de «Cenas de uma vida conjugal»

Rosto negro de tão curvado, como
se já não escutasses a desatenção:
nem te pergunto pela urgência
da sílaba, a fraga, o vestuário da dor;
tenta só equiparar minha cabeça doente.

Longe da idade da família, intumesce a certeza
cintilante de ser uma só voz entre pulsos reflectores.
Remexemos o baralho de horas e papéis; às vezes, é
só a indecência de outra coisa morta debaixo da mesa.

Nunca mais comeremos da mesma pobreza fumegante:
agora é a vez do cigano à porta, arrancando peles,
mostra-te as melhores partes, experimenta,
esfrega-me o nariz no risco entontecido da tarde.

De «Cenas de uma vida conjugal»

Não nos atropelamos ou matamos por acaso.
Vejo com surpresa como ainda lhe é bondoso
o meu passar estreito, de ironias mansas lhe
é feito o meio sorriso e assim me devolve o
silêncio por cada porta que atravessamos.
Andamos de passos contados. Melhor,
sigo-a eu, recomeçando com vagar o
penúltimo copo, atónito ao espelho.
Reconheço-a, mas só ao ponto de
perceber o seu modo abandonado de mim,
manchado de feminino. É isso que gasta.
Acho-me imenso de movimentos, como
uma corda desfiada num chão de poeira.

de «Cenas de uma vida conjugal»

Ceder ao peso do amor, lembrar ocasiões,
a conversa num feixe e o caso ainda
indestrutível de certas cores.
A crença: tão miserável se
agora puxar pela cabeça.

Regressa-se à casa de partida:
raro conseguir sair deste lugar sem
a transfiguração, a ida ao caixote
que pobre se impinge.

O amor ultrapassado:
por respiração entendo jogo viciado
e quando saio não reconheço
o ponto assente,
o até agora perdido.

De «Cenas de uma vida conjugal»

Aos ouvidos a reza, a partilha deste
momento com mãos atadas sobre a barriga.
A tua reflexão nocturna, decorando
aqueles que querem morrer neste dia.

Não são mais do que holofotes queimados os
vultos de nenhures que te fazem companhia.
Há dias com gosto, levadas de prazer
que se desfazem sobre o nó do corpo.

Desatento passeio pelos teus ombros,
medito nos claros limites do riso,
não acalmo a besta que agora
me cruza as mãos em despedida.

Tu, eles, nós: pronomes do acaso,
apodrecem com malícia no quintal.
O cesto vazio da minha vida para
onde te trago: já disseste tudo,
o nosso contrato quebrado.