DJ Enright, O Rebelde

Tradução de Ricardo Marques

Quando toda a gente tem cabelo curto,
O rebelde deixa o seu cabelo crescer.

Quando toda a gente tem cabelo comprido,
O rebelde usa o cabelo curto.

Quando todos falam na sala de aula,
O rebelde não diz uma palavra.

Quando ninguém fala na sala de aula,
O rebelde cria um motim.

Quando toda a gente usa um uniforme,
O rebelde veste-se com roupas exóticas.

Quando toda a gente usa roupas exóticas,
O rebelde veste-se com sobriedade.

Na companhia de amantes de cães,
O rebelde expressa preferência por gatos.

Na companhia de amantes de gatos,
O rebelde fala bem dos cães.

Quando toda a gente elogia o sol,
O rebelde discute a necessidade de chuva.

Quando todos estão a saudar a chuva,
O rebelde lamenta a ausência de sol.

Quando todos vão para uma reunião,
O rebelde fica em casa e lê um livro.

Quando toda a gente fica em casa e lê um livro,
O rebelde vai para uma reunião.

Quando todos dizem, sim, por favor,
O rebelde diz: Não, obrigado.

Quando toda a gente diz, não, obrigado,
O rebelde diz: Sim, por favor.

É muito bom existirem rebeldes.
Ser um deles pode não ser muito bom.


THE REBEL

When everybody has short hair,
The rebel lets his hair grow long.

When everybody has long hair,
The rebel cuts his hair short.

When everybody talks during the lesson,
The rebel doesn’t say a word.

When nobody talks during the lesson,
The rebel creates a disturbance.

When everybody wears a uniform,
The rebel dresses in fantastic clothes.

When everybody wears fantastic clothes,
The rebel dresses soberly.

In the company of dog lovers,
The rebel expresses a preference for cats.

In the company of cat lovers,
The rebel puts in a good word for dogs.

When everybody is praising the sun,
The rebel remarks on the need for rain.

When everybody is greeting the rain,
The rebel regrets the absence of sun.

When everybody goes to the meeting,
The rebel stays at home and reads a book.

When everybody stays at home and reads a book,
The rebel goes to the meeting.

When everybody says, Yes please,
The rebel says, No thank you.

When everybody says, No thank you,
The rebel says, Yes please.

It is very good that we have rebels.
You may not find it very good to be one.

D. J. Enright (1974, s.l.)

D.J. Enright, "Poeta pensando no que faz"

Tradução de Ricardo Marques

- Uma espécie de fome extra,
menos fácil de apaziguar que outras
- Ou então uma orelha extra

Ouvindo um telefone,
que pode ou não tocar
numa sala distante

- Ou então o medo de fantasmas
e medo que os fantasmas não apareçam,
Superstição dupla, medo duplo

- Perder, perder e perder
e logo ter, e ainda saber
que se deve perder e perder de novo

- Quase soa como o amor,
o amor numa fase inicial,
Essa coisa de que falas

- (mas a Beleza - não,
Problemas de lazer - não,
a Maturidade - dificilmente)

- E isto? Apenas metáforas
descrevendo metáforas descrevendo - o quê?
O círculo excêntrico dos teus anos.


POET WONDERING WHAT HE IS UP TO

- A sort of extra hunger,
Less easy to assuage than some
- Or else an extra ear

Listening for a telephone,
which might or might not ring
In a distant room

- Or else a fear of ghosts
And fear lest ghosts might not appear,
Double superstition, double fear

- To miss and miss and miss,
And then to have, and still to know
That you must miss and miss anew

- It almost sounds like love,
Love in an early stage,
The thing you're talking of

- (but Beauty - no,
Problems of Leisure - no,
Maturity - hardly so)

- And this? Just metaphors
Describing metaphors describing - what?
The eccentric circle of your years.

(in The Old Adam, 1965)

Livros de 2020: José Pedro Moreira

“Outra lista dos melhores do ano?” dirá o senhor leitor. Bem, mais ou menos, mas nem por isso. As demais listas dos melhores livros do ano são destiladas por críticos sábios, que lêem todos os livros publicados nesse ano, e têm o discernimento para eleger o que merece ser salvo para a posteridade. As nossas listas são antes exercícios de contabilidade pessoal, que partilhamos entre nós e convosco. Este ano coube-me a mim o salvo de abertura. Cá fica a lista dos livros que mais gostei de ler em 2020.

Tom Bissell, Extra Lives: Why videogames matter (2010)

 Tom Bissell (1974) é um autor premiado, com livros sobre política, religião, cinema, um livro de viagens, um livro de contos, e uma série de artigos em revistas reputadas. Tom Bissell é também alguém que adora videojogos, que escreveu argumentos para videojogos, e que passou dois anos a fazer pouco mais do que jogar Grand Theft Auto IV e snifar cocaína, como conta neste ensaio no The Observer, que é também o texto que encerra Extra Lives. Uma defesa da relevância cultural e artística de videojogos; mas também uma série de crónicas sobre alguns dos seus jogos preferidos e sobre as experiências únicas que só videojogos proporcionam.

