Autores convidados em Julho

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Inês Morão Dias 

Nasceu em Coimbra, em 1988.

É mestre em Arquitectura pela Universidade de Coimbra. Entre 2008 e 2012 escreveu regularmente e foi editora da publicação de teoria e cultura arquitectónica Revista Nu.

Viveu em Coimbra, Paris e Genebra, onde iniciou e desenvolveu o seu trabalho como arquitecta. Continua a mesma actividade no Porto, onde mora actualmente.

Tem vindo, desde uma data difícil de precisar, a escrever poemas em vários cadernos. Começa agora a dar-lhes novo lugar.

Rosa Maria Martelo

Rosa Maria Martelo é ensaísta, professora de Literatura Portuguesa e de Estudos Interartísticos na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e investigadora do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa. Estuda poéticas modernas e contemporâneas e interessam-lhe as relações de intermedialidade, particularmente os diálogos da poesia com as artes visuais e audiovisuais. Publicou os seguintes livros de poesia: A Porta de Duchamp (2009), Matéria (2014) e Siringe (2017). Entre os livros de ensaios mais recentes contam-se A Forma Informe – Leituras de Poesia (2010), O Cinema da Poesia (2012, 2ª ed., 2017) e Os Nomes da Obra – Herberto Helder ou o Poema Contínuo (2016). Co-dirige a revista Elyra (www.elyra.org).

Cláudia Lucas Chéu: Autora convidada de Maio

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Cláudia Lucas Chéu

Portugal (1978)

 Poeta, dramaturga e argumentista. Frequentou o curso de Línguas e Literaturas Modernas (FCSH) e concluiu o curso de Formação de Atores (ESTC). Tem publicados os textos para cena Poltrona – monólogo para uma mulherGlória ou como Penélope Morreu de TédioEuropa, Ich Liebe DichViolência – fetiche do homem bomCírculo Onanista; Bank, Bank, You´re Dead, pelas edições Bicho-do-Mato/Teatro Nacional D. Maria II; A Cabeça Muda, pela Cama de Gato Edições; Veneno (Coleção Curtas da Nova Dramaturgia — Memória), Edições Guilhotina, 2015. Em prosa poética, publicou o livro Nojo (2014), (não) edições. E em poesia, o livro Trespasse, Edições Guilhotina, 2014; Pornographia (poesia), Editora Labirinto, 2016. Em 2017, foi publicado o seu livro Ratazanas (poesia), pela Selo Demónio Negro, em S. Paulo (Brasil). Publicou, em 2018, o seu primeiro romance Aqueles Que Vão Morrer, Editora Labirinto; e Beber Pela Garrafa (poesia), pela Companhia das Ilhas, em 2018. Lecionou Escrita e Dramaturgia na Escola Superior de Educação de Lisboa. Frequenta atualmente o mestrado em Filosofia (Estética), na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Autores convidados em Outubro

Livros do ano (passado): Reiner Stach: Kafka

"Even today, a biography of Franz Kafka that bore the title A Life would seem ironic..."

