Que tens para perdoar

Que tens para perdoar   se uma mesma suspensão

da terra tem a forma de uma pausa   que tens

a perdoar senão trocares os nomes dos deuses

e chamares trigo ao fogo   e chamares coxo

ao relâmpago dos relâmpagos   que tens

por perdoar senão a morte de todas estas

estátuas que naufragam contigo de madrugada

e assentam sob o caos da tua mão direita

geradora de formas   modificadora de roncos

mosto   calúnia   escândalo   que tens tu

de perdoar senão a última variação

do teu jazigo e a forma quase ingénua

como nunca te converteste  e talvez

desconcertante   como todos os rios se reduzem

à margem de Babilónia    a Grande

e já reparaste como os teus seios são jardins

e se suspendem das minhas mãos   como quando

me perdoavas   e dizias   apesar de tudo

apesar de tudo   e nunca ninguém soube dizer

tão bem essas palavras   apesar de tudo

quando sinto os teus braços   (pausa)

sabe-me bem e eu nessas alturas   ou seja

nessa altura recordei-me sempre de uma tarde

em que vi três humanos   um homem no meio   jovem

duas mulheres da mesma idade e todos

de braço dado   e que melhor perdão

para todo o filho do homem   para todo o desconcerto

do que essa partitura   e bem sei   tu sabes

que lamechas   que foleiro   que piroso

é toda essa merda   e dizias   devias talvez ler

mais um bocadinho   e escusavas de repetir

a mesma porcaria que já milhares de poetas disseram

com palavras diferentes   é certo   mas a mesma coisa

não te perdoo essa falta de protagonismo

nessas alturas   nessa altura fiquei sempre

em silêncio pensando para mim mesmo

como sempre disseste o que queria ouvir

a ponto de duvidar da minha própria existência

e apesar de tudo soube-me bem   demasiado bem

como um pecado que dura e para o qual

não há perdão nem recusa   nem um movimento

isto é   uma cruz que se veja   um espinho

que se crave onde realmente interessa   na perna

onde dói   onde a dor é verdadeira   no ombro

que não se pode mexer enquanto te operam

e a carne nunca a soubeste tão verdadeira

que perdão   meu amor   que perdão

pode haver para essa margem   para o estuário

para o lugar de onde nasciam barcos

para ir ao cu dos índios e os encher

das nossas doenças   que perdão   para esse

para esse casaco de couro encostado à porta

do metro   que digo   dentro do metro

repleto de tabaco   e que grunhe e que acena

talvez a um conhecido que o encara

e talvez finja que te conheça   e que perdão

para esse ronco e para todas as pontes de ferro

que exercem a sua violência sobre as costas

dos suicidas que foram outrora deuses

filhos de deuses e que louvavam à sua maneira

as águas   ou pelo menos o que sobrava delas.

2 poemas de Que Coisa é um Alguidar? de J. Carlos Teixeira

METADES DE UMA LARANJA

para a Mafalda Sofia Gomes

I

Quando Maria se perdeu no deserto
não sei se seriam
cálices ou ondas
que lhe desciam pelos seios
enviuvados.

II

O tumor da tempestade
arrastou o túmulo da tua cria,
levando consigo o calor sombrio
dos rebanhos em negação.

III

Escreveram nas paredes
que os pombos tombaram.

IV

O teu filho morreu
e no fundo dos montes
ouvem-se os gritos das mulheres
ecoando nas bocas dos peixes.

V

Esses olhos nunca mais
voltarão a cair aos seus pés
como mantos pousados aos ombros
das montanhas.

VI

Ventre da manhã,
os tambores já não tocam
nesta cidade.

ACOLITAR

Um terço do meu corpo
poderia cobrir uma boca
como pão e vinho

não seria ensinamento,
seria romance
aprender o catecismo
de pé descalço

acenderam a candeia:
            debaixo da tua batina
            caberia uma romaria.

J. Carlos Teixeira, Que Coisa é um Alguidar?, Editora Exclamação, 2024

Três poemas de Polaroide de Miguel Marques

Segunda

Desenlaço espelhos cobertos,
emudecidos sem mais, com um cantor esquecido
em gaiola opaca, sem alimento nem água,
em puro silêncio,
escutando o teu nome à solta.

Mas sou capaz de olhar um espelho
e dizer-lhe na cara: esse não sou eu,
refaz o teu ofício simples.

Baço, como nevoeiro, e o seu manto de veludo
arrastado bem cedo
pela manhã, lugar onde há quem plante estátuas
de crianças nuas a crescer lentas num jardim.

Até um rio nasce e cresce para morrer
num distante fim de linha.

