O detective-projeccionista: sobre 'Imagens Roubadas' de Fernando Guerreiro

Buster Keaton - Sherlock Jnr (1924) dream.jpg

A revisão de certos filmes não tem apenas como consequência a descoberta do que ainda não víramos. Ainda sob o seu efeito, acontece-nos encarar a mecânica do mundo à luz do que neles acontece, e compreender que parte importante do que fazemos e conhecemos nas nossas vidas é já por eles anunciada. O acaso de voltar a Sherlock Jr. (1924) de Buster Keaton, pouco depois de terminar a leitura de Imagens Roubadas, motivou um desses episódios de reconhecimento.

À semelhança da personagem daquele filme, Fernando Guerreiro poderia também ser descrito como um detective-projeccionista: o que parece orientar o seu trabalho é, por um lado, o desejo de decifrar pela escrita a verdade sobre as imagens que analisa, percebendo qual é a sua natureza e como é que estas agem sobre nós; e, por outro, o interesse na capacidade que essa escrita tem de criar ela própria as suas imagens. Considerando esse intuito, faz todo o sentido que o livro tenha a peculiaridade de ter como subtítulo a designação “um poema por imagens” (que, curiosamente, atesta a coerência da obra do autor ao evocar um livro anterior que se apresentava como “um romance por ideias”); como faz também sentido que o tipo de cinema sobre o qual incide com mais fulgor seja aquele que porventura obriga de modo mais imediato a uma tomada de posição quanto ao destino das imagens.

Poder-se-ia então sintetizar Imagens Roubadas junto de quem ainda não o leu como uma investigação atenta das “mutações” e “metamorfoses” – termos omnipresentes na escrita de Guerreiro – que a concepção de imagem tem vindo a sofrer ao longo da História do Cinema. Para quem conhecer bem o horizonte estético e teórico do autor, não será surpreendente que esse processo, ao contrário do que geralmente acontece, seja encarado de maneira bastante positiva. Ainda na secção inicial do livro, “Grãos de Pólen”, que funciona como declaração de intenções acerca do pensamento que o leitor encontrará exposto nos ensaios que se lhe seguem, Guerreiro, no estilo fortemente idiossincrático que o caracteriza, faz uma observação reveladora sobre a questão. No seu entender, é pouco sensato criticar “a «contaminação» do Cinema pelos novos media como um fenómeno negativo (desestruturador) ou letal”; esta deverá antes ser vista como “o problema mais instante da teoria na fase «crisálida» (larvar) da mutação em curso” (p. 21). O excerto é emblemático da relação de Guerreiro com o cinema, e torna explícita a sua constante determinação em emendar certas ideias feitas e valorizar a emergência daquilo que, poucas páginas depois, baptizará como um “momento Cronenberg das artes” (p. 46). O realizador é, aliás, um dos mais convocados ao longo de Imagens Roubadas, e não estaria errado ler muitas das hipóteses avançadas no livro à luz da sua figura. É com base neste arcaboiço crítico que Guerreiro consegue defender com perspicácia obras por vezes vilipendiadas – veja-se, como exemplo paradigmático disso mesmo, os seus comentários sobre Psycho (1998) de Gus Van Sant no ensaio “Motéis, drive-ins e piscinas”.

Talvez o maior elogio que se possa fazer a este livro e ao seu autor seja dizer que, mesmo nos casos em que não estamos de acordo ou inteiramente seguros sobre alguma ideia apresentada, lê-lo é uma actividade que nos impele a questionar e a robustecer os nossos próprios juízos sobre os filmes discutidos. Se já não é isto que esperamos da crítica, é apenas prova de que estamos mal-habituados; mas livros como Imagens Roubadas ajudam a corrigir a situação. O mais interessante, contudo, é que aquilo que ao início poderia ser entendido apenas como o que Guerreiro pensa sobre o cinema transborda também para a sua escrita. A receptividade à coexistência de diferentes registos e tipos de arte ajuda, por exemplo, a explicar o seu ecletismo. Em “The Hollow Men”, usa-se o poema homónimo de T.S. Eliot para se falar de War of the Worlds (2005) de Steven Spielberg; e em “Poor Little Rich Girl (1965)”, são as ideias de Jean Epstein que esclarecem o filme de Andy Warhol. Nestes e em muitos outros ensaios, as relações sugeridas são arriscadas, mas funcionam sempre. O que importa sublinhar, no entanto, é que Guerreiro não escreve distanciado ou removido daquilo que fala, nem se limita a fazer considerações meramente estéticas sobre um domínio que conhece bem: está completamente imerso nesse domínio, e há uma consonância tal entre o que escreve e o seu ofício de viver que se torna claro, em Imagens Roubadas, que para o autor não seria concebível estabelecer uma separação entre o cinema e a vida.

