Daniel Francoy, "Identidade" ou economia do desalento (nota de leitura)

Identidade Daniel Francoy.jpeg

“Que improvável trazer
o dom da alegria.” (Identidade)

 Daniel Francoy, colaborador da Enfermaria 6, nasceu, desse segundo nascimento que nós consideramos primeiro, em 1979, vive em Ribeirão Preto e é uma voz emergente da nova poesia brasileira (atesta-o, por exemplo, o 3.º lugar do Prêmio Jabuti para o livro que aqui me traz). Identidade foi a sua primeira obra publicada no Brasil (Urutau, 2016), antes disso escolheu Lisboa, editora Artefacto, para lançar Em cidade estranha / Retrato de mulheres (2010) e Calendário (2015). De si, esboçando um pouco da sua identidade, diz: “Meus poemas falam sobre a minha relação de indivíduo com a cidade, o meu estar no mundo”. Ou: “As relações estão cada vez mais áridas e pobres”, daí a necessidade de escrever todos os dias, outra forma de eleger um mantra (ACidadeOn).

Procurei em Identidade, de que gostei muito, a palavra, linha ou estrofe que melhor resumisse a primeira leitura que fiz. Nas palavras hesitei, sem solução, entre “morte” e “sujidade”; nas linhas escolhi “Um estouro no bocal da lâmpada / lança o quarto nas trevas” (“Casa: Anotações”). Há outras mais patentes, mas esta ressoou com uma precisão assustadora nas memórias que vão esboçando o meu quarto escuro. As “trevas”, esse velho termo que inventamos para retirar todas as estrelas da noite, e o “estouro”, essa destruição fulgurante sem remédio, o genético virado do avesso, obra de um demiurgo alucinado, marcam a ferros quentes o desígnio deste livro. Mas, claro, foi também importante seguir a seta de sentido lançada pelo título: “identidade”. E se Fernando Pessoa não é exposto diretamente (também porque este nome designa, acima de tudo, uma constelação matriosca), ele destaca, com uma “luz fria” (oximoro recorrente), a dispersão, a evanescência, o desaparecimento dos hábitos que desenham Ítacas banais, onde se espera morrer mais do que vencer e ser feliz. Portanto, o título funciona, no mínimo, em câmara escura, ou, no máximo, na amplificação da certeza mais ignorada: somos seres para a morte, são as pulsões mortíferas que esquissam uma identidade condenada a fracassar, como tudo o que desaparece (e se há algum permanecer, ele dá-se como “uma lenta deriva”).

Autorretrato

Diante de mim, na parede
em que aparecem os primeiros sinais
do tempo infiltrado, há uma prateleira
ainda por arrumar.
Virá alguém um dia e dirá
é uma casa com a beleza
das ruínas e então
serei como qualquer pessoa que morreu
quando eu ainda não era nascido.

É por isso que Daniel Francoy escreve “com o avental sujo de sangue”, e as facas chamam-se “morte”, “crueldade”, “violência” (“que nunca se resolve, sôfrega / por deitar fogo em tudo”), “frutas ácidas”, “impuro delírio”, “cansaço”, “espectral”, “luz fria”, “seringa suja”, “solidão” (“Se tenho irmãos, se caminhamos / juntos, ignoro: / tornou-se o poeta de amanhã / mais solitário do que os assassinos.”). O manual de estilo vai para lá destas lâminas, Francoy é um poeta preciso, sóbrio, elegante, clássico (permitindo-me abusar da língua). Se fala da cidade como um buraco negro, da vida como uma espera, cansativa, da morte, é porque a realidade é isso mesmo (desculpem-me os perspectivistas). É verdade que por vezes, como no cinema, se escurece o local para realçar melhor um qualquer aspecto, e é possível apanhar Francoy com a lanterna na mão. Mas a sua economia poética geral não indica nenhuma redenção (a não ser, talvez, aquela que indiretamente recolhe, por sua conta e risco, o leitor estético, como acontece, por exemplo, com Voyage au bout de la nuit, Heart of Darkness ou o Livro do Desassossego). Fora essas micro-iluminações, um manto niilista originário, placenta do mundo, envolve cada estrofe deste livro. Espalhou-se uma metafísica negra sobre a vida, que parece medrar especialmente no falso refúgio da cidade (onde agora vive o Minotauro). Mais, Daniel Francoy, até um certo ponto contra Fernando Pessoa, não é pessimista em relação ao futuro, mas em relação à origem do projecto humano (sem as justificações estafadas de quedas teológicas), ao delírio humanista que esfarrapou o humano, pondo-o a correr atrás de uma cenoura que conduz a lado nenhum.

Mostrará isto um misantropismo insolúvel? Talvez, mas como em Fernando Pessoa, um “Misantrópico amante da humanidade” (Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação). Nas linhas de sentido mais ocultas (fui eu que as escondi?), há uma espécie de empatia por omissão. Subsistem forças morais que barram a vulgarização do genocídio, se é, como diz, “ridícula a certeza de ser bom”, continua a socorrer-se o mendigo. Ainda se ama, mesmo que seja só “por hábito, por fome”.