Isabel de Sá. A Alegria da dúvida: Antologia organizada por Graça Martins. Porto: Exclamação, 2021.

 

Mas o nosso amor resistirá
 às fronteiras, aos muros de fogo
e à injustiça. Gostaríamos de viver
o tempo da verdadeira transformação,
 da felicidade universal.

 

        Isabel de Sá, A Alegria da dúvida.

 

 

A beleza de um texto fala pelo seu fogo. É difícil explicar o fogo. “Porque sem beleza não se aguenta estar vivo” (p. 11) é o título do primeiro poema desta antologia de poesia de Isabel de Sá com organização de Graça Martins. De títulos surpreendentemente belos, feitos de imagens vitalíssimas que se querem dentro, que se querem saber de memória: é possível um poema transformar-se no tecido do próprio coração, como o ar o sangue, a poesia, tudo a transformar-se também em nós, no nosso próprio tecido, estamos também feitos de imagens, de histórias, como diria Mia Couto em O Universo num grão de areia (2019): “A humanidade nasceu em África. Mas podemos também dizer que a humanidade nasceu da capacidade de produzirmos e contarmos histórias. Somos humanos exatamente porque não somos apenas uma entidade biológica. Somos feitos de histórias tanto como somos compostos de células. As histórias são também um lugar onde nos inventamos eternos e encantados” (COUTO, 2019, p. 27). E por isso ter os pés no chão é uma revolução e escrever é também caminhar, traçar uma rota segura, da poesia de Isabel de Sá poderia dizer-se, como Camus “escrevo como nado, porque o meu corpo assim o exige” (CAMUS, 1978, p. 87); os poemas de A Alegria da dúvida celebram um mergulho na vida em que tudo se mede através do corpo (enquanto escala humana e divina), celebrada através de uma reivindicação urgente no “poder redentor das palavras” (p. 23), na esperança como um mínimo relâmpago que ainda assim nos ilumina e ilimita por dentro; a sensação de fluidez é contínua e vital, na celebração da memória e do amor é que estes poemas nascem como constelações que se tocam, há por isso uma infância e um fogo e uma ressurreição contínua que atravessam, como se a nado, cada um destes poemas, e nisso as palavras são redentoras e são libertadoras; livres de constrangimentos, e de imposições linguísticas, e nisso se pode afirmar que a poesia de Isabel de Sá é livre, digna, verdadeira, transparente, nítida e concreta, e por isso tudo é bela, habitada pelo espanto e pelo estremecimento de imagens que nos enchem e humanizam no seu sentido mais pleno, no seu sentido criador, de verbo: “Tudo o que disseste / no desaforo da paixão / só podia incendiar a vida inteira / e encher de esperança o universo” (p. 31), a esperança é aqui parte indissociável do corpo e da experiência amorosa, que faz lembrar um verso, muito feliz e cheio do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade: “A poesia deste momento inunda a minha vida inteira” (ANDRADE, 1978, p. 16). É desta inundação (enchente de luz, de amor, de paixão, aguda, estrema e central), que os poemas de Isabel de Sá nascem, disso só podemos ter a certeza, como de uma esperança, redentora que nos cure da “mentira de um amor que acaba” (p. 35). É talvez para resistir à mentira de um fim que se escreve sempre, e nisso A Alegria da dúvida é um livro de resistência: resistência contra o acabado, o pré-feito, resistência contra o estéril e contra o vazio, resistência contra o medo e contra qualquer imposição, contra o ódio e o ignóbil, contra os muros de fogo e a injustiça. Escreve-se para resistir, para insurgir, para dizer eu sou sendo ao mesmo tempo tudo em toda a parte, escreve-se para celebrar e aproximar, para preencher com vida e para acender a vida: “Se a arte /não for insubmissa / se não permanecer / desobediente / e não escapar ao controlo / é o quê? // Se a arte / não for inssurrecta / se não permanecer / pedra viva escaldante / é o quê /a arte / se não disser eu sou?” (p. 37).

 

 

ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.

CAMUS, Albert. Diário de viagem. Rio de Janeiro: Record, 1978.

COUTO, Mia. O universo num grão de areia. Lisboa: Caminho, 2019.

SÁ, Isabel de. A Alegria da dúvida: Antologia organizada por Graça Martins. Porto: Exclamação, 2021.

 

 

 

        Nuno Brito, 30 de Julho de 2021.

