Eduardo Quina, Ausência (recensão)

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Em ausência [pequena liturgia de um regresso] (Eufeme, 2017), Eduardo Quina experimenta uma poética do desconsolo, indicado pelo título e confirmado por uma semântica da dor, do disforme, do abandono, da solidão, do desamor, da desesperança.... Estranho, quando sabemos que há muito se estabeleceu uma corrente isomórfica entre o êxtase poético e o êxtase religioso (entre nós, por exemplo Tolentino de Mendonça ou João Moita). Mas Eduardo Quina quis inverter Novalis, em vez da criação poética ajudar à criação do Universo, vemo-la mais como um apontador, e amplificador, da imperfeição e do desespero. Os recortes que imprime no tecido do mundo abrem para lugares sombrios. A transcendência, mistura de deuses pagãos e bíblicos, não funciona como um refúgio de compaixão, é antes um catalisador do mal. Esta interpretação ousa o que talvez não devesse, como diz Pessoa “Os Deuses são a encarnação do que nunca poderemos ser.” (Livro do Desassossego). Ou seja, a Alteridade jamais compreendida. De qualquer forma, Eduardo Quina compôs a sua língua e com ela fabricou um universo (não o Universo de há pouco), mais perto de Francis Bacon do que de Gustav Klimt, de Nietzsche do que de Kant, de Joseph Conrad do que de Gabriel Garcia Marquez, de Beethoven do que de Mozart. Um universo sem paz nem alegria, mas um universo. E isto é capaz de conjurar muita coisa.

O primeiro poema do livro, “[nota]”, mostra um trilho que podemos seguir para nos aproximarmos do pensamento, mais vasto do que o do autor, que lhe deu origem. Aí se evoca, numa tonalidade trágica, Orpheu, a penúria, a impunidade dos deuses, trazidos à luz pela palavra poética, que não passa de “estilhaços repercutidos e insignificante”. Uma evocação que revela o pano de fundo do livro: “memória e ausência.” Serão estes termos – teológicos e históricos – a compor a possibilidade do recomeço, com gestos tensos, elementos de um corpo que aguçou os sentidos do sofrimento, por isso as palavras, como diz em “[Re]começar”], só podem explodir-nos nas mãos e silenciar-se na voz.

Eduardo Quina desafia o vórtice do tempo com “relâmpagos poderosíssimos / para que se erga a luz sobre as imagens”, mas, como julgamos acontecer aos humanos que juntam arte e eternidade, compõe pequenas ramificações poéticas que parecem rijas, embora acabem por não pesar na política do Cosmos. Por isso, não deve haver “remorsos ou falsos consolos”, a escuridão combate a luz, e parece ganhar-lhe. E quando isso não acontece, a resplandecente e magnânima luz divina tem somente a força caprichosa do seu ensimesmamento: “a vida é apenas um conjunto de subtracções / e parece que os deuses nos sabem magoar / como são belos os deuses desprovidos de misericórdia.” (“3.”). Os deuses transportam “morte e ilusão”, até porque vivem numa “arbitrariedade compulsiva”, mesmo quando imaginamos essa compulsão feita de amor.

Se isto poderia heroicizar o homem, como pensava Nietzsche? Não. A nossa incompetência, com as palavras e com a vida, revela-se irredutível quando lemos Ausência. Não sabemos dizer as coisas demiurgicamente e deixamos morrer a amada duas vezes. Resta ao poeta ir de “alucinação em alucinação”, embora aqui, como não podia quase deixar de ser, Eduardo Quina abra uma frincha por onde entra claridade, permitindo-lhe, quando abandonar o ofício e se proteger com a armadura de uma espécie de amor fati, ainda “escrever humildemente / longe do mundo”.

Isto dá-se sensivelmente no meio do livro, a partir de onde parece ser possível construir “os vícios, etapa a etapa”, mesmo no impasse de “um estático clarão” ou na inclinação para o mal que provoca uma segunda morte. É assim que lemos no poema “13.” “uma papoila que floresce uma última vez: / abre-se onde já nada se espera / no som definitivo da demência”. Este desvio à lucidez é uma pequena bênção que permitirá outra liberdade do corpo (talvez o marcador semântico mais usado por Eduardo Quina), lembremo-nos de Dioniso. A alteridade é agora partilhada entre a transcendência e a imanência, sem empatias salvíficas, mas vemos aparecer uma nova política dos afectos. Pode olhar-se o futuro, mesmo quando nos “rendemos à ideia de tragédia.” O mito e a metafísica, o labirinto e o Céu, envolvem-nos agora sem nos esmagar, podem dilacerar-nos, mas não esmagar como quem se alegra do som de uma barata pisada numa geometria calculada de sapatos caros. E mesmo terminando, noutra “[nota]”, a revelar-nos que há somente medo, facas, barbárie, delírio, inferno, demência e que “a poesia é uma farsa.”, e talvez seja isso mesmo, Eduardo terminou um livro que alguém lerá embebido pelas forças emotivas da vigília. O autor, mão dos deuses, da alma e do corpo, terminou um livro que viajará pelo mundo, com a sua orografia acidentada e a combater – perdendo? – o tempo da pressa. Escolheu cuidadosamente as palavras, teve essa liberdade (apesar de nos alertar para a pujança do destino), olhou para as folhas em branco e anteviu o olhar do leitor em parágrafos com formas orgânicas. Acusou os deuses ao mesmo tempo que os louvou (a indecisão habita os crentes genuínos). Deformou o corpo. Invocou a morte, não como um fim mas como um meio (a pior das mortes, diz-se). Esboçou uma metapoética, à semelhança dos seus companheiros de ofício (quem resiste a esta tentação?). Olhou para o alto e percebeu que se afundava no sem-sentido ou pisava um campo minado. Mas fez tudo isto em júbilo; sombrio, se quisermos. E este trabalho, que exige uma recepção audaciosa, é a luz negra que prova a nossa filiação prometeica, insistimos e rimos, mesmo quando não conseguimos sair da esquina da primeira circunvalação do labirinto e isso nos deveria entristecer para sempre. Experimente-se, pois, a ausência.