Philip Roth, para uma oração fúnebre

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Multiplicam-se os obituários sobre Philip Roth, dos parágrafos singelos, mas quase sempre trivialmente verídicos, no facebook, às orações maiores dos mandarins da hermenêutica cultural, instalados nos melhores púlpitos da comunicação (esses a que chamamos de “referência” porque sacodem um depósito de ideias e palavras adultas, quase velhas, tudo definido a priori na cartilha do “bom gosto” dominante). Na verdade, Roth já tinha deixado de escrever há quase uma década, inexoravelmente, como em quase tudo o que fez ou não fez. Mas mesmo estas duas mortes não afectarão a vida dos seus livros, aliás, agora estão, creio, mais livres e vitais. Neste sentido, Roth não morreu. Mesmo se em 1990 pensava que dos 15 000 leitores que achava ter, passaria a 7 500 em dez anos, 2 000 em vinte e cinco anos e quase nada depois disso: “É o fim. Somos os últimos escritores...” (Libération)

Os clichés mais frequentes orbitam em torno do seu judaísmo e anti-semitismo (o uso da contradição é um sinal de inteligência, dizia Nietzsche), anti-americanismo lúcido (desmistificador do sonho americano), mas oportunista (foi a auto-irrisão americana, a mais vigorosa de todas, que o autorizou, e inspirou, à crítica da sua cultura), pornografia decadente (opondo-se à jubilatória de Sade ou Henry Miller, talvez também, de um certo modo, à de Nabokov em Lolita), amoralismo moral (novamente a contradição, neste caso parece-me que Roth ao deixar resvalar algumas das personagens para o imoralismo ainda quer realçar a moral abraâmico-burguesa, apesar de escrever que “Literature isn’t a moral beauty contest”), busca do estrato humano quase pré-cultural, talvez o Id freudiano e auto-escrutino (o bairro judeu de classe média de Weequahic, Newark,  alimentou muita da sua ficção autobiográfica). Tudo cosido por um fatalismo trágico, condensado na sua última obra, Nemesis (2010), não fosse ele um herdeiro voluntário de Dostoievski e de Kafka.

Mas dizem-se mais coisas sobre Roth, essas que compõem as vaidades, quase sempre feridas, e os ataques, tanto fingidos quanto aduladores, ao centro do mundo literário; lugar intangível onde se decidem as primeiras etapas da genialidade (creio que a seguir a corrida entra na alta montanha e a arbitragem passa para os leitores, que, diga-se, também se enganam). Repete-se, por exemplo, que mais uma vez “A Academia Sueca não soube estar à altura do romancista genial” (El Pais) Dos outros esquecidos, os meus preferidos são Proust (mas bem, morreu cedo) Italo Calvino e Jorge Luis Borges. Fala-se ainda, quase em uníssono, que Roth vivia para a escrita, “movido por um imperativo categórico”. (Idem) Esta abnegação conjuga uma ética do trabalho neo-protestante com o sacrifício último do génio romântico, mas em Roth tratava-se porventura de uma perpétua e obsessiva auto-análise, de se querer conhecer na íntegra. Ele usa a linguagem para exorcizar o seu inferno interior.

Por isso, interessa muito o que ele referiu sobre a tarefa (imensa, total, imperativa, escrava) de escrever. O de ser tão esgotante que não a aconselhava a ninguém. Em 1990 ao Libération: “Há trinta e cinco anos que estou sentado numa cadeira, em face de uma folha de papel que escrevo. Sete dias por semana. Começar um novo livro é um pesadelo.” Uma loucura vivida em profunda solidão. Os breves encontros com outros autores reforçavam a sua angústia, definida quase como uma síndroma de escritor. E mesmo a estranha relação que manteve com o seu alter-ego mais consistente, Nathan Zuckerman (narrador/autor de nove romances), muito mais do que um pseudónimo, talvez outra coisa que um heterónimo (The New York Times, 22/05/2018, refere que Roth construiu “mainly versions of himself”), revela que nunca, mesmo cinicamente, esteve apaziguado. Em The Facts: A Novelist’s Autobiography, o diálogo tenso entre Roth e Zuckerman mostra como o autor, prolífico e heteróclito, perdeu muito cedo (logo depois do sucesso vibrante de Portnoy’s Complaint, 1969), uma inocência que lhe permitisse acolher a beleza e a bondade que, apesar de tudo, percorre a vida. Veja-se também Operation Shylock: A Confession, 1993, onde em epígrafe coloca estas palavras de Kierkegaard: “Todo o meu ser grita em contradição consigo si mesmo. / A existência é, seguramente, uma escolha.”

Depois, sempre inscreveu sistematicamente a realidade na ficção e, num certo sentido, vice-versa, um vaivém difícil de decifrar, quase orgânico. Fazer entrar brutalmente a realidade na ficção para revelar o esplendor pífio do quotidiano, jornalista das misérias diárias, acrescentando depois um pouco de filosofia para discutir, em solilóquio, o que poderá distorcer tanto a interpretação para que o humano (uma mancha do divino?) se desvie de um campo de flores para espreitar um acidente com estropiados.

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Descobri Roth bastante tarde, um colega de trabalho lia-o, mas não o tinha literariamente muito em conta. Um dia, comprei numa feira a Pastoral Americana, e foi amor à primeira leitura. Não é tanto a intriga, a estética romanesca ou outro elemento formal qualquer que me seduz, nele admiro a frase, a depuração extraordinária de cada frase e a persistência com que decapa a carapaça do ser humano à procura de qualquer coisa que me escapa, mas neste processo de perfuração revela estratos primitivos que nos compõem, da preservação egoísta do eu até às pulsões libidinosas mais elementares (“o sexo ultrapassa-nos”), para lá de qualquer bem e mal ou dos jogos eróticos consagrados. E tudo servido numa presença densa, magnética, quando escreve sobre a banalidade desoladora e desastrosa, mas nunca asséptica, ou usa a sua magia literária tóxica (é difícil, como em Coetzee ou Céline, apanharmos linhas de redenção), sobretudo ao desmascarar, através de uma incrível energia da observação, o autocontentamento da classe média americana, principalmente a judaica. Também critica a compulsão para a ordem e a superioridade teológica (aqui, judeus e não judeus), quando, finalmente, diz, é a “roda da fortuna que manda”. Revejo-me ainda no ataque ao puritanismo, construído à custa da repressão das forças mais vitais e inventivas. E talvez seja esta denúncia a obrigá-lo a sexualizar pletoricamente os seus escritos, quase como se quisesse enfeitar com obscenidades todas as formas de catequese. Pois bem, por isto, dito de maneira vergonhosamente atabalhoada, e porque me inclino sempre para gostar do autobiográfico (em Roth o escritor não conta histórias, conta-se nelas. A si e ao mundo no qual vive), aconselho a leitura dos seus livros, com traduções competentes para português. Creio que não nos fará mal nenhum ter um Complexo Roth para juntar ao Complexo Kafka.