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Com um total de 1832 páginas dispersas por três volumes, Reiner Stach tornou-se o autor da mais completa e autorizada biografia de Kafka, cuja tradução em língua inglesa foi publicada pela Princeton University Press entre 2013 e 2016. A Princeton University Press não funciona como a maior parte das editoras de textos académicos do mundo anglo-saxónico. Num modelo semelhante a um punhado de outras editoras ligadas a grandes universidades dos Estados Unidos, a PUP edita os seus livros utilizando os fundos de um endowment, um subsídio se assim lhe quisermos chamar, o que significa que esta editora escolhe muito criteriosamente o que publica, publicando muito menos do que as casas editoriais que competem nos mesmos mercados. Significa também que não existe necessariamente pressão para gerar lucro, porque este não é necessariamente o fim para o qual esta casa editorial existe. Não faço a mínima ideia de quem seja o(/a) editor(a) das humanidades da PUP. Não tenho qualquer ilusão de que se possa imaginar esta pessoa como alguém imune às pressões de justificar perante um conselho editorial as suas decisões em termos financeiros, nem que em editoras que funcionem sob a pressão de gerar lucro estes projectos não existam também, mediante um certo compromisso. Nem estou com isto a dizer que o que gera lucro tem necessariamente falta de qualidade, ou que o que o não gera é necessariamente bom, belo e justo. A existência destes volumes cor-de-laranja avermelhado, no entanto, pode dar-me as expectativas erradas, mas faz-me pensar mais em alguém como Aldo Manuzio do que alguém que confunda o trabalho de editor com uma extensão do serviço de apoio ao cliente. Não sei quem é o editor das humanidades da PUP mas gostava de lhe apertar a mão. Quero com isto sublinhar a minha absoluta apreciação pela singularidade do que reconheço pode não ter sido exactamente um investimento. O leitor romântico em mim fantasia que algumas casas editoriais deviam mesmo funcionar nos mesmos moldes de um sistema nacional de educação ou de um sistema nacional de saúde, com uma espécie de compromisso tácito entre o governo e os cidadãos, de que é aceitável que a finalidade de certas instituições não seja gerar lucro, mas educar os cidadãos, melhorar a qualidade de vida, ajudar a elevar o nível do debate democrático. Alguns livros darão sempre prejuízo mas há um valor imaterial na sua existência. Tenho uma dívida de gratidão para com esta pessoa que resolveu que fazia sentido editar Reiner Stach em inglês. Não sabendo ler alemão, nunca teria tido a mínima hipótese de ler os dois últimos volumes da biografia de Kafka escrita por Reiner Stach se não fosse pelo que imagino só pode ter sido uma combinação de idealismo e uma ausência de receio perante o risco de prejuízo. Não li ainda o primeiro volume porque disputas que envolvem os herdeiros de Max Brod atrasaram substancialmente a pesquisa de Reiner Stach para a primeira parte da biografia, que acabou por sair no final de 2016.

Reiner Stach sumariou a extensão do desafio de escrever uma biografia de Kafka numa frase que aparece na introdução ao segundo volume: “Even today, a biography of Franz Kafka that bore the title A Life would seem ironic.” Um pouco mais adiante RS elabora sobre este ponto: “If a person who was so inconspicuous in his social surroundings was capable of generating a shock wave in the history of world culture, the echoes of which still resound today, it seems inevitable that we need to regard life and work as incompatible worlds, each with its own set of laws.” No cerne de Kafka (o conjunto dos livros mas também o autor) está esta tensão. Um crítico notava que, paradoxalmente, Kafka teve uma das vidas mais bem documentadas do século XX. RS dá-nos os números: “...Kafka generated about 3,400 pages of diary entries and literary fragments...Virtually all of Kafka’s approximately 1,500 letters that were preserved have been published...”

Há um tópico na literatura grega antiga que diz que as gerações dos homens são como as folhas, que florescem e fenecem reflectindo o arco das estações do ano e que desaparecendo dão lugar a novas. Aparece em Homero primeiro e depois em Mimnermo. Enquanto escritor, a actividade de Kafka termina num momento de profunda cisão, pouco antes de o terror da Segunda Guerra se instaurar e a meio, Kafka viveu metade de uma vida, morreu quando normalmente se chega ao auge. Das muitas coisas que a biografia de RS é, aquela que é talvez mais relevante prende-se com facto de estes livros demonstrarem como esta vida de um judeu de Praga que viveu mais ou menos no anonimato, que trabalhava como advogado num instituto público de seguros, que publicou pouco durante a vida e ironizava com a sua falta de sucesso comercial (na livraria tal havia onze livros meus, eu comprei dez, matava para saber quem comprou o décimo primeiro), que tinha uma irmã favorita que dava pelo diminutivo de Ottla, que passava horas a sonhar acordado num sofá, que em Munich fez uma leitura pública e desastrosa da própria obra, que invejava alguns dos escritores seus contemporâneos, que esteve noivo duas vezes da mesma mulher e nunca se casou com ela, que quis combater na Primeira Guerra e o chefe não o deixou ir, que gostava de remar e de trabalhar a terra, que amava o teatro e tinha amigos actores, que se apaixonou por uma jornalista que era uma mulher casada e formidável, chamada Milena Jesenská, Kafka, para quem um dos últimos encontros é com um grupo de raparigas a quem ele sorri, e elas olham para ele apelidando-o com desdém de judeu, é uma das vidas essenciais do século XX, talvez a vida essencial do século XX. Não apenas por causa da dimensão da aventura intelectual do seu percurso de escritor, algo que, em qualquer dos casos, é difícil de documentar e que o trabalho de RS descreve incrivelmente bem, mas porque há toda uma dimensão da história do século XX que é personificada no percurso de Kafka.

