Charles Bukowski, "competição"


competição

agora vivemos na alfândega e à noite
os barcos soam amiúde as sirenes de nevoeiro.
ela tem o sono leve.
ela dá um salto e fica sentadinha e direita na cama.
“porra!”, “que se passa, que se passa?”
“pensava que te tinhas peidado”
“desta vez não, querida”
ela é boa moça.
viver comigo deu-lhe cabo dos nervos.
a verdade é que eu gosto de guardar os peidos
para a banheira.
aquelas bolhas cinzentas fazem pairar
um fedor mágico no ar.
peidar é muito parecido com foder.
não se o pode fazer a toda a hora.
mas quando o fazemos
surge amiúde um sentimento de orgulho
como se o nosso talento artístico no acto fosse algo
de raro e precioso.
eu peido-me mais do que fodo.
e peido-me melhor do que fodo.
e fico contente
por ser confundido com uma sirene de nevoeiro
a meio da noite.


competition

we live by the harbor now and at night
the ships often blow their foghorns.
she's a light sleeper.
she will leap up, sitting straight up in bed.
"damn!" "what is it, what is it?"
"I thought you farted."
"not that time dear."
she is a good child.
living with me has dysfunctioned her nerves.
actually, I like to save up the farts
for the bathtub.
those grey bubbles waft up
a magic stench.
farting is much like fucking.
you can't do it all the time.
but when you do
there often comes a feeling of proudness,
as if your artistry in the act were a rare
and precious thing.
I fart more than I fuck.
and I fart better than I fuck.
and I am pleased
to be mistaken for a foghorn
in the middle of the night.

Charles Bukowski, "Sossego"

tradução de José Pedro Moreira

Sossego


sentado esta noite
diante desta
mesa
junto à
janela

a mulher está
de mau-humor
no
quarto

estes são os seus
dias especialmente
maus.

bem, eu tenho
os meus

portanto
em consideração
para com ela

a máquina de escrever
está
parada.

é estranho,
escrever isto
à
mão

lembra-me de
dias
passados
em que as coisas não
estavam
a correr bem
noutros
aspectos.

agora
o gato vem
visitar-
-me

refastela-se
debaixo da mesa
entre os meus
pés

estamos ambos
a derreter
no mesmo
fogo.

e, caro
gato, estamos ainda
a trabalhar no
poema

e alguns
observaram
que há um certo
“declínio”
aqui.

bem, aos 65
anos, eu posso
“declinar”
o que me apetecer, e ainda assim
dar
uma abada
a esses críticos
da treta.

Li Po sabia
o que fazer:
beber outra
garrafa e
enfrentar
as consequências.

volto-me para a minha
direita, vejo esta enorme
cabeça (reflectida na
janela) a chupar
um cigarro
e

sorrimos
um
ao outro.

então
volto
atrás

sento-me aqui
e
escrevo mais palavras neste
papel

não há nunca
a grandiosa
declaração
derradeira

e essa é o
engano
e o truque
que funciona
contra
nós

mas
gostava que pudessem ver
o meu
gato

ele tem uma
mancha
branca no
focinho
contra um
fundo
laranja-amarelado

e então
quando olho para cima
na direcção da
cozinha

vejo uma parte
clara
sob as luzes
do tecto

que se esbate
no escuro
cada vez mais
escuro até
não ver
mais
nada.

 

Charles Bukowski, You Get So Alone At Times That It Just Makes Sense, 1986

Bukowski.jpg

"Voltar a casa" de Paul Celan

1425346398-2229661a_orig.jpg

Tradução: J. Carlos Teixeira

Voltar a casa

Queda de neve, cada vez mais densa,
em tons de pombo, como ontem,
queda de neve, como se ainda agora estivesses dormindo.

Lá no fundo, branco ao montes.
Acima dele, eterno,
a pista de trenó dos perdidos. 

Por baixo, escondido,
erguem-se ao alto
o que tão aos olhos magoa,
colinas e colinas,
invisíveis. 

Em cada uma delas,
trazidas para casa no seu hoje,
um Eu escorregando no silêncio:
de madeira, uma estaca.

Ali: um sentimento,
chega no sopro do vento gelado,
que amarra a cor de pomba e de neve
ao pano da bandeira. 

In Sprachgitter (1959)


Heimkehr

Schneefall, dichter und dichter,
taubenfarben, wie gestern,
Schneefall, als schliefst du auch jetzt noch.