 

 

 

 

Bruno M. Silva, "Toda a noite, o fogo" (lido por José Pedro Moreira)

O poema "Toda a noite, o fogo", de Bruno M. Silva, lido por José Pedro Moreira. Poema do livro A Cabeça em Tróia. Para mais informação ver https://enfermaria6.squarespace.com/bruno-m-silva-a-cabea-em-tria

Daqui à morte será apenas um clamor
e homens à procura de um nome
entre clarões e cavalos doentes
a febre de um deus feroz

mil anos
e chove em Tróia

e daqui à morte serão as mulheres
a inchar como palmeiras
em frente aos espelhos
as crianças a engolir o nome
os barcos presos no sal

Fizemos tudo
trouxemos a palavra, o incêndio
para que nos vissem um rosto saturado de beleza

ainda assim um deus feriu-nos
                                   ainda assim a morte

Tróia, meu deus, toda a noite, o fogo
de manhã, a luz nos meus olhos doentes
e um rosto que das águas emerge puro

Bruno M. Silva, A Cabeça em Tróia (Enfermaria 6, Março 2021)

Leituras 2020: Victor Gonçalves

A morte de um livro está frequentemente ligada ao mais miserável dos acasos: súbito obscurecimento dos espíritos, crises de superstição, antipatias patológicas, mesmo à preguiça do escriba, aos insectos ou à meteorologia. A vida de um livro resulta da vontade que temos, que ainda temos, de tocar o céu.

Acima disso, como dizia, crê-se, Diógenes: o sábio também lia livros e comia bolos, mas podia viver sem eles. Não é uma missa de miséria, mas poder passar-se de fardos que nos limitam a liberdade.

Abaixo disso, receio muito que o ser humano deixe de ler, rastejando depois pela vida num autocontentamento puramente orgânico; e, não sendo sábio, quero alienar-me um pouco, em elevação, pelo que outros escrevem.

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Ler/traduzir: Jean-Paul Sartre, L’être et le néant (O Ser e o Nada), Gallimard, 1943; múltiplas edições (um dos livros mais importantes na cultura francesa do século XX), uso a da coleção tel, corrigida pela filha adotiva, Arlette Alkaïm-Sartre, 2009. Traduzido em português (Editora Vozes, no Brasil, com mais de 10 edições; Círculo de Leitores (esgotada), em Portugal, 1993). Compete-me, neste momento, concluir uma nova tradução para as Edições 70, com saída prevista para 2021.

É um livro mundo, onde se confrontam o eu e o outro para resistirem à alienação, ou manterem a liberdade, à qual, quase paradoxalmente, estão condenados, apesar do olhar do outro. Exemplo do tom e do conteúdo: «No entanto, não se deve acreditar que uma moral da “permissividade [laisser-faire]” e da tolerância respeitaria mais a liberdade de outrem: uma vez que existo, estabeleço um limite de facto à liberdade de outrem, eu sou esse limite e cada um dos meus projetos traça esse limite à volta do outro: a caridade, a permissividade, a tolerância – ou qualquer atitude abstencionista – é um projeto de mim mesmo que me compromete e que compromete outrem sem o seu consentimento

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Lido: T.S. Eliot, Ensaios Escolhidos (da saudosa Livros Cotovia, 3.ª ed. 2014). Ensaiam-se explicações sobre autores (Shakespeare, Baudelaire, Wordsworth, Coleridge, Yeats, Poe, Valéry, Dante, Goethe, Irving Babbitt, Pascal); obras (sobretudo Hamlet); correntes e domínios (o que é um clássico, o sentido da cultura, poesia e drama, literatura da política, crítica, estoicismo…). São textos, ensaios, que vão de 1917 a 1962, portanto não de um T.S. Eliot, mas de vários, e isso nota-se (que privilégio). Surpreende e encanta o que diz, por exemplo, de Hamlet, peça inquietante e perturbadora como nenhuma das outras; mas «É de todas as peças a mais longa, e é possivelmente aquela em que Shakespeare despendeu mais esforços; e, contudo, deixou cenas inconsistentes e supérfluas, de que mesmo uma revisão apressada teria dado conta.»

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Relido: William Faulkner, Luz em Agosto (várias edições em português, usei a da Dom Quixote, 1996). Muitos consideram O Som e a Fúria a sua Magnum opus; talvez, escrever um livro desses é estar além do humano. Mas eu prefiro Luz em Agosto, é um mundo onde entro melhor, sem nunca deixar, porém, de ser maior do que eu. Li-o, novamente, como um tratado das pulsões, destrutivas e criativas, Eros e Thanatos, testemunha de uma crise da vida humana que rastreia a endémica violência racista do americano médio, e indica, no nevoeiro, as forças do mal que começavam novamente a erguer-se na Europa (o livro é do início da década de 30 do século XX).