 

 Orlando Figes, The Europeans: Three Lives and the Making of a Cosmopolitan Culture (2020)

 Ivan Turgueniev, Pauline Viardot, uma das maiores cantoras de ópera do seu tempo, e amante de Turgueniev, e Louis Viardot, marido de Pauline, agente cultural e político, tradutor, memorialista, numa viagem espiritual que atravessa a Europa. Outras personagens nesta viagem: George Sand, Berlioz, Dickens, Wagner, Saint-Saëns, Gounod, Chopin, Flaubert, Massenet, Meyerbeer, Rossini, Liszt, Delacroix, Tolstoi, Dostoievski, e muitos mais. Um livro que prova que o único meio de locomoção civilizado é o comboio.

 A descoberta dos livros de Figes trouxe-me imensa alegria este ano. O seu conhecimento histórico é acompanhada por uma mestria narrativa capaz de evocar pessoas e lugares com enorme detalhe e precisão. Dele li também este ano Natasha’s Dance, uma história cultural da Rússia, e Whispers, que acompanha uma série de famílias ao longo da União Soviética, ambos livros excelentes.

 

 Fernando Guerreiro, Ventos Borrascosos (2020)

 Uma narrativa em verso em torno de Emily Brontë, um ensaio sobre o ofício poético que retoma Lucrécio, uma dramatização do devir da existência. Um dos livros de poesia mais estranhos escritos em português na última década.

 Nunca tive muita paciência para quem se queixa dos críticos em Portugal, sobretudo porque este nem sempre é um lamento desinteressado. Temos a crítica que merecemos. Ainda assim, é difícil não ficarmos escandalizados com o silêncio, quando somos confrontados com um livro verdadeiramente único e importante.

 

Sid Lowe, Fear and Loathing in La Liga: Barcelona vs Real Madrid (2013)

 Eu adoro futebol. A intensidade do meu amor pelo jogo tornou-se dolorosamente clara quando as ligas europeias foram interrompidas, e eu dei por mim, como o amante abandonado examina velhas cartas de amor, a ler livro atrás de livro sobre futebol. Livros que tinha na minha lista de leituras há anos mas para os quais nunca tinha achado tempo, como a autobiografia de Johan Cruyff, Inverting the Pyramid de Jonathan Wilson, uma história das evoluções tácticas, ou The Ball is Round de David Goldblatt, foram lidos este ano. Todos são bons livros (se bem que o de Jonathan Wilson custou um pouco a ler), mas o que mais prazer me deu foi Fear and Loathing in La Liga, de Sid Lowe, uma história da rivalidade entre Barcelona e Real Madrid, e, implicitamente, uma história dos dois clubes.

 Sid Lowe é um dos contribuidores do The Guardian, cuja secção de futebol reúne alguma da melhor prosa escrita sobre o jogo hoje em dia. As crónicas semanais de Barney Ronay, Jonathan Wilson, Jonathan Liew e do próprio Sid Lowe tornaram-se leitura obrigatória para mim. E recomendo também Football Weekly, o podcast de futebol do The Guardian, em que estes autores regularmente participam.

 

Edwin Morgan, Última Mensagem - 100 poemas de Edwin Morgan (seleção por João Concha e Ricardo Marques, tradução de Ricardo Marques)

 A Fiona, uma amiga de Edimburgo, anda a tentar convencer-me a ler Morgan há anos. Ela gosta mesmo de Morgan, inclusive conheceu-o e escreveu uma tese sobre ele. O seu evangelismo morganiano levou-a a emprestar-me alguns dos seus exemplares da obra de Morgan (autografados). Há anos que acumulam pó na estante. A minha falta começou a ser reparada este ano. Livros feitos por amigos são priorizados na minha lista de leitura, e este é um livro editado (excelentemente) por um amigo e traduzido (excelentemente) por outro. Duas conclusões: Morgan é um grande poeta e eu sou um idiota por não o ter lido mais cedo. Perdão, Fiona. Obrigado, João Concha e Ricardo Marques.

 

Timothy Snyder, The Road to Unfreedom (2018)

 Um estudo sobre as ideias e realidade histórica que formaram a Rússia de Putin, o centro do movimento anti-liberal moderno, que nos deu prendas encantadoras como Trump e Brexit.

No Silêncio...

“todos iguais a todos. Quando”

- Bernardo Pinto de Almeida

“Isto é excesso de tempo livre!”

- Raul Milhafre

Caspar Friedrich - “View of Arkona with rising moon and nets”, 1803.