O que se segue é uma selecção de alguns excertos desta biografia monumental.

(Sobre o barulho constante na casa dos Kafka) “Kafka called this prose piece “Great Noise”. He jotted it down in his diary on November 5, 1911, and about a year later published it in a Prague literary journal for the “public flogging of my family,” since the circumstances depicted in it had not changed in the slightest. It is unlikely that Hermann Kafka ever saw with his own eyes the mark that his trailing robe left in German literature.

(Do diário, sobre Werfel, um jovem poeta amigo de Max Brod) I hate W., not because I envy him, but I envy him too. He is healthy, young, and wealthy, everything that I am not. Besides, he has written very good things early and effortlessly, using his sense of music; he has the happiest life behind him and before him; I work with weights I cannot get rid of, and I am completely detached from music.

(Sobre a leitura pública de um texto sobre Yiddish) Kafka caught his listeners unawares, and played an aggressive game with their expectations, alternately confirming and demolishing them. A reader would be hard pressed to find a comparable example among Kafka’s contemporaries of such a modern, reflective intensity.

(Sobre literatura, de uma carta a Felice Bauer) Not even the part about the “artistic bent” is true; in fact it is the most erroneous of all these erroneous statements. I have no literary interests; I am made of literature; I am nothing else and cannot be anything else.

(Sobre o início da Primeira Guerra Mundial) On August 2, 1914, just a few hours after the Great War began, Kafka walked away from the cheering, the special news supplements, the singing, announcements, addresses, rumours, hoarding, parades, porters hurrying by, horses clopping, rolling gun carriages, sparkling uniforms, freshly ironed flags, and weeping girls. The diary entry with which he turned his back on the world was, “Germany has declared war on Russia – Swimming in the afternoon.”

(Kafka recebe correio de um fã a propósito de A Metamorfose) Now [my cousins] they’ve written to me. They want me to explain the story to them because I am the one with a doctorate in the family. But I am baffled.
Sir! I spent months fighting out with the Russians in the trenches without flinching, but if my reputation among my cousins went to hell, I would not be able to bear it.

(Depois de uma leitura em Munich, nota de Kafka sobre o juízo de Rilke) After some extremely kind remarks about “The Stoker,” he [Rilke] went on to say that neither “The Metamorphosis” nor “In the penal colony” had achieved the same effect. This observation may not be easy to understand, but it is perceptive.

(Sobre Milena Jesenská) Unlike Felice Bauer or Julie Wohryzek, her personality was stronger than Kafka’s. It is conceivable that he could have molded himself to Milena, but it is not conceivable that she would have followed him into his world…Her experiences went well beyond the risqué rumors in Prague and could not be reconciled even with the vague idea of Bohemian libertinism. Two abortions. Two suicide attempts. Shoplifting and document forgery. A lesbian relationship. Drug abuse. Work as a baggage handler. Cohabitation with her husband’s mistress. It was thought she was turning the world order on its head, both economically and morally.

(Sobre o fim da época de Kafka) The fate of many people he was close to was sealed, and countless traces of Kafka’s life that were left behind in the collective memory were wiped out. Letters, photographs, literary estates, even entire archives were destroyed. The violence that gripped the era often made it impossible to identify what was lost, and even to ascertain that it was lost. If Kafka had had the double good fortune of surviving tuberculosis and then a concentration camp, he would not have recognized anything left after the end of this catastrophic blow to civilization. His world no longer exists. Only his language lives.