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Relido: Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade (Dom Quixote, 1992/1978). Regressei a este livro porque Eduardo Lourenço Morreu. Na verdade, nunca tinha saído dele. Foi a principal lanterna que usei para iluminar o para lá das cortinas de fumo da consolidação democrática em Portugal. Não se trata, de modo algum, de uma hagiografia, mas de uma radiografia de um esqueleto cheio de manchas negras, aguentando-se, apesar de tudo. E aqui vamos nós rumo ao futuro, cheios de esperança e temor, de grandiosidade e pequenez, de universalidade e de particularismos enfadonhos. Aqui vamos nós, já sem Eduardo Lourenço, que nos sabia pôr num lugar aproximadamente verdadeiro.

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Lido: Paulo Faria, Gente Acenando para Alguém que Foge (Minotauro, 2020). Uma revelação. Escreve sobre Portugal, olhando, contudo, pouco para o futuro; interessa-lhe religar presente e passado próximo, vasculhando nos despojos do Império. Se uma das especialidades portuguesas é atulhar o inconsciente com as falhas do passado, Paulo faria inverte o passo e escava a história viva e a mente para relembrar, no consciente, a porcaria que fizemos em África, e que agora eles, de uma certa maneira, perpetuam. Parece-me um autor capaz de acrescentar linhas importantes à literatura portuguesa., sinto uma grande admiração por ele.

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Lido: Richard J. Evans, O Terceiro Reich no Poder (Edições 70, 2020); Parte II, de III, da história do Terceiro Reich. Obra decisiva para quem deseja compreender o que se passou no país mais avançado (científica, cultural e politicamente) da Europa, permitindo que uns arruaceiros tomassem o poder e fossem seguidos, a pouco e pouco, por uma significativa maioria da população. É a história de uma inverosímil distopia, baseada mais em factos e provas do que é usual neste contexto.

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Lido: José Pedro Moreira, Porque Canta um Pequeno Coração (não(edições) 2019). Apetece-me recordar uma frase de Paul Celan (cito de memória): «Não vejo qualquer diferença de princípio entre um aperto de mão e um poema.» O livro de poesia de José Pedro é um aperto de mão, um abraço e sobretudo uma janela que ele nos abre, enquanto aponta com o dedo e sorri sorrateiramente, para os seus caprichos de vida, como no «Notas sobre o Prosciutto di Parma», de que a poesia deve dar conta, agora que acabou a era da metafísica; os sítios que frequenta para se abastecer de prosaico e enobrecer poeticamente a vida comum; momentos originários da civilização europeia; mas, sobretudo, no lado B do livro, para aquilo que foi há bastante tempo, festejando, celebrando em vez de conjurar o passado, incarnado na magnífica Alzira. Tudo isto sem deixar de falar com a história da poesia, ser poeta é, por princípio, ser um metapoeta.

É por tudo isto que canta um pequeno coração.   

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A Ler: Sally Rooney, Normal People, 2019 (traduções portuguesa e brasileira). Há cerca de duas semanas acabei de ver a mini-série, baseada nesse romance, disponível na Netflix (Portugal), do realizador Lenny Abrahamson, e foi a série que mais me sacudiu desde Chernobyl. Tenho a máxima espectativa em ler o livro, mesmo se for um pouco menos intenso do que o produto televisivo, como alguns críticos dizem, será ainda assim excelente.

Livros de 2020: José Pedro Moreira

“Outra lista dos melhores do ano?” dirá o senhor leitor. Bem, mais ou menos, mas nem por isso. As demais listas dos melhores livros do ano são destiladas por críticos sábios, que lêem todos os livros publicados nesse ano, e têm o discernimento para eleger o que merece ser salvo para a posteridade. As nossas listas são antes exercícios de contabilidade pessoal, que partilhamos entre nós e convosco. Este ano coube-me a mim o salvo de abertura. Cá fica a lista dos livros que mais gostei de ler em 2020.

Tom Bissell, Extra Lives: Why videogames matter (2010)

 Tom Bissell (1974) é um autor premiado, com livros sobre política, religião, cinema, um livro de viagens, um livro de contos, e uma série de artigos em revistas reputadas. Tom Bissell é também alguém que adora videojogos, que escreveu argumentos para videojogos, e que passou dois anos a fazer pouco mais do que jogar Grand Theft Auto IV e snifar cocaína, como conta neste ensaio no The Observer, que é também o texto que encerra Extra Lives. Uma defesa da relevância cultural e artística de videojogos; mas também uma série de crónicas sobre alguns dos seus jogos preferidos e sobre as experiências únicas que só videojogos proporcionam.

