Um casamento no inferno: sobre romãs e poemas

Korê com Romã, Museu da Acrópole, Atenas, séc. VI a.C.

1.      

Ultimamente dou com romãs em toda a parte. Estão em caixas de madeira à porta de todas as mercearias que não ficam longe da rua onde vivo ou aparecem de todos os tamanhos, em cores castanhas e vermelhas, embaladas em esferovite, nas bancas do mercado às quartas-feiras. Em Atenas, de onde voltei há poucos dias, havia-as de quase todas as cores nas lojas de comida em Exarcheia, ou no enorme mercado da Praça do Teatro, ou moldadas em cerâmica nas lojas de recordações de turistas que se multiplicam por todos os bairros da cidade. Vi umas quantas nas mãos de estátuas nos museus dedicados à antiguidade clássica e até completamente secas e ainda a pender da sua árvore junto às ruínas do teatro em Delfos. Durante boa parte da viagem esperei cruzar-me com a mítica romã azul que Yiorgos Seferis descreve na segunda parte de um poema intitulado “Tordo,” um poema que ele escreveu acerca da paisagem da ilha de Poros, pouco depois de ter regressado à Grécia durante a Segunda Guerra Mundial. Esta romã é a noite, e a obscuridade de um seio, e um pouco um talismã que permite uma estranha metamorfose, a de preencher alguém de estrelas. A romã desse poema é, enfim, um objecto misterioso e inexplicável, um pouco perigoso, como acontece com a maior parte das coisas que Seferis escreveu sobre o desejo. “Não te esqueces,” diz o último verso do excerto que cito aqui, mas aquilo de que cada um não se esquece é aquilo que as sucessivas imagens deste poema evocam em cada um, ao mesmo tempo algo privado e partilhado, com a sua própria profundidade.

— ‘Maybe the night that split open, a blue pomegranate,
a dark breast, and filled you with stars,
cleaving time.
                     And yet the statues
bend sometimes, dividing desire in two,
like a peach; and the flame
becomes a kiss on the limbs, then a sob,
then a cool leaf carried off by the wind;
they bend; they become light with a human weight.
You don’t forget it.’

(Tradução de Edmund Keeley)

2. 

Paestum, Parque Arqueológico, ca. 2018

Devo ter visto muito poucas árvores de romãs na vida e sei quanto disso é a tristeza de uma adolescência e idade adulta urbanas, por isso acho as romãzeiras as mais surpreendentes das árvores. Por isso também raramente esqueço as que vi. Sinto que são sempre um pouco minhas. Algumas destas míticas árvores estavam (estão? estarão?) num campo que é cortado pela estrada que vai dar ao parque arqueológico de Paestum, entre Nápoles e Salerno, onde se podem ver alguns dos mais bem conservados e mais monumentais templos da Antiguidade. Os templos são massivos e gregos, foram erigidos no tempo em que esta região era a colónia da Magna Grécia. Gente de quem sabemos pouco ali os contruiu entre o século VI e o século V a.C. Mal vemos os templos, sentimo-nos pequenos. Mal vi essas árvores senti-me contente de me livrar da monumentalidade, a alegria de ser perecível. Era o princípio do outono e elas estavam alinhadas como vinhas até perder de vista, com as romãs ainda não bem maduras. Os gregos e os romanos acreditavam que as romãs eram o fruto dos mortos. Um fruto amargo e doce, com uma mitologia ambivalente a acompanhá-lo. Nos frescos que estão no museu do parque arqueológico há romãs por toda a parte.

Frescos com Romãs, Museu Arqueológico de Paestum, 340 a.C.

Uma outra romãzeira de que me lembro bem está plantada numa campa bem mais recente e mais discreta do que qualquer templo, num cemitério em Roma. A árvore foi deixada mesmo ao lado da lápide e começa a florescer na estação em que a terra começa a morrer. Não penso nesta árvore sem pensar em Deméter e Perséfone. Não há muitos deuses gregos que morram e permaneçam mortos, ou que ao morrer adquiram poderes formidáveis, mas Perséfone é uma excepção. Há muitas coisas para dizer sobre esta deusa que morre jovem porque um deus se apaixona por ela.