O seu arbusto de água corrente quando,
desavindo, espanto-me com o delta desenhado.
Margens movediças o sobem, limitando
lençóis de água onde se lava roupa, junto ao
bordado dos açudes, e povoadas por mulheres
magníficas.

Chegam a parir pequenas estátuas de mármore
roxo
– afligem-se quando não berram,
não respiram –,
e, assim, vão plantando estátuas nuas
pela manhã iluminada.

Mais tarde, as estátuas imaginam as suas próprias
vestes esvoaçantes,
e a formiga trepa-as,
dos pés à cabeça,
o basalto emplumado repousa
nos seus ombros delicados,
lembrando pássaros.

Se a cabeça viaja, crava unhas nos cabelos
entrançados devagar,
nas vestes imaginadas a rasgarem-se
no sopro breve de cada
nova manhã.

O círculo de crianças numa brincadeira de menires
soberbos.

Quarta

Toda a casa é trancada pelo Sol abrasador
enquanto escondo,
na cabeça repleta,
minúsculas células de lanternas vivas a clarear-me
o pensamento.

Os meus mortos sentam-se comigo à mesa, as
chávenas mornas
nas suas mãos brancas.

Mãe, eu ainda tremo.

Não hesites assim tanto, minha mão, quando
escreves.

Escuto as memórias que pairam como
helicópteros ruidosos em
agonia ascendente.

Felizmente, tenho apenas uma boca, demasiadas
vozes me tomariam de assalto, em sobressalto,
enquanto pássaros de luto sobrevoariam
o telhado deserto.

Uma boca húmida
onde mantenho lascas de carvão
em brasa, caverna de vapor aquecido
sem chaminé erguida.

Digo que as lágrimas dos meus mortos são
estrelas nos seus rostos marmóreos,
e qualquer estrela
é uma lâmpada por apagar, esquecida
quando de vez se tranca
a casa vazia.

E não é que o exemplo dos mortos
conduz os vivos?

Basta ver quem lidera o pelotão de cada
funeral.

Décima sexta

Hasteada a bandeira de fumo branco
a drapejar na brisa, ténue,
como o fio vibrante da teia de uma
pequena aranha.

Ou cordões de água que desenham as alças
do teu vestido imaginado.

Ou ainda, lírico cabelo desatando linhas
compridas de versos, onde
as aranhas aprenderiam
a tocar harpa
se as suas presas, de tão assustadas,
não lhes desafinassem as teias.

Nas memórias visíveis
que são as polaroides, uma floresta
de mãos abertas
com as suas unhas pintadas de verde,
dedos nus que se entrelaçam profundamente.

Se a primeira árvore da floresta
lança raízes à estrada,
a última leva os ramos à cabeça
em desespero.

Uma moeda de ouro rola
pelo declive das copas
do arvoredo,
tenta encontrar a ranhura certa,
dando início a mais um jogo noturno.

E bem no centro da imagem
desbotada, de lábios vivos,
a mulher que fuma
num desassossego,
erguida a bandeira de fumo branco
que drapeja no hálito quente
do vento.

Arde que arde na bandeira furiosa.

O teu irmão no escuro

ele flutua
como preservado
num preparado de noite

o seu coração
projectado fora do peito
bate
bate
para nossa diversão
olha as artérias
que o ligam ao corpo
torcidas e enoveladas
dizia
ele bate no escuro
para nossa diversão
vês
sabes
eu acho
que o mundo precisa
de mais bondade
devíamos ser treinados
desde novos
na arte da bondade
não achas?

e depois bates no vidro
e acenas um adeus
ele não responde
o teu irmão no escuro

passas
à próxima peça
em exibição

Visões de troia

i

Naquele início de tarde ao cruzar
de barco a foz do sado não vimos
frente a troia o dorso dos golfinhos
Pensar que sempre neste e noutros
mares habitaram cadáveres de pessoas
e de cetáceos presos em cordames 

Rumo à praia há um cheiro a alfazema
a verão em maio a ideias liquefeitas
e a deuses visitando os corpos 

Com que artifícios os operários construíram
esta passadeira e com que restos de madeira?
De barcos lestos desembarcam na praia
homens musculados com armas contra o sol 

É longo o cerco dos dias o mês
encosta-se a uma nova estação 

ii

Nas metáforas de Homero não é certo
quem morre se a natureza se as pessoas
esquartejadas do verso para fora  

Arde rápido no olhar o mato seco
que empilha em dunas as areias
o fogo é extenso a vida sem duração
o dia inclina a cabeça à noite irrevogável 

À nossa frente das flores antes fechadas
saem borboletas e abelhas rumo à colmeia
na nascente púrpura do ocaso 

em troia paz e morte
coincidem passo a passo