Falar a mesma língua

Conheci o poeta J. A. no meio de uma manifestação dessas que agora se convocam por meios remotos. Primeiro surpreendi-me ao vê-lo. Por bem-intencionado que fosse o objectivo da aglomeração sabia que as multidões não o entusiasmavam. Passada a surpresa, não podia perder a ocasião de falar com ele. Procurei a melhor posição e tentei mantê-la, separavam-nos poucos metros, eu seguia atrás. Ele avançava sozinho e não posso dizer que participasse nas palavras de ordem.

O protesto acabou e todos dispersavam. O poeta J. A. deu uma volta sobre si próprio, de mãos nos bolsos, e fazia menção de tomar uma direcção. Mudou de ideias no segundo seguinte para imobilizar-se e dar um passo escolhendo um ponto cardeal distinto do momento anterior, enfim, não podendo estar perdido estava pelo menos bastante indeciso. Foi aquele comportamento errático que me deu o empurrão final para chegar a abordá-lo.

É escusado contar como meti conversa com ele. Sentámo-nos na escadaria e ficamos até ser noite. Era eu que o acompanhava – uma sorte, mas podia ser qualquer outra pessoa, naquele momento, ele teria contado igualmente as mesmas coisas, a mesma história de busca do autêntico ou do genuíno. Lembrei-me imediatamente de um conto do escritor albanês Ismaíl Kadaré que versava sobre a relação de amor entre um poeta octogenário e uma mulher jovem. O poeta tinha sido convenientemente transferido pelo Partido para uma pequena cidade de província onde se supunha que o efeito nefasto da nostalgia presente nos poemas não causaria tantos estragos à energia, à doutrina, ao optimismo inculcado, ao realismo socialista, que se vivia na «capital». Abundavam as frases contra a nostalgia. Afastada do poeta, a mulher demorou tempo a procurá-lo e chegou demasiado tarde.

O poeta J.A., ainda longe de ser octogenário mas triplicando-me a idade, contava-me a história de um encontro que procurava repetir. Depois da primeira vez nunca mais existiu um dia igual ao Passado. Procurou-a vezes sem conta sobretudo nos momentos mais insuspeitos, como aquela manifestação que terminara. Resumia-me as palavras anteriores que eu, sem grande experiência, encontrava absolutamente apaixonadas e apenas pressentindo o esencial de uma procura muito além do conforto, uma procura outra que ainda não desistia: «Foi o espanto que me deixou paralisado e não queria acreditar no que ouvia. Regulava-me por outras fantasias que não passavam de embustes e que agora encontro odiosos. Depois disso raras vezes a vi. E nunca mais encontrei ninguém que falasse a mesma língua que eu.»

 

Eles não querem saber de nós

 