Romãzeira, Roma

3.

Morta de fome no Hades, recusando-se a comer há vários dias, depois de ter sido raptada e violada pelo deus dos mortos, Hades, que se quer casar com ela, o fruto que Perséfone por fim come é uma romã. Mais tarde, assim é contado no Hino Homérico a Deméter, um desses primeiros poemas que nos chegaram em que a mitologia dos gregos foi cifrada em poesia, Perséfone contará à mãe, a deusa das colheitas e da agricultura, Deméter, como comeu esse fruto. É um dos momentos mais estranhos e mais extraordinários na história da poesia arcaica, um daqueles raros instantes na literatura desse período que chegou até nós em que duas mulheres têm uma conversa a sério.

Depois de Deméter ter percorrido toda a terra à procura da filha, a deusa esconde-se num subúrbio de Atenas, Elêusis, para se afastar dos deuses e deixar tudo o que estava na terra perecer. Zeus entende o lado impiedoso da raiva de Deméter e envia Hermes ao mundo dos mortos para pedir a Hades que traga Perséfone de volta. O deus deixa-a voltar, mas não sem antes lhe dar uma semente de romã. Quando a mãe e a filha se encontram, mal se abraçam, a mãe imagina o que aconteceu:

Enquanto [segurava a filha querida nos braços]
[de súbito o seu coração suspeitou de algum engano. Com um medo terrível,]
soltou-se [do abraço e logo lhe perguntou:]
“Minha filha, tu não [comeste nada enquanto estiveste lá em baixo,]
pois não? Fala [e não cales nada, para que ambas fiquemos a saber.]
Pois se não o fizeste, podes estar [entre os demais imortais]
e comigo e com o teu pai, [o filho de Crono de negra nuvem,]
viver honrada por todos [os imortais,]
mas se provaste algo tens de voltar lá para baixo e [as profundezas da terra]
habitar durante a terça parte [do ano]
e as outras duas junto de mim e dos [demais imortais.]
Quando na perfumada Primavera a terra florescer
com flores de todo o género, então da sombria escuridão
ressurgirás, para grande espanto dos deuses e dos homens mortais.  

Perséfone responde:

... às escondidas,
ele pôs-me na boca uma semente de romã, alimento doce como o mel,
e obrigou-me a comê-la contra a minha vontade.[i]

É com esta frase que Perséfone diz a Deméter que ficará para sempre ligada ao mundo dos mortos, que não pode exactamente voltar nunca, que nada tornará a ser como antes.

Perséfone é uma daquelas personagens da mitologia que tem dois nomes, que em certo sentido apontam para duas identidades, Perséfone, que é o nome por que é mais conhecida, e Korê, que significa simplesmente moça. Alguns estudiosos associam a mudança do nome à mudança de estado de Perséfone, de solteira para casada, de filha de uma deusa (Korê) para rainha do mundo dos mortos (Perséfone). As interpretações deste mito que olham para ele como metáfora de um ritual de transição na vida de jovens mulheres não resolvem a sua carga misteriosa e negativa: casada, Perséfone, que tinha sido Korê, não está exactamente viva. A passagem é, pelo menos da perspectiva de Deméter, brutal, dolorosa e acontece em aparência contra a vontade das duas mulheres. Podíamos dizer que há neste mito qualquer coisa da amargura e da acidez da semente, que traduz o lado inevitável da vida. À excepção da lírica de Safo e das tragédias de Eurípides, textos mais tardios, poucas obras da antiguidade estão tão interessadas na mentalidade das mulheres gregas da Antiguidade como este hino. E, contudo, não conseguimos entrar dentro da cabeça de Perséfone, não a conseguimos nunca entender perfeitamente.

Talvez isto ajude a perceber porque é que os gregos e os romanos usavam este mito para explicar outra coisa, a passagem das estações do ano. A terra morre no inverno, quando Perséfone tem de partir para o Hades e começa a renascer na primavera, quando ela regressa para junto da mãe. Mas Perséfone permanece tão impenetrável quanto todas as outras personagens à sua volta podem ser explicadas.

