O nosso amigo em comum

O nosso amigo em comum meteu-se desta vez em trabalhos sérios e entregou-se na manhã de ontem às autoridades, fiquei a saber por uma vizinha nossa e queria que também tu tivesses conhecimento, tão longe que te encontras aí nessas planícies de vento e de pedra. Suponho que não conheças muito da história, por isso permite-me deixar-te aqui os traços gerais de um episódio que veio abalar, mais do que alguma vez esperado, a habitual tranquilidade do nosso bairro. Sentirás porventura nas minhas palavras algum escrúpulo em condenar abertamente o comportamento do nosso amigo, mesmo nos seus momentos mais abruptos e insensatos. Fica porém sabendo que tal se prende menos com algum tipo de avaliação condescendente das suas acções ao longo dos últimos dias, o que aliás seria praticamente impossível, considerando a sua extrema gravidade, do que com certo sentimento de culpa que desde ontem lentamente me tem invadido, firme e crescente como batalhão inimigo avançando sobre milheirais indefesos ou a primeira neve da estação fria. Não que eu tenha tido qualquer parte, moral ou juridicamente condenável, na forma infeliz como os acontecimentos se precipitaram. Ainda assim, enquanto observador atento de todo o estranho caso, bem como na qualidade de agente desencadeador do conflito criado, e verás como efectivamente o fui, não posso deixar de me sentir responsável pela perdição em que terá caído o nosso bom amigo em comum. Tu mo dirás, se assim entenderes. Não to peço, embora suspeite, conhecendo-me como julgo conhecer, que também estas linhas andam em busca de algum perdão ou paz de espírito.

Mantém minha mãe, desde que deixei de trabalhar, o feliz hábito de me vir despertar todas as manhãs às oito horas em ponto com a sua doce saudação de bons dias e o providencial amargor do café forte que só ela sabe fazer. Em meu abono devo dizer que de início por várias vezes a tentei convencer de que não havia necessidade de semelhante tratamento a fazer lembrar realezas ou tempos de infância em dias de febre. Mas ela insistiu, asseguro-te, alegando não lhe custar nada, ser até para ela uma rotina prazenteira. Insistiu e eu não me opus. Creio que no fundo é a forma de ela tratar de garantir-me uma certa disciplina de horários e não permitir que, passando eu agora a maior parte do tempo em casa, a vida doméstica não descarrile em letargia e desmazelo. Considerando que os meus projetos pessoais a seus olhos não mais parecem que passatempos ou no máximo afazeres de circunstância, ao menos um despertar a horas certas permite-lhe acreditar com alguma convicção que o filho não é aquilo a que poderia chamar-se um inútil, um desocupado. Estou em crer, como te digo, que essa maternal invasão dos meus aposentos, todos os dias à mesma hora, acompanhada do invariável procedimento de desejar-me os bons-dias, pousar o café na mesa de cabeceira e afastar os cortinados para abrir passagem à luz da manhã, é a maneira de minha mãe conservar o seu domínio sobre uma situação que não é de todo do seu agrado e desse modo não deixar que o filho se perca. Que ele não se vá abaixo, como uma vez a escutei dizer ao telefone à minha irmã. Que após eu ter recebido parte da ampla herança de minha tia eu tenha abandonado o emprego mais enfadonho da história para finalmente me dedicar à escrita do grande romance é algo que ainda não lhe quadra, eu sei, estou consciente disso, mesmo que desde muito cedo, a meu pedido solene, ela tenha desistido de mo dizer abertamente, tendo igualmente da sua parte constatado a inutilidade de quaisquer argumentos perante a minha determinada posição. Tolera-me por conseguinte a vida de recatado literato que a fortuna me permitiu adoptar, reservando-se o direito de me disciplinar horários, refeições e um ou outro abuso de linguagem. Foi por isso ela a anunciar-me certa manhã de abril, ainda eu mal acordado e pior saído de um sonho confuso, meu deus, vem ver, estão a cortar o cipreste.

O cipreste do bairro, sabes? Não sei se os tens por aí, para dizer a verdade desconheço as paisagens que contemplas ou por que arvoredo te moves. Algum cemitério triste os terá seguramente, são árvores dadas a espaços exíguos. Mas falo-te nem mais nem menos do rei do bairro, aquele colosso firmemente plantado no jardim de uma vivenda vizinha, numa rua paralela à nossa, e que eu me habituei a admirar, desde que me conheço, emoldurado pela janela do meu quarto. Destacava-se de árvores e casario em volta pelo seu denso corpo de coluna enegrecida e ao poente era a primeira forma a lançar com violência o seu marcado contorno contra o desmaio do céu. E agora, como se de um crime à luz do dia se tratasse, um bando de algozes munidos de moto-serras amputavam-lhe os grossos braços perante a chocada indignição de minha mãe. Foi o assunto do dia lá em casa e já na sala a televisão ligada sem som surpreendia por ignorar a notícia da atrocidade que naquele momento se perpretava. Ao mesmo tempo que minha mãe, possuída por repentino dever de proteção ambiental ou talvez, estou em crer, por esse tão humano instinto de resistir à mudança, se empenhava na procura de contactos de gabinetes e secretarias municipais para onde ligar a denunciar a criminosa infração, eu por meu lado tive então a infeliz iniciativa de telefonar ao nosso amigo em comum, desencadeando assim, como verás, os tristes factos que depois o levaram à perdição. Infeliz iniciativa, certo, mas penso também que inevitável, considerando a minha disposição naquelas horas, o estado de alma, como costuma dizer-se, e a sensibilidade contagiante de minha mãe, absolutamente determinada em defender a vida daquele bom gigante. E ao dia e hora em que te escrevo, consumado já tudo o que de pior se poderia imaginar, julgo entender com maior clareza, tanta quanta vai já faltando à jornada que termina, a importância daquele cipreste no bairro, e de todas as verdadeiras árvores à face do planeta.

