"Leis" da narração

Na revista francesa de divulgação filosófica Philosophie Magazine, Fevereiro de 2017, John Truby considera que a Odisseia e Breaking Bad obedecem a regras estéticas atemporais, e por isso semelhantes, já presentes, por exemplo, em Aristóteles, Hegel e Nietzsche. O autor complexifica, porém, as velhas leis aristotélicas (unidades da acção, do tempo e do lugar, servindo a mimésis de uma acção edificante que suscitando piedade e medo desenvolve processos catárticos), considera necessárias vinte e duas etapas para se escrever uma boa história (cf. Anatomie du scénario, 2017). Etapas que podem ser resumidas assim: “haver uma linha clara de desejo, a de um herói prosseguindo um objectivo definido, que para o atingir se confronta a um conjunto de situações, a que chamamos intriga, e que são principalmente testes morais, aos quais responde bem ou mal, até que surge a derradeira tomada de consciência, marcando a sua transformação íntima, e, idealmente, oferecendo ao público um momento de revelação profunda.” Desta forma, uma boa personagem incarna simultaneamente problemas psicológicos e morais, as suas fragilidades são atacadas por adversários, até ao ponto de ruptura capaz de revitalizar e decidir a vitória do protagonista. Daqui pode nascer uma revolução capaz de criar novos códigos morais mais apropriados a um mundo justo. Portanto, o centro nevrálgico faz-se com um plano de desejo e ataques e contra-ataques morais ao longo de uma linha de desenvolvimento que conduz ao final feliz (mesmo que não haja festa e contentamento simplório, pode até morrer-se saciado de vida). É verdade que algumas obras, como O Estrangeiro de Albert Camus, parecem desviar-se dessa estrutura, mas isso mantém-se na grande maioria dos casos. Por exemplo, mesmo na Metamorfose de Kafka, apesar do desvanecimento de sentido e da quase impossibilidade de se conjurar essa falha, deseja-se saber o que vai acontecer à personagem.

A ficção cinematográfica ou televisiva funciona de forma similar, excepto nos trabalhos de autor, que, por natureza, terão de afastar-se dos horizontes de expectativa dominantes, “Um filme de autor explora um mundo [possível], não segundo as esperas do público, mas de acordo com a visão do autor.” Mad Men ou Breaking Bad, e outras obras superiores (The Wire, Six Feet Under, Sopranos...), seguem a velha estrutura mas adicionam-lhes outros arranjos narrativos, reduzem a tensão maniqueísta, complexificam algumas personagens, deixando-as muitas vezes à deriva no meio da ambivalência, amplificam as virtudes empíricas contra as ambições idealistas, protegem zonas de obscuridade que noutras produções são resolutamente iluminadas, escancaradas, às vezes com deuses ex machina fanfarrões totalmente inverosímeis, uma banalidade desoladora e desastrosa, apesar de febril. De qualquer forma, se as más histórias são moralizadoras, as boas colocam sempre questões morais, “ou a questão da moral”. Mas também neste caso há excepções, John Truby dá o exemplo de Tchekhov, cujas personagens são “incapazes de compreender e de mudar. Elas repetem perpetuamente os mesmos erros.” E quando ficam conscientes, acabam por “obter exactamente o contrário do desejado.”

Assim, uma boa história, já tendo em conta os desvios que podem gerar obras de arte, “estiliza e compreende momentos cruciais da vida”. Desenvolvendo uma economia do desejo em direcção a um fim, indo por trilhos minados, onde novos Ulisses se safam com astúcias frenéticas, cheias de suspense e efeitos especiais, e no final obtêm a ambicionada superação que eleva as personagens heróicas e, se houver tragédia, também os espectadores (a célebre catarse trágica interpretada por Nietzsche, elevação em vez de purgação).