Amor fati

Voltei à casa que, contando com a minha, já conheceu cinco gerações na nossa família, em Malpica do Tejo, na raia, bem perto da fronteira com Espanha. O primeiro que fiz foi pedir emprestada uma espingarda ao primeiro vizinho que encontrei e matar o cão a quem só caíam alguns ossos quando alguém de longe em longe se lembrava. Encontrei-o num estado perfeitamente comatoso, cheio de feridas e manco. Foram precisos três tiros. Nunca tinha premido um gatilho e não sabia precisamente para onde apontar.

Dei uma volta pelas imediações. Restavam algumas oliveiras e algumas figueiras. Um regato onde secava um fio de água. Fiz uma cova e enterrei o cão. Agora estava completamente sozinho. Pus-me a descascar o tronco de uma árvore enquanto pensava como estarias. Fiquei com as unhas pretas. Ali as pessoas não me rodeavam. Era indiferente o que fazia. Ainda não tinha entrado em casa. As malas estavam à porta. Deitei-me no banco improvisado que tínhamos debaixo da janela. Uma tábua larga, quase branca de tão seca pelo sol, sustentada por duas latas vazias de cal.

A primeira vez que te vi, sem me conheceres no meio de toda aquela gente, chocaste o teu copo de champanhe contra o meu. Sorrias para as coisas lá em baixo, ainda não te apaixones por mim, não vou sequer cruzar o meu olhar com o teu, os teus lábios vermelhos não de personagem insolente mas de linda menina, não me lembro da cor do teu vestido, eu a vasculhar uma necessidade absoluta dentro da tua mala enquanto o teu vestido passeava de fugida nas tuas pernas alheio, sempre alheia, à consistência que também desapareceu da minha vontade. Italiana, fêmea, habituada.

Não desfiz a mala. A porta esteve todo o tempo aberta com a chave na fechadura. A viagem havia que fazê-la mas não pensava ficar um único dia. Mesmo assim procurei tornar minimamente aproveitáveis os quilómetros acabados de percorrer. Entrei e abri todas as janelas. Deixei correr a água estancada nos canos. Estavam dois pássaros mortos na chaminé. Muito pequenos. Cortei diversos panos em bocados e enchi um balde de água. Não tinha detergente e não queria conversas com ninguém da aldeia. Foram suficientes as perguntas indiscretas do dono da espingarda. Embora o entenda: emprestar uma arma sem procurar averiguar se não se está perante um suicida ou, pior, um homicida, é uma imprudência enorme. Limpei a casa de cima a baixo e de ponta a ponta. Acabei o trabalho e fiquei a olhar para a fachada da casa, agora com as janelas abertas. O banco improvisado, a tábua apoiada nos dois baldes de cal, continuava a dar um aspecto contingente ao espaço. Limitei-me a descascar mais um pouco do tronco da árvore. Estava cansado e não era aconselhável iniciar a viagem de volta. Decidi esticar as costas no banco improvisado. Pouco depois levantei-me e desci até ao regato. Cavei e depus algumas pedras a interromper o avanço da água, construí uma mini-barragem que a determinado passo estreitava e estancava a corrente e depois a precipitava de uma pequena altura. Voltei ao banco e fechei os olhos. Esperei que o som da água me ajudasse a adormecer e a esquecer-me de ti durante pelo menos um momento de reunião com a liberdade, na raia dos contrabandistas dos primeiros vícios, as unhas negras do tronco da oliveira a ludibriar doravante a formalidade dos apertos de mão, sopesando a sorte e a irracionalidade dos pássaros que se atiram ao vazio pela primeira vez. Pela última vez.