Num dos poemas de A Beleza do Marido, um livro sobre um casamento quase tão ambivalente e estranho como aquele que uniu Perséfone e Hades, Anne Carson comenta este poema num poema seu: 

Alguma vez ouviste falar do Hino Homérico a Deméter?
Lembras-te de como Hades cavalga para fora da luz do dia
nos seus cavalos imortais no meio de um pandemónio.
Leva a rapariga para um aposento frio lá em baixo
enquanto a mãe dela vagueia pela terra causando dano a tudo o que vive.
Homero narra-o
como a história de um crime contra a mãe.
Porque o crime de uma filha é aceitar as regras de Hades
coisa que ela sabe que nunca vai ser capaz de explicar
e assim despreocupadamente diz
a Deméter:
“Mãe, esta é a história toda.
Com malícia ele depositou
nas minhas mãos a semente de uma romã doce como o mel.
Depois pela força e contra minha vontade obrigou-me a comer.
Conto-te a verdade com pesar.”
Fê-la comer como?[ii]

A semente que Perséfone por fim come, contra sua vontade ou não, é um símbolo de muitas coisas no poema homérico: de núpcias, dolo, posse, juventude, inexperiência, sangue, fertilidade, morte. O gesto de Hades de alimentar Perséfone confirma o casamento mas lembra indirectamente os mortais que na terra estão a morrer de fome enquanto Deméter se recusa a fazer o seu trabalho, a voltar à normalidade. E todo o luto de Deméter está concentrado nesta pequena semente. Na cronologia do hino e na cronologia do desaparecimento de Perséfone, o casamento de Hades e Perséfone não se tinha tornado real e irreversível justamente até ao momento em que lhe é dada a possibilidade de voltar para junto da mãe, que é o momento em que ela come a semente e torna impossível um regresso permanente.

Anne Carson, no entanto, vê no gesto de Hades e na aceitação de Perséfone não o dolo ou o engano, mas cumplicidade, se não aceitação social. A semente exclui Deméter, cria um mundo que só pertence a Hades e Perséfone. Do que sabemos dos casamentos dos gregos antigos, a noiva partilhar uma refeição com o marido, em sua casa, era sinal da sua aceitação da união. Se Hades não enganou Perséfone e se ela sabia o significado da semente quando a aceita (sabia ou não?), então este casamento só existe a partir de um gesto de mútuo entendimento, da tácita negociação da regra que permite a Perséfone passar a existir entre dois mundos.

Este poema que é sobre sementes interroga-nos então sobre outra coisa: quanto daquilo que liga Hades e Perséfone é escolha, quanto disso é deliberado ou irracional, assente na paixão da curiosidade, na ignorância, no medo? Mas o hino não resolve nada disso, estende-nos uma semente, que para Perséfone é um símbolo de uma liberdade comprada (porque a inteligência de Hades é cobarde e canalha como costuma ser cobarde e canalha a inteligência dos patriarcas e a escolha que ele lhe dá não é escolha nenhuma, porque não é exactamente negociada), é também símbolo de desejo e morte e, sobretudo, de inexperiência, do peso de um futuro que ela não entende bem, mas que já não pode ser travado porque alguma coisa na silenciosa Perséfone mudou. A semente da romã é terrível e extraordinária, como as esperanças pouco razoáveis, as paixões tóxicas, e como o que é imprevisível e inesperado, as coisas que mudam a vida de um instante para o outro. Perséfone será a partir daqui aquela deusa que tem o poder formidável de decidir quem pode voltar do mundo dos mortos. Quando Hades, este deus das coisas mais tristes, a viu ainda viva, ele já sabia que ela era capaz disso ou não? E se sim, foi isso que lhe disse que eram iguais e se podiam entender? Mas e o que fazer da mocidade perdida de Perséfone? Da crueldade do inverno sobre a terra?

Então podemos dizer que o Hino Homérico a Deméter é baseado num mito que é sobre aprender a negociar com a dor, a solidão, o aborrecimento da monotonia de um tempo sem esperança, que existe em todas as vidas e não pode ser evitado, sobre deixar tudo morrer para deixar tudo renascer de novo, maniacamente, como acontece com Deméter na sua dor, talvez como aconteça com Perséfone quando ela aceita, ou escolhe, este corte.