O cinema não só dá a Guerreiro as ferramentas para descrever adequadamente o mundo como se confunde com ele; já não é só o que se passa quando se entra numa sala para ver um filme, mas o principal elemento regulador da nossa relação com a realidade. Esta harmonia entre um programa estético e um projecto de vida, evidente em muitos passos do livro, talvez encontre a sua melhor expressão em “A passagem dos fantasmas”: é aí que se refere um “real sempre engrandecido” (p. 101) pela presença dos espectros cinematográficos. A experiência do cinema não seria assim um evento isolado e delimitável, mas um acontecimento duradouro e com efeitos concretos sobre a sua existência. Para Fernando Guerreiro, e talvez para todas as pessoas que vêem no cinema parte necessária daquilo que são, roubar imagens parece ser um modo de existir.

O drama dos objectos: notas sobre o "close-up" em Ozu

Quando Béla Balázs afirma em Theory of the Film — Character and Growth of a New Art que o close-up tem a capacidade de revelar «a vida escondida das pequenas coisas», desenvolve uma tese crucial para um entendimento esclarecido do conceito de «microdrama» e das suas implicações formais e estéticas no cinema. Para Balázs, estas serão tanto mais dinâmicas quanto mais amplo for o espaço fílmico que lhe é concedido pelo cineasta. Reflectir sobre estas ideias aplicando-as em particular aos filmes de Yasujiro Ozu pode revelar-se um exercício com conclusões interessantes, já que um dos aspectos que mais cativa o espectador da sua obra consiste na observação do modo como estas «pequenas coisas» são enquadradas cosmicamente.

 

Ozu é apontado pelos técnicos e actores com quem trabalhou frequentemente pelo carácter atento e pelo empenho — tocando, por vezes, num perfeccionismo desmesurado — em controlar todos os detalhes da mise en scène, podendo assim potenciar ao máximo a amplitude emocionalmente contida dos seus planos numa prática cinematográfica em que a imagem é dada ao nível do essencial e conforme uma justa medida. O equilíbrio passa a dominar a construção do plano, afastando a possibilidade da representação do «nervosismo moderno» (Simmel) e a demonstração efervescente dos sentimentos das personagens. Neste sentido, o uso do close-up é indispensável e assume uma função dupla na transmissão visual do conflito das vidas retratadas na película: por um lado, a suspensão da narrativa e o corte espácio-temporal; por outro, a concretização da imagem-afecto de Deleuze. As dificuldades e anseios com que as personagens de Ozu se deparam situam-se invariavelmente na dimensão do banal e do quotidiano, interessando-se os filmes pelos problemas do homem comum (naquilo que posteriormente se veio a designar por shomingeki) e pela forma como este lida com situações universais, que têm também lugar na vida do espectador. Mas o objectivo realiza-se não só pela atenção dada à vida das pessoas, como também pela visão da vida dos objectos. Assim, pode-se falar num cinema descritivo e contemplativo em que Ozu se serve do close-up para trabalhar o conceito de «rostificação das coisas» ou de microfisiognomia (Balázs).

 

Esta utilização das propriedades do plano que têm o poder de despertar a eloquência material parece atingir o seu apogeu no final de Banshun (1949). O filme é a primeira inscrição no conjunto de filmes vulgarmente designado por Trilogia de Noriko, título que faz referência ao nome partilhado pelas personagens interpretadas por Setsuko Hara nas três obras. Embora Ozu nunca tenha explicitamente declarado que estas pudessem ser encaradas enquanto complementares, é indubitável que todas elas representam variações sobre temas constantemente trabalhados e aprofundados pelo próprio: o casamento, o consequente abandono da casa da família por parte de uma filha e as alterações provocadas por essa situação. Em Banshun (Primavera Tardia, na tradução portuguesa), o patriarca, já viúvo, insiste no casamento de Noriko, persuadido por uma tia notoriamente preocupada com a aparência e reputação da família, já que ainda se enquadra no tradicional sistema japonês. Contra a sua vontade, Noriko fá-lo e a última sequência corresponde à entrada do pai na casa vazia, exemplificando as «imagens como entidades» (Deleuze). Depois do plano geral da personagem isolada no centro do enquadramento, e sem outra forma de iluminação para lá do candeeiro (produzindo um subtil chiaroscuro), a acção de descascar uma maçã é filmada em close-up. Nesse momento, a percepção de que a vida se alterou radicalmente dá origem a uma tristeza que se reflecte visualmente na suspensão da tarefa: a faca deixa de se mover em torno do fruto. A tragédia é dada pelo sentido que a imagem encerra em si própria, ao invés de uma observação geral dos acontecimentos. «Não uma imagem justa, mas justamente uma imagem», para trazer Godard ao debate.