 

 Orlando Figes, The Europeans: Three Lives and the Making of a Cosmopolitan Culture (2020)

 Ivan Turgueniev, Pauline Viardot, uma das maiores cantoras de ópera do seu tempo, e amante de Turgueniev, e Louis Viardot, marido de Pauline, agente cultural e político, tradutor, memorialista, numa viagem espiritual que atravessa a Europa. Outras personagens nesta viagem: George Sand, Berlioz, Dickens, Wagner, Saint-Saëns, Gounod, Chopin, Flaubert, Massenet, Meyerbeer, Rossini, Liszt, Delacroix, Tolstoi, Dostoievski, e muitos mais. Um livro que prova que o único meio de locomoção civilizado é o comboio.

 A descoberta dos livros de Figes trouxe-me imensa alegria este ano. O seu conhecimento histórico é acompanhada por uma mestria narrativa capaz de evocar pessoas e lugares com enorme detalhe e precisão. Dele li também este ano Natasha’s Dance, uma história cultural da Rússia, e Whispers, que acompanha uma série de famílias ao longo da União Soviética, ambos livros excelentes.

 

 Fernando Guerreiro, Ventos Borrascosos (2020)

 Uma narrativa em verso em torno de Emily Brontë, um ensaio sobre o ofício poético que retoma Lucrécio, uma dramatização do devir da existência. Um dos livros de poesia mais estranhos escritos em português na última década.

 Nunca tive muita paciência para quem se queixa dos críticos em Portugal, sobretudo porque este nem sempre é um lamento desinteressado. Temos a crítica que merecemos. Ainda assim, é difícil não ficarmos escandalizados com o silêncio, quando somos confrontados com um livro verdadeiramente único e importante.

 

Sid Lowe, Fear and Loathing in La Liga: Barcelona vs Real Madrid (2013)

 Eu adoro futebol. A intensidade do meu amor pelo jogo tornou-se dolorosamente clara quando as ligas europeias foram interrompidas, e eu dei por mim, como o amante abandonado examina velhas cartas de amor, a ler livro atrás de livro sobre futebol. Livros que tinha na minha lista de leituras há anos mas para os quais nunca tinha achado tempo, como a autobiografia de Johan Cruyff, Inverting the Pyramid de Jonathan Wilson, uma história das evoluções tácticas, ou The Ball is Round de David Goldblatt, foram lidos este ano. Todos são bons livros (se bem que o de Jonathan Wilson custou um pouco a ler), mas o que mais prazer me deu foi Fear and Loathing in La Liga, de Sid Lowe, uma história da rivalidade entre Barcelona e Real Madrid, e, implicitamente, uma história dos dois clubes.

 Sid Lowe é um dos contribuidores do The Guardian, cuja secção de futebol reúne alguma da melhor prosa escrita sobre o jogo hoje em dia. As crónicas semanais de Barney Ronay, Jonathan Wilson, Jonathan Liew e do próprio Sid Lowe tornaram-se leitura obrigatória para mim. E recomendo também Football Weekly, o podcast de futebol do The Guardian, em que estes autores regularmente participam.

 

Edwin Morgan, Última Mensagem - 100 poemas de Edwin Morgan (seleção por João Concha e Ricardo Marques, tradução de Ricardo Marques)

 A Fiona, uma amiga de Edimburgo, anda a tentar convencer-me a ler Morgan há anos. Ela gosta mesmo de Morgan, inclusive conheceu-o e escreveu uma tese sobre ele. O seu evangelismo morganiano levou-a a emprestar-me alguns dos seus exemplares da obra de Morgan (autografados). Há anos que acumulam pó na estante. A minha falta começou a ser reparada este ano. Livros feitos por amigos são priorizados na minha lista de leitura, e este é um livro editado (excelentemente) por um amigo e traduzido (excelentemente) por outro. Duas conclusões: Morgan é um grande poeta e eu sou um idiota por não o ter lido mais cedo. Perdão, Fiona. Obrigado, João Concha e Ricardo Marques.

 

Timothy Snyder, The Road to Unfreedom (2018)

 Um estudo sobre as ideias e realidade histórica que formaram a Rússia de Putin, o centro do movimento anti-liberal moderno, que nos deu prendas encantadoras como Trump e Brexit.