4.

Havia outro dos mais jovens dos deuses gregos que tinha uma relação desastrosa com romãs. Numa tradição que não remonta nem a Homero nem a Hesíodo (onde o deus é filho de Zeus e Sémele), Dioniso é filho de Zeus e Perséfone. Nessa versão, o deus é despedaçado por titãs e do sangue dele, derramado no chão, brota uma romãzeira. Normalmente, a árvore e o fruto de Dioniso são outros, a vinha e a uva. Mas fará pelo menos um pouco de sentido que este fruto fosse visto como tendo alguma ligação, mesmo na mais obscura das tradições, ao mais misterioso dos deuses, aquele deus andrógino que conhecia o coração dos homens nos seus impulsos mais irracionais e que, como acontece com Penteu em As Bacantes de Eurípides, os podia levar a ver intoleravelmente um lado de nós próprios que às vezes preferimos negar ou fingir que não existe. Penteu pagará o mais terrível dos preços pela sua negação do mais tresloucado e divertido dos deuses, o deus do desvario. A vingança de Dioniso sobre Penteu, no entanto, não tem nada a ver com romãs. 

5.

Em 1887 foi escavada na Acrópole, não longe do pórtico do templo onde estavam as Cariátides, uma estátua de uma Korê a segurar uma romã. Essa Korê perdeu a cabeça literalmente. O mármore em que ela foi esculpida não veio de longe, de Penteli, ainda na Ática, o que quer dizer que esta Korê não tem uma origem exótica. O corpo elegante, as vestes, o tipo de penteado, colocam a escultura entre estátuas de uma estética que está entre o período pré-clássico e o clássico. Alguém a esculpiu algures no século VI a.C. Há ainda traços de tinta vermelha na romã, que é mais ou menos contemporânea dos templos monumentais que estão em Paestum, à volta dos quais alguém plantou campos de romãs.

D. H. Lawrence, que nasceu dois anos antes de esta estátua ser encontrada, ocupou-se no início da década de 20 de escrever um poema que é sobre encontros com romãs. É também sobre a progressão do desejo, sobre tentativa e erro. O poema desenrola-se em três partes de Itália, na Sicília, não assim tão longe dos tais templos monumentais, em Veneza e na Toscana.

D. H. Lawrence era bom a escrever sobre a natureza e não só por causa do guarda de caça que ele coloca no campo inglês no mais famoso dos seus romances. Um poemário onde se vê isso bem é em Birds, Beasts, Flowers, publicado em 1923. “Pomegranate” tem um tom provocatório, um narrador seguro de si, mas não há nele nem o mais leve traço do tipo de astúcia de Hades, da habilidade para a contemporização e para o jogo, há talvez exactamente o contrário disso, o lado corajoso, um pouco cego e um pouco temerário, de alguém capaz de se apaixonar e se perder de verdade, sem grande medo de errar ou ser julgado. Isto é particularmente notável tendo em conta a moralidade opressiva do contexto em que Lawrence começou a escrever (basta pensar que Lady Chatterley’s Lover acabaria em tribunal):

You tell me I am wrong.
Who are you, who is anybody to tell me I am wrong?
I am not wrong. 

In Syracuse, rock left bare by the viciousness of Greek women,
No doubt you have forgotten the pomegranate trees in flower,
Oh so red, and such a lot of them. 

Whereas at Venice,
Abhorrent, green, slippery city
Whose Doges were old, and had ancient eyes,
In the dense foliage of the inner garden
Pomegranates like bright green stone,
And barbed, barbed with a crown.
Oh, crown of spiked green metal
Actually growing! 

Now, in Tuscany,
Pomegranates to warm your hands at;
And crowns, kingly, generous, tilting crowns
Over the left eyebrow.

Em D. H. Lawrence, Selected Poems, p. 89. Também aqui.

