Peixe-lua

Quando o sol se pôs eu estava a assar o peixe-lua.
Tinha acordado de manhã a pensar no destino que havia de dar ao peixe-lua e no cru instante em que a primeira luz entrou pela janela tomei a decisão. Ia livrar-me dele pelo fogo. Ia assá-lo.
Ao levantar-me, encontrei-o pousado na mesa da cozinha, tal como ali havia sido deixado na noite anterior. Estava cortado a meio de alto a baixo, com a linha de precisão e simetria que apenas a perfeita indiferença da faca poderia ter alcançado. Era um peixe-lua jovem; teria alastrado como um fantasma pelo fundo do oceano, se o tivessem deixado crescer. Ainda assim, o seu corpo aberto em dois ocupava toda a extensão da mesa da cozinha, deixando de fora, suspensas do tampo de madeira, a cauda e a carantonha duplicadas, o sangue pingando nas lajes do chão.
O céu da manhã estava baço e mortiço, estagnado. Preparei o fogareiro no quintal e deixei que a leve brisa que corria entre as árvores acicatasse as brasas. Eu sabia que um peixe-lua não é comestível. Ninguém, que não a faca, sentira alguma vez desejo de prová-lo. Enquanto as brasas se acendiam, pus-me a olhá-lo pela janela da cozinha. Ali estava ele: murcho e aberto, metade do corpo com as entranhas para cima como uma cabeça de medusa, a outra metade recatada, apenas a carcaça visível, recamada ainda das cintilações azuis e loiras que lhe pusera o mar.
A lua cheia desta noite será a maior do ano, rezavam as notícias de há dois dias atrás. E o peixe-lua, após anos de mergulhos profundos, tinha vindo à superfície do oceano. Tinha-se deitado de lado a flutuar para aquecer-se na maré tocada pelo luar. Assim deitado, o peixe-lua sonhava com a faca, a lâmina correndo até ele ao longo de toda a margem do rio. A faca roçava-se nas pedras como se sentisse saudades de outra coisa indizível. Como se o mar ao longe a mordesse, a faca andou toda a noite até dar com o peixe-lua que se banhava à luz da lua. O animal, raiz ou sombra, recebeu-a com a alegria inexplicável de quem acolhe o golpe e deixou-se abrir a meio, de tal forma que, quando o encontrei de manhã, se diria haver amor na lâmina.
Ao vê-lo, o meu corpo tingiu-se da tristeza daquele corpo opaco e indolor, insolente na serena inocência com que se deixara matar e mutilar, e com que agora dormia, violado, exposto, na penumbra da cozinha, confiante de que a lua cheia continuava a banhá-lo. Reconhecia, sem saber de onde, o gesto impessoal de amor que quebrasse e contornasse os meus ossos, que cindisse em silêncio a minha carne sôfrega.
Entrei na cozinha e com as mãos nuas arranquei pedaços da carne do peixe-lua. Afundei os dedos na polpa mole e repisada das suas entranhas. Era diferente de tocar algum homem ou animal terreno. Era carne intangível, oca, desassombrada como um balão que se desprende das mãos de uma criança. A carne abundava, era suficiente para um imenso banquete, e eu estava sozinha, vivia sozinha na casa e não havia ninguém que eu pudesse chamar para comer comigo. Mas, no momento em que as brasas tocaram as pontas da carne no fogareiro, os cães dos quintais vizinhos começaram a uivar.
Assim, todo o dia retalhei o peixe-lua e arrumei a carne nas brasas com a paciência de um estivador. Parti os ossos e lancei-os como aperitivo aos cães. Depois, lancei-lhes também a carne ainda em brasa, e os olhos, grandes e inertes, parados como se nunca se tivessem fechado, como se nunca tivessem estado tão vivos que pudessem agora estar mortos, arranquei-lhos da cara com a ponta da faca e lancei-os também aos cães.
Quando o sol se pôs eu estava ainda a assar o peixe-lua. Mas os cães calavam-se, e pesava-me a solidão. Tinha nos membros o torpor da faca como um presente, uma ameaça. Tinha o corpo tomado desse rigor que abrira o peixe-lua, de tal forma que, mesmo sem já quase sobrar vestígio dele, se podia voltar a uni-lo na imaginação sem que o golpe fosse notado.