 

A forma, encarada como banal e completamente ignorada no plano da vida, adquire um novo significado no plano da arte, sendo mais um dos exemplos que dá razão ao que Wilde afirmava. Assim, Ozu materializa a visão de Balázs do «cinema revelador» num momento genesíaco em que o mundo é realmente descoberto pela primeira vez. Cumpre-se o propósito do close-up enquanto elemento de um trabalho de personificação dos objectos e de «visibilização do invisível». É curioso notar, no campo da invisibilidade, que num filme em que a ritualidade e as festividades desempenham um papel tão importante — recorde-se a maravilhosa cena de ciúmes de Noriko durante o Noh — a elipse é também aplicada à cerimónia nupcial, tornando-se esta num vazio narrativo que não pode ser mostrado. Mais do que a «produção de emoção conseguida através de uma resistência à emoção» (Bresson nas Notas sobre o Cinematógrafo), parece ser a ocultação de um sentimento que pertence apenas aos membros daquela família: não temos o direito de nos envolver ou interferir no curso da renovação associada à passagem das estações. A ideia é ampliada e complexificada em Bakushû (1951), em que a instituição casamento já não encontra eco nas jovens despreocupadas e seduzidas pelo modo de vida ocidental; o cinema de Ozu é também espelho das transformações histórico-culturais do Japão. Ao contrário do que sucede em Banshun, neste filme a jovem não se casa com o par proposto pela família, mas com alguém que, aparentemente, foi escolha sua. Se Noriko fica em melhor estado com esta decisão, o mesmo não se pode dizer do restante núcleo familiar, que mesmo assim sofre mas aceita.

 

Para concluir, e ainda sobre as características da imagem-afecto, Noël Burch comenta em To the Distant Observer: Form and Meaning in the Japanese Cinema que os close-ups que focam os objectos em Ozu traduzem uma ideia assertiva de que «o Homem não se encontra no centro do universo». Deste modo, a tragédia do pai é também a tragédia dos objectos e dos espaços sem a presença de Noriko. Por intermédio da prosopopeia, Ozu dá voz às coisas (da mesma forma que Francis Ponge o faz na poesia?) e integra todos os elementos da realidade num drama duplamente minimalista, por se dar do lado das coisas e pela inexistência de explosões do pathos no seu cinema: mesmo a desilusão face à própria existência, que se confessa em 1953 em Tôkiô Monogatari («Não é desapontante, a vida?»), é aceite de forma estóica. Lições de vida e lições de cinema.

Costa e Kiarostami: o respeito pelo real

por Tiago J. Silva

Estabelecer pontos de contacto e factores de aproximação entre as obras de Abbas Kiarostami e Pedro Costa é tarefa que ocupa não só os críticos mas também, e não raramente, os próprios realizadores, que tecem considerações sobre estas possíveis inter-relações. A movimentação num universo cinematográfico que partilha inúmeras semelhanças éticas e estéticas não passa despercebida aos programadores de cinema mais atentos — recorde-se, por exemplo, a certeira rentrée da Cinemateca Portuguesa em Setembro de 2013, que conjugou o lançamento do livro O Caderno de Casa de Lava com a antestreia nacional de Like Someone in Love, projectando em conjunto ambos os filmes. Enquanto Costa é um dos mais proeminentes herdeiros de um projecto ambicioso de docuficção fortemente influenciado pelos ensinamentos de António Reis, Kiarostami reclama para si próprio a árdua tarefa de realizar um cinema realista sustentado no seio de uma cultura iconófoba, em que a função da imagem assume sempre um carácter problemático. Com formações culturais e profissionais diametralmente opostas, os cineastas encontram-se na sua interpretação singular dos pressupostos do cinéma vérité

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