Esta pergunta “Who are you, who is anybody to tell me I am wrong?” é quase da ordem de um primeiro corte, de uma primeira incisão. A recusa impaciente de qualquer coisa. Digamos que essa recusa é a de deixar que outros julguem por ele como escolher as suas romãs, se é que isso é uma escolha e se é que é de romãs que estamos a falar. O que se segue são descrições de encontros com romãs em três paisagens diferentes. Estas romãs evocam e são também elas gente nessas paisagens, das mulheres gregas tão viciosas na Sicília que apagam a memória de romãzeiras em flor até às romãs que na Toscana aquecem as mãos. Podíamos dizer que a estrutura de tentativa e erro que dá ao poema a sua forma lembra um pouco a interacção entre as personagens de O Banquete de Platão, que é o diálogo platónico sobre o amor e a origem da filosofia. O poema vai progredindo, numa linguagem cada vez mais sexual, cada vez mais provocatória, desarmante e cómica em face do que sabemos da moralidade inglesa à data em que D. H. Lawrence escreveu este poema:

And, if you dare, the fissure!

Do you mean to tell me you will see no fissure?
Do you prefer to look on the plain side? 

For all that, the setting suns are open.
The end cracks open with the beginning:
Rosy, tender, glittering within the fissure. 

Do you mean to tell me there should be no fissure?


Mas o final não tem nada de sobranceria, é antes de uma lucidez e vulnerabilidade deslumbrantes:
 

For my part, I prefer my heart to be broken.
It is so lovely, dawn-kaleidoscopic within the crack.

A metáfora nestes dois últimos versos transforma-se em metamorfose: o coração é uma romã, precisa de ser partido para ser aberto. Aceitando isso, lá dentro há um caleidoscópio.  

(6.

Há uma irmandade de atitude entre este poema e outro que não tem nada a ver com romãs, escrito por Auden em 1957, sobre estrelas, “The more loving one,” onde aparece qualquer coisa desta atitude fraturada, contraditória e irresolúvel, que une desejo e decepção, prazer e dor, vida e morte. A aceitação lúcida e lúdica de Auden deste estado de contradição não é nem um pouco menos espetacular do que no poema de Lawrence:  

How should we like it were stars to burn
With a passion for us we could not return?
If equal affection cannot be,
Let the more loving one be me.

Admirer as I think I am
Of stars that do not give a damn,
I cannot, now I see them, say
I missed one terribly all day.) 

 

7.

Odysseas Elytis nasceu em Creta em 1911 e uma das primeiras coisas por que ele se deve ter apaixonado na vida foi a paisagem da Grécia. Esta paisagem é um motivo constante e quase omnipresente nos seus poemas. Às vezes na limpidez exagerada e quase estereotipada das suas descrições da paisagem grega, imagino o mesmo tipo de olhar com que uma poeta que nasceu apenas um pouco mais tarde e noutro país as viu, Sophia.

O primeiro livro de Elytis continha já um dos seus poemas que iam ficar mais famosos, “A romãzeira enlouquecida,” um dos grandes poemas da tradição surrealista grega. Não é bem certo quem é esta romãzeira enlouquecida. Um pouco como as romãs com que D. H. Lawrence se encontra ela é em parte romãzeira e em parte talvez uma rapariga metamorfoseada em romãzeira, como sugere o tradutor inglês de Elytis, Jeffrey Carson. Há qualquer coisa de uma dança extraordinária na descrição desta árvore, com o narrador constantemente a descrever e a perguntar se a romãzeira enlouquecida corresponde àquela descrição.

Proud, full of danger, tell me is it the mad pomegranate tree
Who mid-world breaks the demon's storms with light
Who spreads from end to end the saffron bib of day
Richly embroidered with sown songs, tell me is it the
             mad pomegranate tree
Who hastily unhooks the silks of day?

In petticoats of April first and cicadas of August fifteenth
Tell me, she who plays, she who rages, she who seduces
Casting off from threat its evil black glooms
Pouring intoxicating birds on the sun's bosom

Tell me, she who opens her wings on the breast of things
On the breast of our deep dreams, is it the mad

             pomegranate tree?

