Em busca da Brasiliana

O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, 2012

Na nossa mídia de massa, Brasil e brasileiros são retratados por três lentes principais, todas elas irremediavelmente distorcidas. Esse triclope midiático inclui grande parte -- ao menos, a parte que mais aparece -- da televisão, do cinema, da literatura mais abrangente e até do imenso Instagram coletivo que dá corpo à hashtag #Brasil. São elas: a lente do estrangeiro, a lente para o estrangeiro, e a lente que tem como fotógrafo e fotografado essa coletividade que chamamos de nós mesmos (na Europa, se chamaria povo. No Brasil, não).

Sem dúvida, essa etnografia discursiva e seus resultados atrofiados são amplamente conhecidos e criticados. Contudo, meu ponto é exatamente um contraponto: não quero falar da exploração daquele que é falado, mas problematizar a dificuldade que do falante (artista, jornalista, cineasta, escritor, e, em grande medida, leitor). A dificuldade que esse falante brasileiro tem de enxergar a si mesmo. Conhecendo quem discursa, talvez conheçamos melhor as falhas de todos os seus discursos.

Quando se trata da lente do estrangeiro sobre o Brasil, enxergam-se os estereótipos, e pouco além. Sabemos disso.O futebol, o Carnaval carioca, a praia de Copacabana, a partida no Maracanã, sa favelas, a Amazônia. Até pouco tempo, a lente do estrangeiro era um cartão postal de 1990, daqueles que vemos em bancas de jornal. Araras, bundas de fora, Brush Script. Hoje, temos mais nuances. Com megaeventos de um lado e a Economist do outro, não significa que estejamos menos estereotipados.

Mas a lente se inverte, na segunda distorção, também muito debatida: o olhar é nosso, mas feito para o estrangeiro. O porta-voz é o artista (o cineasta, o fotógrafo, o autor) e o tema é, por excelência, o despossuído. Prevalece a jornada etnográfica à alteridade: excursões à favela, safaris na periferia, e outras aventuras que conectam momentaneamente mitos e leitores, e que, no fim, deixam as partes mais distantes do que estavam. Autor nenhum chamaria seu personagem para um jantarzinho, num sábado.

Quando finalmente nos retratamos para nós mesmos, facilmente viramos uma telenovela. Só gente fina, com os problemas mais eruditos. Não tem tio de bermuda e chinela, não tem aniversário de criança, ninguém leva sobra de almoço para casa ou o som do Domingão do Faustão -- quando a vida real aparece, é sob a lente transtornada de alguma alteridade sobre nós; um Baudelaire anacrônico, um Proust latino, um transplante qualquer lamentando esse incapacitante desgosto existencial sobre a vida prosaica. Em suma, eis a tragédia: o lamento não é pelo que somos, mas pelo que não somos. Há um problema de autenticidade.

E o problema se aprofunda: porque as circunstâncias do Brasil não permitem a mesma joie de vivre de outras sociedades. Mas tomamos esse direito, mesmo assim. Somos um comercial dirigido por David Lynch: o casal caucasiano atravessa o calor do concreto, apaixonado, pisoteando o rosto da gente ensanguentada, abraçando a bolsa Louis Vuitton, por toda a eternidade. Somem no horizonte numa SUV. Troca-se o canal. O Brasil agora é louro, numa Hollywood-pesadelo: somos a família ariana num McDia feliz, na Berlim de 1944.

Nessa face oculta do “nós” brasileiro, nós, detentores do discurso, ficamos ironicamente sub-representados, entre o complexo de superioridade e inferioridade. É aí que mora a menos importante das tragédias, mas aquela que fala a quem lê e escreve. Prova-se nossa incapacidade de autorretrato. Excursionamos de novo. Não sossegamos em nossa própria companhia. Não suportamos nossa própria companhia.

Não escolhemos amar o desvirtuoso e idiossincrático estado das coisas, seus defeitos, seus disparates, sua estética tacanha. Poderíamos odiar o estado das coisas e amar a vida que se desenvolve ali.Nem que fosse pelo fato inexorável de ser a unica vida realmente autêntica nos dada. Mas odiamos como os outros nos odeiam. Queremos ser hipsters, queremos Paris, queremos Budapeste. Queremos Starbucks, como se fosse Los Angeles. Nosso grau zero de escrita é uma imprecisão geográfica. Consumimos um Brazil importado, paradoxalmente, made in Brazil. Há só aquilo que diz: não sou como os outros, nem como a mim mesmo, porque eu mesmo sou sem-graça.

 

Uma questão estética

Para ficar no cinema (que é uma comunicação de maior abrangência que a literatura, especialmente hoje), afirmo que devo ter visto o Texas e seus detalhes muito mais vezes do que vi o Ceará. À parte de Manhattan e da California, os americanos também retratam o seu sertão. Na mídia de massa americana, pode-se dizer que mulheres são sub-representadas, que latinos são sub-representados, que os negros também o são. Mas os caipiras, jamais. Esses têm a sua tribuna garantida, como parte integrante do que é ser americano. É através deles, e das suas variadas estéticas, comumente tidas como tacanhas, que surge a Americana. A escola estética do cotidiano yankee traz o passado e atualiza o presente. Nostalgia, folclore e a vida prosaica acabam retratados, criticados e, por fim, celebrados e cristalizados na composição dos inúmeros retratos da América.

Se a Americana, um dia, teve como representação maior as pinturas de Hopper (as cenas mais cotidianas, o casal na varanda, o diner na madrugada, a mulher solitária no café), entendê-la como “Hopper”, hoje, seria apenas nostalgia. Mas o cinema trata de atualizá-la:, a Nova Iorque de Faça a coisa certa ou de Woody Allen, o ônibus escolar de Forrest Gump, o neon à beira da estrada de Paris, Texas, o filme n’A Última Sessão de Cinema, o inverno de Fargo, a reunião de boliche de Lebowski, o uniforme de garçonete e o Thunderbird de Thelma & Louise, o diner de Pumpkin e Honey Bunny, as férias e o neogangsterismo das Spring Breakers, a banheira e o spaghetti de Gummo, o sofá de veludo de Napoleon Dynamite. E os matizes variam entre si, mesmo quando representam objetos semelhantes. Enquanto a marginalidade de Wim Wenders é bela, a de Harmony Corine é deformada; enquanto Zemeckis constrói anti-herois carismáticos, os irmãos Cohen conseguem fazê-los desprezíveis. Os exemplos são muitos.

A mesma abundância, mesmo que fosse proporcional, nunca se verificou no Brasil. Nem se somássemos televisão, literatura, cinema e teatro. Continuo no cinema, e pergunto qual é a Brasiliana que se forma: A Falsa loura de Carlão? O Cheiro do ralo de Dhalia/Aquino? Os prédios sufocantes d’O som ao redor? O mercadinho de Trabalhar cansa? Os exemplos são rarefeitos, embora tragam novo fôlego para essa apreciação.

Não se trata, apenas, de apreciar os casos esparsos, mas de unificar uma estética de referência à qual que podemos recorrer. Algo que faça poder existir, algo que tenha uma entrada na Wikipédia. Abre-se a pergunta: o que poderia vir a ser, então, uma estética “Brasiliana”? Que artefatos, que maneirismos, que herança cultural ela detém? A ironia na dificuldade de se encontrar uma resposta, já tão tardia, é que para frui-la basta olhar ao redor.