Livros feitos humanos

Arcimboldo_Librarian_Stokholm.jpg

Friedrich Nietzsche é excessivo, já o sabemos. Daí emerge o poder de fascinar os mais jovens – porque é intempestivo e dá a ideia de que cada um pode criar um mundo à sua vontade – e os entrados no tempo longo, porque encontram, embora em pequenas doses, interpretações mais justas da realidade do que a dos servos do cientificamente correcto (um “verdadeiro” ligado ao congelador académico e ao politicamente anódino).

Bastante se tem escrito sobre a forma, ou formas, de o lermos. Também tenho vindo a falar sobre isso. Por um lado, porque é difícil compreendê-lo satisfatoriamente (isto é, para lá do fogo de artifício hiperbólico, iconoclasta e heterodoxo); por outro lado, porque querendo seguir as suas indicações – que no essencial são duas: lentidão e isomorfismo vital –, nos deparamos com uma distância superior à que julgávamos entre o que ele pensou e sentiu e o que nós podemos pensar e sentir (caso para dizer: “isto é demasiado grande para mim!”). Em resumo: a familiaridade com Nietzsche será sempre uma ilusão. Mesmo quando ele parece sugar-nos o ar todo.

Restam, no entanto, as suas obras, que são mais e menos do que ele. Na verdade, são outra coisa. Dizer que se lê, ou leu, Nietzsche, o próprio autor, é uma falsidade ingénua e, na maioria dos casos, involuntária (temos esse hábito de confundir o que lemos com quem o escreveu). Conhecemos, porém, a sua advertência, que devíamos levar mais a sério: “Uma coisa sou eu, outra são os meus escritos.” (Ecce Homo, “Porque escrevo livros tão bons”, §1) Portanto, o que podemos ler, apanhando alguma das suas intenções, são as obras que nos deixou, muitas involuntárias, já que nos autorizamos, depois do tráfico editorial da irmã e dos Nietzche-Archiv, a publicar quase todas as suas notas pessoais.

Duas citações exemplificam claramente o que venho dizendo:

“O êxito foi sempre a maior mentira – e a própria ‘obra’ é um êxito; o maior homem de Estado, o conquistador, o descobridor disfarçam-se nas suas criações, até se tornarem irreconhecíveis; a ‘obra’, do artista ou do filósofo, é que inventa quem a produziu, quem tinha de a produzir; os ‘grandes homens’, tal como são venerados, são pequenos poemas posteriores de má qualidade; no mundo dos valores históricos dominam os moedeiros falsos.” (Para lá Bem e Mal, §269)

O livro quase feito homem [Das Buch fast zum Menschen geworden]. Surpreende sempre qualquer escritor a maneira como o livro, assim que se separou dele, continua a viver por si uma vida própria; ele sente-se como se uma parte de um insecto se tivesse despegado e prosseguisse, agora, o seu próprio caminho. Talvez ele o esqueça quase por completo, talvez se erga acima das ideias que lá estão postas por escrito, talvez até já não o compreenda e tenha perdido as asas, com as quais voava então, quando ideou aquele livro: entretanto, este procura para si os seus leitores, desperta vida, torna feliz, assusta, produz novas obras, torna-se a alma de desígnios e de acções, em suma, vive como um ser dotado de espírito e de alma e, no entanto, não é uma pessoa. A sorte mais ditosa terá cabido ao autor que, quando velho, possa dizer que tudo quanto nele havia de ideias e sentimentos fecundos, tonificantes, exaltantes, esclarecedores, continua ainda a viver nos seus escritos.” (Humano, Demasiado Humano I, §208)[1]

Estes dois momentos decidem talvez a melhor maneira de pensarmos com Nietzsche a força das ideias para lá da vida dos seus autores. Se é verdade que os seus textos exigem uma ética da leitura que passa muitas vezes por um isomorfismo vital (Nietzsche, amante das contradições, usa grande parte de Ecce Homo, esse modelo de autobiografia descomplexada, para afirmar que só o podem compreender vivendo como ele viveu), também é verdade que outras tantas vezes, como quis realçar no que citei, devemos ler o livro esquecendo o autor, lê-lo como se se tivesse escrito a si mesmo, podendo dizer-se, por exemplo, que Assim Falou [ou Falava] Zaratustra está muito para lá da mão inspirada que o escreveu, que há bastante tempo se fez homem, que é um organismo vivo de alta complexidade.

As obras de Nietzsche, sob a capa de uma “lucidez delirante”, fizeram-se à vida, mantendo-se actuais e inactuais, tempestivas e intempestivas, escrutinando os problemas do presente e abrindo para experiências vitais do futuro, onde, também elas, serão outra coisa, porque terão outros sentidos. Mas é verosímil pensar-se que podem desaparecer, como estiveram esquecidas antes de nascerem os leitores que se fizeram na morbideza, na decadência e, ao mesmo tempo, heroísmo e superação do espírito fin-de-siècle (geração magnificamente descrita por Robert Müsil, em Der Mann ohne Eigenschaften, sobretudo no cap. 15 do livro I. Sendo também aqui que se situou O Declínio do Ocidente de Oswald Spengler e todo um irracionalismo literário e filosófico marginal à Universidade, agrupado na Alemanha em torno da revista Die Blätter für die Kunst).