A permanência. A permanência, digo-te, muito para lá de qualquer convicção ecológica. O que nos perturbou lá em casa foi essa constatação de uma permanência subitamente demolida pela decisão caprichosa de um qualquer insignificante indivíduo. Insignificante e temporário, impermanente. Como suportar o insulto de uma constância ameaçada em nome da vontade de alguém que daqui umas décadas já não andará por aqui? Aquele cipreste, simbolizando a cadência justa e equilibrada dos meus dias passados à secretária do avô, em busca da palavra justa no lugar mais acertado, aquele cipreste, repara bem, agora pura e simplesmente sonegado à nossa rotina, desfeito em toros de lenha e amontoados de folhagem sem vida, deixando no horizonte uma lacuna do tamanho de um monte escuro. Tudo isto fiz ver ao nosso amigo em comum nesse fatídico telefonema, com o exclusivo objectivo, acredita, de partilhar com ele a minha revolta, envolver no assunto um amigo, um outro membro da comunidade, para que se juntasse a uma qualquer onda de reprovação, não mais que isso, uma vez que pelo que podíamos verificar pela janela já pouco ou nada poderia ser feito para salvar o cipreste do seu funéreo destino. Mas imagino que o devo ter apanhado num dia de maior susceptibilidade, digo-o em minha defesa. Acontece às vezes, não? Uma palavra dita no tom exacto, no momento crucial, ao ouvido da pessoa mais sensível para a escutar. Talvez tenha sido isso, espero um pouco, que o tenha levado a reacções tão extremas, mesmo considerando a gravidade do crime que se cometia.

Conto-te um pouco do romance que ando a escrever, tens paciência ainda? Não imagines grande disciplina de trabalho da minha parte, pois infelizmente me acho bastante dado a dispersões de todo o tipo, alguém que me telefona, pequenas tarefas domésticas ou simplesmente essa tão recorrente incapacidade de me sentar à secretária e verter tinta sobre papel, desbastar a brancura a golpes de texto, escrever um parágrafo qualquer, por mais escasso e desconexo que seja, para assim pelo menos partir, sair do sítio, que é o contrário de ficar preso, retido, aprisionado no mesmo lugar. Penso que é medo. Medo de escrever. Ou medo de começar e não saber para onde, por onde. Medo de abandonar a segurança do tempo e do espaço anterior ao texto, ou então, muito provavelmente, terror de descobrir até onde as palavras me podem levar. Conto-te então a história, o início da história que há-de ser? Um jovem casal, Teresa e Alexandre, decidem um dia abandonar a sua agitada vida urbana, repleta de compromissos profissionais e sociais, e vir habitar uma casa de província, na orla de uma floresta. Buscam tranquilidade, tempo. Buscam talvez até algum estado primordial, no qual a existência humana se manifeste simplificada, liberta da violência do pensamento. Mas quem lhes disse que ali junto à floresta, longe da gente e da cidade, poderiam encontrar o que buscavam?

Termino já, não te aborreças, fugiu-se-me a carta do propósito inicial. Nem cheguei a perguntar como estás, que coisas contas da tua vida remota, quando planeias voltar a casa. Tu me contarás em resposta a isto, peço-te. Em todo o caso, ficas por mim informado que no passado dia 14 de Abril, o nosso amigo em comum agrediu a golpes de machada os três funcionários da empresa contratada para nesse dia abater a maior árvore do bairro, eliminando-a assim para sempre da nossa paisagem. Após a bárbara agressão, de que felizmente não resultaram mortos, ainda que dois dos indivíduos tenham sofrido ferimentos considerados graves nas costas e membros superiores, o nosso amigo abandonou o local na sua viatura, tendo andado fugido às autoridades durante três dias, precisamente até ontem de manhã, altura em que decidiu entregar-se. Diz-me minha mãe que será amanhã apresentado ao juiz.

Distância

tu agora és dos montes entre os bosques
e eu já das largas avenidas
tu da casa onde arde um grande fogo
e eu, além rio, do quarto esconso

tu agora buscando o mais da vida
e porventura eu do mal o menos
reclamando à solidão o fraco lucro
de todas essas coisas já sabidas
que aligeiram assim uns quantos dias
que lhes dão enfim uma corzinha

como a música, bons almoços
olhos lentos, alguma poesia
enganos de contas a meu favor

de João Miguel Henriques, Panónia (2021)

João Miguel Henriques, Panónia

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João Miguel Henriques

Panónia

poesia

Enfermaria 6, Lisboa
Março de 2021, 36 pp

Capa de Gustavo Domingues E StudioPilha

6€

 

escuta agora, pesar, não digas nada
deixa tão somente que eu o escreva
para que exista e ecoe e eu me lembre
mais tarde, diante daquele rio

 

João Miguel Henriques

João Miguel Henriques (Cascais, 1978) é poeta, tradutor e professor de língua e literatura portuguesa. Publicou os livros O Sopro da Tartaruga (2005), Também a Memória é Algum Conhecimento (2009), Entulho (2010), Isso Passa (2012), Fonte Breve (2015) e Incêndios (2016), além de outros textos dispersos por várias revistas e publicações online. Vive actualmente na Hungria, onde lecciona na Universidade ELTE de Budapeste, dirigindo igualmente o Instituto Camões local.

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