MISERABLES

fui buscar-te à estação
quase sem saber se virias
chegaste com atraso
à hora prevista
à porta de minha casa
apontei para MISERABLES
escritos no lugar que só vêm  
os que costumam olhar para o céu
cozinhei o amor bafiento
há um ano na gaveta
podia ter-me desfeito antes dele
mas ensinaram-me desde cedo
que o prazo de validade
só depende da fome
ao pequeno-almoço
queimei o pão
distraída que estava
com o fantasma de ti
ainda pousado
na minha cama
mostrei-te o lugar
onde compro as flores
que morrem sempre
apesar de as regar  
ao domingo
religiosamente
trouxe até 
um pastel de nata a mais
antecipando a tua fome de retorno
ensinei-te a ler
as minhas novas estrias
das tatuagens
não quiseste saber
desapertei o teu cinto
emocionada por estares  
mais gordo
e ser tão assim
que te imaginava chegar
falei-te dos planos
quando for rica
quando for só, falei até 
do número de filhos
que planeio criar comigo
e como quem sabe de cor
o caminho
mas vira sempre
no sentido errado da rua
voltámos um ao outro: 
e sem urgência
sem regatear a inconveniência
concordámos com: 
a importância do pão escuro
a disparidade geográfica
o nunca virmos a dar
ao amor os quilómetros
que talvez ele
nos merecesse.