Apesar desta possibilidade fúnebre, creio que porque falam de solidão e, sobretudo, de renaturalização do humano, os livros de Nietzsche acompanharão o pessimismo ecológico, essa nova sacudidela no optimismo do progresso e no humanismo antropocêntrico, vontade de desacelerar o tempo, de recusar o supérfluo, de imergir nos movimentos vitais da Gaia, de uma terra viva maior do que os humanos. Uma terra de outros homens, como foi escrito por Nietzsche, com a sua gravidade profética, e que talvez hoje como nunca, no meio desta infinita crise civilizacional, a juventude, resumida em Greta Thunberg, espalha mais o medo do que a esperança, mais o dionisíaco do que o apolíneo.

 


[1] De Nietzsche há também o §140 de “Opiniões e sentenças misturadas”, Humano, Demasiado Humano II, que sintetiza a ideia de que o autor deve reservar-se quando o livro toma a palavra: “Der Autor hat den Mund zu halten, wenn sein Werk den Mund aufthut.” (KSA 2, 436)

A lição

Criada: E ainda por cima eu avisei-o, ainda há pouco!
A Aritmética leva à Filologia, e a Filologia leva ao Crime…

Eugène Ionesco, A Lição

 

há esta textura horrível
que não leva
a lado nenhum
não sei a língua
neo-Espanhol talvez
ou Oriental
mas parece
ferrugem na garganta
rrrr rrrr rrrr rrrr
arranha
quando se tenta achar
a palavra certa
e a meio da lição
o professor
fica sem palavras
não que o discurso
tivesse terminado
foi como se alguém
tivesse fechado a torneira
e ele ficou à espera
forçando
uma outra identidade
a revelar-se
o deus
que sussurra nas paredes
que inspeciona
as actividades no quarto
pelo buraco da fechadura
o que acode
ao desespero
de logocratas homicidas
retomando a lição
no ponto
que o olvido
a tinha deixado

e quando a mola
da faca imaginária
rangeu
e a aluna caiu no chão
não foram as paredes
que falaram
não Sr. Leitor
foi a morta
inerte no chão
que sussurrou
a fala em falta

e o público riu

pense nisso
Sr. Leitor
pense nisso
com cuidado

O sub-mundo da crítica

Captura de ecrã 2019-08-04, às 17.59.46.png

Há pouco tempo, o poeta João Moita partilhou na “terrível aplicação neocapitalista” facebook a crítica que o também poeta Pedro Mexia fez para o jornal Expresso do livro Uma Pedra Sobre a Boca.

Na caixa de comentários surgiram “parabéns” e uma observação inteligente do nosso tradutor mais prolífico, Miguel Serras Pereira. Nela trata de confirmar o João como poeta de Deus, prontamente recusado por este. Os argumentos sucederam-se, com mais um interveniente, até que alguém, cheio de sentido de justiça, refutou de uma penada tudo o que tinha sido dito – até Deus, creio –, e de camisa arregaçada, pronto a matar por uma vírgula, garantiu, sem apelo nem agravo, que Pedro Mexia não sabe escrever, sendo apenas o cachorro do “Sr. Presidente”. Impôs de seguida um “não mereces [João Moita] tanta banalidade”, terminando, num registo épico, com “sem querer ofender ninguém. Só mesmo para dizer a verdade.”

Claro que não ofendeu ninguém, porque, para lá dele próprio, ninguém é filho de boa gente. E depois, se é “só mesmo para dizer a verdade”, de forma tão cândida e lapidar (ainda que a metáfora do “cachorro” contenha mais ambiguidade do que lhe parece), então seja bem-vindo ao sub-mundo da crítica literária (embora no seu caso esteja embrulhada na dos costumes, sobretudo nas rasteiras ad hominem). Um sub-mundo que, como percebeu logo à primeira, venera e zomba do mundo da criação literária. Nos dois casos sustenta maravilhosas emoções trabalhadas por um agonismo primário, amor e ódio, sem matizes. Antes se tratasse de um claro e obscuro, um apolíneo e dionisíaco. E as setas fossem lançadas sobre as palavras imperfeitas ou contra a beleza miserável.

A fúria dionisíaca ou o cinismo apolíneo (arrisco esta caracterização) se acalmassem com piras e piras incandescentes, alimentadas por todos os erros de sintaxe encontrados em autores menores, ou com as banalidades enfeitadas de seriedade bondosa.