Há nesta árvore que tem uma natureza dionisíaca qualquer coisa de irresolúvel, inexplicável, que se traduz na energia que o narrador atribui a todas as coisas que ele pensa que esta árvore pode fazer. Esta personificação da árvore é um subterfúgio retórico que recorda um pouco uma quadra de Pessoa, para as quais as edições críticas não têm uma data definitiva, mas que talvez tenha sido escrito por volta de 1935, em que uma romã é uma metáfora para descrever uma boca (sendo que o mecanismo aqui corre ao contrário, é o elemento humano que é assimilado ao mundo vegetal):

Boca de romã perfeita
Quando a abres p’ra comer,
Que feitiço é que me espreita
Quando ris só de me ver? 

Podia-se dizer que a enumeração das múltiplas possibilidades deste fruto, nos dois poemas, corresponde a um estado de observação apaixonada. Aquelas asas que se abrem na profundidade dos sonhos podem ser um motivo freudiano que lembra Dalí, mas são também a descrição transfigurada – na visão de um pintor, como Elytis também era – da coroa de uma romã. A relação entre riso e romã no poema de Pessoa torna transparente uma coisa que existe em todos estes poemas, o lado um pouco misterioso deste fruto, metáfora que não se quer explicar de diferentes seduções. Isto é particularmente verdade no caso do Hino Homérico: tentar explicar como e porquê Perséfone come aquele fruto é como embater contra uma parede. Vai continuar a ser um dos momentos mais inexplicáveis de toda a história da poesia. Tentar explicá-lo pelo ângulo da mansa aceitação ou da simples coerção parece-me sempre demasiado óbvio e parece-me sempre reduzir o poder de deliberação de Perséfone, uma forma de a simplificar planamente. São leituras possíveis, claro, mas aquele momento no poema continua a ser mais inexplicável do que tudo isso. É um pouco como supor que as éticas dos gregos antigos não tinham as ferramentas para falar da agência complicada de uma rapariga, da sua formidável vontade, se não dos seus complicados poderes de decisão, quando não de escolha. Se pensarmos em Nausícaa, Cassandra, Antígona, Electra, sabemos que isso não é bem verdade. Então?

8.

Então. De vez em quando é preciso apaixonarmo-nos irracionalmente por poemas inexplicáveis, se por mais nada, por causa desse modo de ver em profundidade que deixa uma romã ser uma romã, uma rapariga, a chave que prende a rapariga no mundo dos mortos e a deixa voltar ao mundo dos vivos, que permite que se descreva uma romãzeira como uma coisa que dança ou a anotação da extraordinária cor azul num fruto normalmente vermelho.  

Não sei se há outro modo de ler poemas difíceis que não são solução para nada e que nenhuma paráfrase pode explicar definitivamente se não admitindo à partida que eles são uma espécie de viagem, que deles não tiramos quase mais nada para além do caminho que fazemos com eles. É por isso que ler certos poemas, tanto quanto rever certas paisagens, é capaz de ser uma maneira de resistir ao tempo. 

As últimas romãs em Delfos, Janeiro de 2022


[i] “Hino Homérico a Deméter,” Tradução de José Pedro Moreira em Hinos Homéricos, Introdução de João Diogo Loureiro, Tradução e Notas de Tatiana Faia, Miguel Monteiro, José Pedro Moreira, Imprensa da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2018.

[ii] Anne Carson, “IX. Mas que palavra era?,” A Beleza do Marido: Um ensaio ficcional em 29 Tangos, tradução minha, não edições, Lisboa, 2019.

 

 

Alguns poemas de "Orientações" de Odysseas Elytis

 

Odysseas Elytis,
Tradução de Manuel Resende

Do Egeu

I

O amor
O arquipélago
E a proa da sua espuma
E as gaivotas dos seus sonhos
No seu mais alto mastro o marinheiro drapeja
Uma canção

O amor
A sua canção
E os horizontes da sua viagem
E o eco da sua saudade
No seu mais húmido rochedo a noiva espera
Um barco

O amor
O seu barco
E a despreocupação dos seus ventos de Agosto
E o estai da sua esperança
No seu mais leve ondular uma ilha embala
A chegada.

CLIMA DA AUSÊNCIA

I

Todas as nuvens da terra se confessam
E um penar meu ocupou-lhes o lugar

E quando nos cabelos entristeceu
Impenitente a mão

Atei¬ me num nó de dor.

