que nenhum dos campos esmague o outro. Não nos esqueçamos que Trump diz ser um sonhador, isto é, alguém que só atende à imaginação, permitindo-se gerar, ou deixar gerar, sem qualquer remorso epistemológico, contínuas fake news.