Mas não, a crítica, especializada ou popular, subjectivista ou universalista, desolada como em George Steiner ou festiva como nalguns jornalistas, até porque não tem qualquer gosto pela dificuldade, empacota apressadamente com folhas de maledicência ou de elogios desmedidos o lento, dramaticamente lento, labor da criação.

E no entanto, sem críticos seria a própria criação que se empobreceria bastante, faltando-lhe o olhar racional que a obriga, pelo menos quando se trata de uma crítica informada e inteligente, a mostrar esplendorosas partículas que escapam aos que são somente leitores e até aos próprios autores.

Hotel Agamémnon

Clitemnestra:
Estrangeiros, dizei-me, por favor, o que vos é necessário, pois temos
ao nosso dispor o que convém a uma casa como esta –
banhos quentes, camas que confortam
da fadiga, e a companhia de gente honesta.

Ésquilo, As que trazem libações

O pequeno hotel dá para uma praça. O jardim, sempre tran­cado a cadeado ao entardecer, enche-se de neve. A estátua de mármore, um Apolo esburacado e suburbano a agarrar a harpa, os bancos, as grandes folhas nos plátanos que ignoraram o aviso do Inverno expiam agora a teimosia com a cegueira antipática do gelo.

Tatiana Faia, “Hotel Agamémnon”, São Luís dos Portugueses em Chamas 

 1

o que primeiro me chamou a atenção
foi a placa
na fachada decadente
Um negócio de família
mas foi a cozinha grega
caseira e barata
e a certeza de um abrigo
onde ler e escrever
sem perturbações
durante um par de horas
que fizeram de mim
o único cliente habitual
do Hotel Agamémnon

2

pedimos
duas doses de dolmadaki
um saganaki
e uma garrafa
de vinho branco de Cefalónia
(das pequenas)
e a Vanessa diz-me
José
há algo que preciso
de te perguntar
achas que há algo
de errado comigo?
só homens mais baixos
se parecem
interessar por mim

tenho saído com um tipo
e ele é giro
e doce
e eu gosto dele
e ele
parece gostar de mim
mas não consigo ultrapassar o facto
de ele ser
mais baixo do que eu
e isso é um problema?
sim
quando o abraço
e tens mesmo de o abraçar?
sim José
tenho mesmo de o abraçar

 

3

na próxima visita
Giorgios
o dono
abordou-me depois de almoço
se quiser um quarto por uma tarde
eu faço-lhe um preço especial
sabe
da próxima vez
que vier
com a sua namorada
e deu
um estalido com a língua
mulher alta
sempre gostei
de mulheres altas

 

4

e insistiu
em fazer-me uma visita guiada
aos seus tesouros
era claramente um homem
que precisava
de alguém com quem falar
à medida que caminhávamos pelos corredores
apontava para as paredes
descrevia as relíquias
que tinha conseguido salvar
do naufrágio da história
sobretudo
arte religiosa
efígies do senhor crucificado
uma miríade
de ícones de santos
revelando uma especial devoção
a Santo Atanásio
e fotografias de família
homens e mulheres capturados
a preto e branco
como actores
vestidos a rigor
prestes a entrar em cena
num drama histórico
Giorgios chamou a minha atenção
para uma fotografia
que ocupava
lugar de destaque
um homem de bigode
trajando uniforme militar
que lhe estava claramente apertado
e a custo continha
o corpo volumoso
o meu pai
explicou
um outro cavalheiro
de cabelo pintado e bigode hesitante
segurava uma condecoração
e parecia não estar seguro
se havia
de a espetar ou não
no peito
do senhor anafado
talvez com medo
de que explodisse
o Coronel Papadopoulos
explicou
em voz solene

 

5

Giorgios deteve-se
com a chave na mão
vou mostrar-lhe algo
que só mostro aos meus amigos
e tenho tão poucos
não se assuste
é uma paixão minha
creio que um homem
com a sua sensibilidade artística
vai compreender
e abriu a porta

ao princípio
os animais ficavam
um pouco tortos
é tudo uma questão de prática
e eu só tinha gatos
com que praticar
mas depois comecei a bater
as bermas das estradas ao fim do dia
as maravilhas que se encontra
carcaças de texugos
ouriços-cacheiros
até veados
veados
matéria prima
de altíssima qualidade
exortando-me a apreciar
a perícia e o acabamento
das suas criações
todas deformadas
e grotescas
mas uma
maior e mais grotesca
do que as demais
o que é isto?
uma quimera?
disse apontando
para o que me parecia
o cruzamento de um pónei
com um lobo
isso
meu amigo
disse Giorgios
cofiando o bigode untuoso
é um unicórnio
não faz ideia
da pipa de massa
que paguei por ele

à saída
apresentou-me à sua mulher
D.ª Maria Ifigénia
uma senhora
soturna e atarracada

desde então
que não voltei
ao Hotel Agamémnon