II

A hora entardeceu esquecida
Sem memória
Com a sua árvore muda
Para os lados do mar
Entardeceu esquecida
Sem bater de asas
Com a face imóvel
Para os lados do mar
Entardeceu
Sem amor
A boca inflexível
Para os lados do mar

E eu - mergulhado na Serenidade que seduzi.

III

Tarde
E a sua imperial solidão
E a ternura dos seus ventos
E o seu arriscado esplendor
Nada que chegue Nada
Que parta

Todas as faces nuas

E por sentimento um cristal.

SEGUNDA NATUREZA

I

Sorriso! A sua princesa queria
Ter nascido no reinado das rosas!

II

O tempo é uma sombra rápida de pássaros
O meu olhar escancarado entre as suas imagens

Em torno do verdíssimo êxito das folhas
As borboletas vivem grandes aventuras

Enquanto a inocência
Despe a sua última mentira

Doce aventura Doce
A Vida.

III

Epigrama

Antes dos meus olhos eras luz
Antes do Amor amor
E quando o beijo te tocou foste
Mulher.


Orientações (Em Grego, Prosanatolismoi) é o primeiro livro de Odysseas Elytis e foi publicado em Atenas em 1939. Em epígrafe ao livro lê-se um verso de Rimbaud, Départ dans l'affection et le bruit neufs. 

Canto heróico e fúnebre para o alferes caído na Albânia

Odysseas Elytis

Tradução de Manuel Resende

(Fragmento)

I

Ali onde primeiro habitava o sol
Onde com os olhos de uma virgem se abriu o tempo
Quando do sacudir da amendoeira se enchia de neve o vento
E subiam ao cimo das ervas os cavaleiros

Ali onde pisava o casco de um plátano esguio
E uma bandeira crepitava no alto terra e água
Onde nenhuma arma pesava no ombro
Mas todo o cansaço do céu
O mundo inteiro brilhava como uma gota de água
De manhã, aos pés do monte

Agora, como dum soluço de deus alastra uma sombra.

Agora, a angústia recurvada com mãos ossudas
Toma e apaga uma a uma as flores por sobre si;
E nas ravinas onde as águas pararam
De fome de alegria jazem as canções;

Monges pedras de frios cabelos
Partem em silêncio o pão do ermo.

O inverno penetra até ao cérebro. Algo de mau
Se vai acender. Embravece a crina do monte.

Os abutres repartem lá em cima as migalhas do céu.

II

Agora sobe nas águas turvas uma agitação

O vento preso nas ramagens
Sopra ao longe a sua poeira
Os frutos cospem as suas sementes
A terra esconde as suas pedras
O medo escava uma mina e penetra correndo
No momento em que na mata dos céus
O uivar de uma nuvem-loba
Estende pela pele do campo uma tempestade de arrepios
E depois espalha espalha neve neve impiedosa
E depois corre enfurecida nas planícies em jejum
E depois põe os homens a saudar-se:
Fogo ou faca!

E para os que com fogo ou faca se moviam
Vai-se o mal acender aqui. Que não desespere a cruz
Mas, as violetas, que rezem longe dela.

III

Para eles a noite era um dia mais amargo
Fundiam o ferro, mascavam a terra
O Deus deles cheirava a pólvora e a pele de mula.

Cada trovão era uma morte a cavalo no vento
Cada trovão um homem a sorrir diante
Da morte - e que diga o destino o que quiser.

Súbito o momento desviou-se do alvo e ganhou coragem
Atirou cacos de vidro em plena face do sol
Lunetas, telémetros, morteiros, ficaram de cera!

Como o vento se rasga com a facilidade da tela!
Como as pedras se abrem com a facilidade de pulmões!
O capacete rolou do lado esquerdo...

Na terra apenas um momento estremeceram as raízes
Depois desfez-se o fumo e o dia foi timidamente
Enganar o nevoeiro com ardis

Mas a noite ergueu-se como víbora pisada
Apenas se deteve um pouco nos dentes a morte -
E depois irrompeu até às suas unhas lívidas.