Na casa em que cresci faltava dinheiro, comida, higiene e respeito. Eu não era igual aos outros. Obrigavam-me a carregar bilhas de gás e a comprar garrafões de cinco litros de vinho tinto para a minha avó beber.  À refeição bebia-se nada. O meu tio partia os copos todos quando desejava que a minha avó lhe desse dinheiro e os copos restantes, sempre sujos, deixavam-me de estômago embrulhado. Não havia copo em que não se vislumbrasse um bocadinho de sebo. Às vezes, comprava uma lata de coca-cola com as moedas que ia roubando à velha mas era muito, muito perigoso comprar refrigerantes e levá-los para casa. O tio podão gritava e oferecia porrada e a coca-cola acabava por ser bebida por quem trabalhava e suava o dia todo. Eu não tinha categoria social. Ouvia "calão" de manhã à noite. Nem me penteava: sem escova e sem banho, para quê escovar o cabelo?  Tomar banho era uma raridade. Enfiava-me ao sábado num alguidar a transbordar de água morna e chap, chap, chapinhava. Aquela água morna sabia-me tão bem que ficava sentado no alguidar até deixar de sentir quente. Tomava banho na rua, não se podia sujar a casa. Era permitido roubar, bater, passar a semana a cheirar a cavalo, só não se podia sujar o chão da sala. Só os ratos tinham permissão para sujar o chão. Diziam que não tinha jeito para nada, que, à semelhança da dinastia Podão, deveria largar os estudos e agarrar-me a um ofício como o de canalizador. Sentia-me diferente. Quanto mais me tentavam afundar, mais diferente deles me sentia. Comecei a pressentir que a escrita me salvaria quando um burlão apareceu na aldeia a vender máquinas de escrever ao preço do ouro. Não sei como conseguiu, mas o burlão convenceu a velha a oferecer-me um pacote que incluía uma máquina de escrever Olivetti e um curso. Tirei o curso de dactilografia juntamente com trinta meninas. Achava aquilo muito chato. Escrever sem olhar para as teclas. Repetir vezes sem conta o mesmo exercício. Caro senhor, caro, caro, sem olhar para as teclas, escrevo-lhe esta carta. Ainda bem que a dactilografia morreu. Escrevi a minha primeira história num natal. Um textinho sobre a minha mãe bêbeda no natal. Escrevi outras no tempo do desespero. O verão mata na aldeia. Faz muito calor e não se tem dinheiro para um único chocolate e não se vê vivalma. Não se apanha um amigo na rua, estão todos a trabalhar nas obras. A família pressiona para trabalhar. Doze anos e vai para as obras, calão. Dava uso à máquina de escrever nesses verões desoladores. Deixei de usar a máquina quando lhe faltou a tinta. Uma máquina sem tinta não serve e um rapaz sem dinheiro não compra tinta nem escreve nem come nem toma banho todos os dias .Tinha dificuldade em concentrar-me na escola. Não sendo rufia, aguentava calado aquela sucessão insuportável de aulas, olhando para os professores mas não prestando atenção ao que diziam. Dedicava-me a rabiscar. Recordo algumas frases vexatórias como amo-te para sempre Tânia, odeio-te, Diogo. Escrevia pequenas histórias sobre um sujeito apagado cujo fatídico destino invariavelmente se revelava em para-choques de automóveis. Escrevia e apagava e riscava ou rasgava. Faltam-me provas físicas desse tempo. Se havia algo a que estava atento era à minha miséria. Sentia-me pobre, sujo e burro. Ninguém poderia ser mais burro, eu era o maior. Os meus colegas de turma fixavam o que lhes era dito, estudavam e tinham boas notas e eu não sabia por que motivo só conseguia escrever historinhas e frases desconexas. Na véspera do teste de matemática, abria o caderno e deparava-me com um: a professora é tão mas tão mas tão mas tão boa que daria três voltas à cantina se isso chegasse para montá-la no seu opel corsa preto. Os resultados escolares deprimiam-me. Escolhi uma disciplina chamada Tecnológica & Coiso na esperança de nada fazer. O exame, concebido para pedreiros, consistia em montar um candeeiro. Perdi o terceiro período a gatafunhar e apenas no dia antes da entrega do candeeiro me lembrei de enfiar uma lâmpada numa lata de coca-cola. Pouco mudei no ensino secundário. Prossegui com os rabiscos e a apatia. Amava quase todas as mulheres, até pernetas e corcundas. O mundo não era real. Escrever, ler, fantasiar com o sexo, nos meus sonhos/cadernos acontecia o que desejava. Pergunto então: o que me levou à escrita? Uma infância horrível repleta de insultos e maus tratos seria suficiente para ambicionar ser aquilo que nunca outro meu familiar tinha sido. Quanto mais pobre se é, mais se sonha. Tenho esta certeza. Lembro-me de desejar ser Napoleão Bonaparte e de me comportar como um no meu interior (no exterior continuava a ser o encolhido borbulhento). O que me levou à escrita? Querer ser Napoleão. Ser poder e arte, música, escrever como Michael Jackson dançava. Colocar aquela dança nos meus rascunhos. Ainda é isso que me motiva. Ser como aquele som roufenho, melhor do que tudo o que me rodeava, saído do meu leitor de cassetes.