Acácia investe na figura 

Chegou ao emprego à hora de sempre e Itamar já lá estava. Disse-lhe: 
— Grande molha que apanhaste! 
— Está a chover há meia hora. 
— Eu vi pela janela. Chegou uma carta para ti. 
— Ok. Está onde? 
— Já foi. 
— Deitaste-a fora?! 
— Não, está na tua secretária. 
Subiu as escadas e ali estava ela, dirigida a Adalício Adamastor, Rua Etc e Tal, Lisboa. Letra de criança, coisa estranha. Abriu-a. “Podemos ver-nos? Vai ter àquele bar onde costumas ir.” Brincadeira, por certo, e que bar seria aquele? Até poderia ser engano, mas o nome Adalício Adamastor não era acaso, e a Rua Etc e Tal ainda menos. Começou a trabalhar e esqueceu a carta. 
No dia seguinte, a mesma coisa: “Não apareceste. Posso ter uma conversa contigo?” Claro que era brincadeira, mas quem seria a criança? Durante o dia, demorou mais a esquecer, mas esqueceu. Até que, na quarta-feira, veio mais outra. “Queres almoçar?” Quem seria? Acácia costumava testar-lhe a fidelidade, teria pedido a outra para escrever aquelas palavras? 
Chegado a casa, perguntou: 
— Temos envelopes cá em casa? 
Não tinham. 
No dia seguinte, não havia nenhuma carta. Adalício pensou que Acácia percebera que acabara. 
ubiu as escadas, sentou-se para trabalhar, logo o telefone tocou, era Itamar. 
— Há uma chamada para ti. Posso passar? 
— Podes, claro. 
Itamar reencaminhou para a extensão 736, Adalício cumprimentou mas só ouviu respiração do outro lado. Uma e outra vez até que Itamar deixou de transferir. 
Ao fim do dia, foi para casa. Acácia agia como sempre, fingindo não ter feito nada. Perguntou-lhe: 
— Estás contente com o telemóvel que compraste? 
Disse que sim e ainda acrescentou que andava a usá-lo muito. 
No dia seguinte, não aconteceu rigorosamente nada, e o fim-de-semana correu a cerveja e futebol. 
Chegou segunda. De novo: 
— Chegou uma carta para ti. 
Voou pelas escadas. 
A mesma letra de criança e apenas uma frase: “Preciso de te ver.” 
Já não trabalhou direito. Quando Itamar voltou a reencaminhar-lhe uma chamada, explodiu: 
— Quem é, caralho? 
— Calma, Adalício. Tens o telemóvel desligado e só queria dizer-te que deixaste a carteira em casa. 
Acácia tinha o desplante de não lhe desligar na cara. Nada disse, uma vez mais fingiu. Horas depois, nova chamada, e quem não fingiu foi Adalício: 
— Olá, Acácia. 
Mas não era Acácia quem estava do outro lado. 
— Quem é a Acácia? Já não me reconheces? 
Claro que a reconhecia, só não podia julgar nunca que fosse ela. 
— Sou a Adosinda. 
Adalício quase caiu da cadeira. Quase derrubou o jarro que tinha em cima da mesa e deixou cair o telefone, e ainda por cima começou a respirar pesado. Ouviu do escritório: 
— Tudo bem, Ada? 
Disse que sim. 
Era estranho não se ter lembrado de quem sempre fora inesquecível. Tinham sido namorados antes de casarem, Adosinda tinha dois filhos, ele zero. Nunca mais se tinham falado depois de uma birra que durara a vida toda até então. Adalício matara entretanto o desejo de matar-se, mas não o sofrimento. Disse só: 
— Como é que estás? 
— Estou muito bem. Porque é que não apareceste? 
— Onde? 
— No sítio do costume. Não recebeste a minha carta? 
— Sim, mas não sabia que eras tu. 
— Pois é, esqueci-me de assinar. — Tudo sinistro. — Podemos encontrar-nos no sítio do costume? 
Adalício disse que sim, assumindo que esse sítio só podia ser o Botequim do Fumo. Atirou uma desculpa a Acácia, saiu depois de tomar banho em perfume. Vestiu a melhor camisa já no carro. 
Quando chegou, já ela lá estava. Vestido branco, salto alto, um perigo. Mais velha e ainda sem idade. Pediram os dois bebidas, jogaram conversa fora. 
Ela mordia os lábios, ele não tirava os olhos dela. Mais por glória do que precaução, disse-lhe: 
— Sabes que agora sou casado? 
— Imaginei que sim. 
Tocavam-se debaixo da mesa, mas ninguém trai com os pés. Depois de um copo veio outro, a conversa só tinha um sentido, e ela ainda lhe disse: 
— Houve uma coisa que nunca chegámos a fazer. 
— Há ali uma pensão. Por vinte euros arranjamos uma cama. 
Dirigiu o caminho, reservou o quarto, abriu a porta. O primeiro beijo soube a whiskey velho. Perguntou-lhe: 
— Vais deixar o teu marido? 
— Já deixei. 
— Por mim? 
— Claro que não. 
— Mas queres ficar comigo? 
— Ficar contigo? 
— Sim. Que eu deixe a minha mulher e moremos um com o outro. 
Ela riu, surpresa e divertida. Ele humilhado. 
— Claro que não. 
Adalício, deitado e nu, sentiu-se de joelhos e mais despido ainda. Resistiu como pôde: 
— Ainda bem, também só quero ter um caso. 
— Eu sei, a Acácia desconfiava. 
Despido, ficou gelado. 
— A Acácia?! 
— Sim. Quis provar que eras infiel. 
Tinham-se conhecido na aula de Pilates, e Acácia pedira-lhe que o testasse. Não sabia sequer que o seu nome era Adosinda, chamara-lhe “meu bem” o tempo todo.