IV

Jaz agora sobre o manto chamuscado
Com um vento parado nos cabelos calmos
Com um raminho de esquecimento no ouvido esquerdo
Parece um jardim que os pássaros abandonaram
Parece uma canção que amordaçaram no escuro
Parece um relógio de anjo que parou
Mal as pestanas disseram "olá, gente"
E o espanto se petrificou...

Jaz sobre o manto chamuscado.
Séculos negros ali em volta
Uivam com esqueletos de cães o terrível silêncio
E as horas que se mudaram em pombas de pedra
Escutam atentas;
Mas o riso ardeu, mas a terra ensurdeceu,
Mas ninguém ouviu o mais derradeiro grito
O mundo todo se esvaziou com o derradeiro grito.

Sob os cinco cedros
E sem outros círios
Jaz sobre o chamuscado manto;
Vazio o capacete, lamacento o sangue,
No flanco o braço meio acabado
E entre as pálpebras -
Pequeno pequeno poço, marca do destino
Pequeno pequeno poço negro-rubro
Poço onde esfria a memória!

Ah não fiteis não fiteis o ponto -
O ponto por onde se foi a vida. Não digais como
Não digais como subiu muito alto o fumo do sonho
Foi assim então que um momento. Foi assim então
Assim então que um momento abandonou o outro,
E o sol eterno assim de súbito o mundo!

V
Sol não eras eterno?
Pássaro não eras o momento de alegria que não descansa?
Claridade não eras a ousadia da nuvem?
E tu jardim teatro das flores
E tu raiz flauta encrespada da magnólia!

Assim quando estremece a árvore na chuva
E o corpo vazio enegrece com o destino
E um louco se fustiga com a neve
E os dois olhos vão para chorar -
Porquê, pergunta a águia, onde está esse bravo?
E todas as águias perguntam onde estará o bravo!
Porquê, pergunta suspirando a mãe, onde está o meu filho?
E todas as mães perguntam onde estará o rapaz!
Porquê, pergunta o companheiro, onde está o meu irmão?
E todos os companheiros perguntam onde estará o benjamim!
Agarram a neve, e a febre queima
Agarram a mão, e está de gelo,
Vão p'ra comer pão, e o pão escorre sangue
Fitam o céu ao longe, e o céu tinge-se de negro
Porquê porquê porquê porque é que não aquece a morte
Porquê um pão tão sacrílego
Porquê este céu assim, ali onde habitava o sol!
 


A versão que aqui se apresenta foi originalmente publicada por Manuel Resende num número especial da revista Nova Renascença dedicado a traduções de poesia.

Odysseas Elytis (1911-1996, Prémio Nobel da Literatura, 1979). "Lamento heróico e fúnebre para o alferes caído na Albânia" foi publicado originalmente em Atenas, em 1945. Numa nota à edição inglesa das obras completas (Carson & Sarris) pode ler-se o excerto de uma carta de Elytis a Kimon Friar, em que o poeta alude à origem do poema: "The virtues I found embodied and living in my comrades formed in synthesis a brave young man of heroic stature, one whom I saw in every period of our history. They had killed him a thousand times, and a thousand times he had sprung up again, breathing and alive. He was no doubt the measure of our civilization, compounded of his love not of death but of life. It was with his love of Freedom that he recreated life out of death". 

A NUVEM

Odysséas Elytis
Em Maria Nefeli
Tradução: Manuel Resende

Eu vivo dia a dia – que o futuro, não o diviso.
C’ uma mão amarroto o dinheiro, com outra o aliso. 

Vês, as armas têm de falar nos nossos tempos caóticos,
’Té temos de dizer amém aos «ideais patrióticos». 

Que me fitas tu escriba que farda nunca vi usar?
olha que fazer dinheiro também é arte militar.

Não me venhas com insónias e amargos versos vários
ou pichar paredes com slogans revolucionários.

 Para os outros, um intelectual é que hás-de sempre ser
e só eu te amo: refém dos meus sonhos hás-de viver. 

E se em verdade o amor é como dizem «comum divisor»
eu hei­‑de ser Maria Neféli e tu das nuvens o Empilhador­