Weithin, gelagertes Weiß.
Drüberhin, endlos,
die Schlittenspur des Verlornen.

Darunter, geborgen,
stülpt sich empor,
was den Augen so weh tut,
Hügel um Hügel,
unsichtbar.

Auf jedem,
heimgeholt in sein Heute,
ein ins Stumme entglittenes Ich:
hölzern, ein Pflock.

Dort: ein Gefühl,
vom Eiswind herübergeweht,
das sein tauben-, sein schnee-
farbenes Fahnentuch festmacht.

In Sprachgitter (1959)

2 Poemas de Jacques Dupin

Tradução: Vítor Teves

Desde que a minha palavra seja obscura ela respira
 
seus braços mergulhados na água gelada
entre as algas verdes de outras presas
geladas como as lâmpadas no dia
 
Tão pouca realidade alcança os vivos
lança violência ou a semeia
arduamente sobre a pedra e as águas
 
o céu esticou a escansão dos martelos
alguns entre nós entramos intercedendo
para produzir novas nuvens
 
……………………………………………………………………
 
Aberta em poucas palavras
como por um remoinho, numa qualquer parede,
um recesso, nem mesmo uma janela
 
para manter a pouca distância
esta região da noite onde o caminho se perde
 
exausta uma palavra nua
 
………………………………………………………………………

 

Tant que ma parole est obscure il respire
 
ses bras plongt dans l’eau glacée
entre les algues vers d’autres proies
glacées comme des lampes dans le jour
 
Si peu de réalite parvient au vivant
qu’il fasse violence ou qu’il séme
hardiment sur la Pierre et les eaux
 
le ciel tendu la scansion des marteaux
quelques-uns parmi nous sont entres intercédant
pour produire de nouveaux nuages
 
……………………………………………………………………
 
Ouvert en peu de mots,
comme par un remous, dans quelque mur,
une embrasure, pas même une fenêtre
 
pour maintenir à bout de bras
cette contrée de nuit où le chemin se perd,
 
à bout de forces une parole nue

 
                                            De: “Cops Clairvoyant” (1963-1982) (Gallimard,1999) /

                                                   “Corpo Clarivedente” (1963-1982) (Gallimard,1999)

ob_e3c109_l1080889c.JPG

Retrato de Jacques Dupin por Alberto Giacometti, 1965.

"Maria" de Bertolt Brecht - um poema de Natal

ADB_Brecht_HP.jpg

Tradução: J. Carlos Teixeira

Maria

A noite do seu primeiro parto tinha sido
Fria. Nos anos seguintes, porém,
Esqueceu inteiramente 
O gelo nas vigas da mágoa e a fornalha fumegante 
E o sufoco das secundinas pela manhã.
Mas mais do que isso, esqueceu a vergonha amarga
De não estar só
E que é tão própria do pobre. 
Principalmente por isso,
Anos depois fez-se festa, na qual
Tudo havia.
O grulhar cru dos pastores calou-se. 
Mais tarde, a história fá-los-ia reis. 
O vento, que era muito frio,
Fez-se canto dos anjos. 
Sim, do buraco no teto por onde o gelo entrava, ficou apenas
A estrela que por aí espreitava.
Tudo isto
Veio do rosto do seu filho, que era simples,
Amava o canto,
Chamava os pobres até ele,
E tinha o hábito de viver entre os reis 
E de ver à noite uma estrela pairando sobre si.


Maria

Die Nacht ihrer ersten Geburt war 
Kalt gewesen. In späteren Jahren aber
Vergaß sie gänzlich
Den Frost in den Kummerbalken und rauchenden Ofen
Und das Würgen der Nachgeburt gegen Morgen zu.
Aber vor allem vergaß sie die bittere Scham
Nicht allein zu sein
Die dem Armen eigen ist.
Hauptsächlich deshalb
Ward es in späteren Jahren zum Fest, bei dem
Alles dabei war.
Das rohe Geschwätz der Hirten verstummte.
Später wurden aus ihnen Könige in der Geschichte.
Der Wind, der sehr kalt war
Wurde zum Engelsgesang.
Ja, von dem Loch im Dach, das den Frost einließ, blieb nur
Der Stern, der hineinsah.
Alles dies
Kam vom Gesicht ihres Sohnes, der leicht war
Gesang liebte
Arme zu sich lud
Und die Gewohnheit hatte, unter Königen zu leben
Und einen Stern über sich zu sehen zur Nachtzeit.