Coaxar

Depois de mais de 35 anos, Heinrich L. retirou-se. Trabalhou vários anos na indústria aeronáutica, nas imediações de Rostock, Pomerânia Ocidental, a sua função: encarregado de assegurar o movimento incessante das máquinas, a engrenagem bem oleada, o deslizar constante e sem pausas não previstas; perdas de tempo que o imparável relógio nazi não aceitaria. Viúvo, depois de algumas engenhosas e bem sucedidas entrevistas com a hierarquia foi a custo que permitiram que se retirasse. Soltava os pensamentos nas rotineiras tarefas domésticas. Não faria outra coisa senão observar como discorriam os dias ainda amenos; ao mesmo tempo que a iminência da guerra obscurecia o entusiasmo de Rostock, uma das primeiras candidatas à destruição caso rompessem os bombardeamentos. Heinrich L., pendente das notícias, preparava-se para ser um refugiado ideológico até ao fim dos dias, não apoiava nem contrariava os acontecimentos – sentia-se cansado -, que o deixassem sossegado com as leituras a que finalmente teria ocasião de se dedicar. Eram difíceis os projectos de instrução, mas o velho reabilitador de motores conseguiu prover-se de alguns volumes de autores que intermitentemente apareciam à superfície, nos espaços esquecidos pela cartilha nazi. Como um volume de histórias de Rainer Maria Rilke, a única prosa conhecida do poeta.

Passava tardes no pequeno jardim que plantou diante de casa mas era importunado pelo coaxar das rãs que o vizinho mantinha num pequeno lago próximo. O vizinho, sensivelmente da mesma idade e com o mesmo desejo de repouso, dedicava-se à criação ociosa de rãs, sem outro objectivo que não fosse, precisamente, deleitar-se com o coaxar vespertino dos anfíbios. A dificuldade de concentração de Heinrich L. agudizava-se com aquele garganteio que, pior que pelos ouvidos, lhe parecia entrar esófago adentro. Preferia ler durante a tarde e os bichos, aliás carentes de beleza, eram incompatíveis com os escritos eloquentes ou pícaros de um jovem artista Rilke. O rumo dos acontecimentos não deixava ilusões e Heinrich L. presentia que os últimos dias aproveitáveis estavam próximos de se esfumar.

Abriu a arca onde guardava alguns pertences que já não utilizava e tirou uma espingarda de ar comprimido. Dirigiu-se à casa do vizinho, que sabia contrário a desfazer-se das rãs, e disparou várias vezes em direcção ao pequeno charco. Nenhuma rã foi atingida, saltaram todas para a poça de água e o vizinho apareceu à porta de casa, incrédulo, meio adormecido, acompanhado por um pequeno transístor emitindo vozes roufenhas. Depois de Heinrich L. baixar a arma, o criador de sapos virou o pescoço para dentro de casa e proferiu as palavras mais previsíveis: começou a guerra.

Navalhinha SOS

O que se segue à dor não é o choro, se assim fosse teria passado pelo menos vinte anos a chorar. Morreu-me a velha, morreu-me um puto à nascença e desapareceu-me a Esposa I e não me caiu uma lágrima. Estava no funeral da velha e só me apetecia rir e dançar. Chorei-a muito depois. O primeiro passo é a dor e o segundo uma espécie de repressão sentimental, a incapacidade de dizer uma palavra que seja sobre o assunto que nos faz sofrer. Não me lembro de chorar em criança, em adolescente, em adulto. Tirando uma ou outra ocasião em que me saiu uma aguadilha, mantive-me estoico e duro durante décadas, as décadas em que estive vivo. Chorei este ano, estes meses. Pela primeira vez me aconteceu chorar enquanto esperava pelo comboio e enquanto jantava e enquanto escrevia sobre um tema fastidioso em alto grau. Demorei a aceitar que não existe um sentido para a existência. Pensava que as peças do puzzle um dia encaixariam. Compreendi a inutilidade desse tipo de pensamentos. Temos o caos, o tijolo que cai não se sabe de onde. Conviver com a dor não é uma mera questão de recebê-la e carregá-la como se fosse uma mala pesada, conviver com a dor, a verdadeira dor (isto que sinto), é insuportável. "Eu nunca faria aquilo", dizia em petiz. Nunca seria como os loucos ou os deprimidos que precisavam de comprimidos para viverem como os outros, ou quase como os outros — não se chega a viver como os outros, estes estão sempre numa melhor condição. Não só preciso de comprimidos como me comporto de forma irracional, irascível. Certos impulsos levam-me a desfechar biqueiros na mobília ou a atirar-me pela janela de pijama e correr correr (uma sorte, viver no rés do chão) ou a chapar a tábua de passar a ferro contra a parede. Não me sabia igual àquele que partiu o pé pontapeando estantes ou àquele que chegou a casa ensaguentado e rasgado por se envolver em brigas desnecessárias, como sempre são aquelas em que o porteiro de um bar nos pede calma e nós ripostamos com um cale-se, jumento. Fico incontrolável quando ouço algo que me desagrada. Basta um dos miúdos levantar a garupa à hora de refeição para ser premiado com uma bofetada. Quando a mulher chega tarde a casa, fico tão enervado que só me acalmo a limpar o pó com a sua cabeça. "Tome os medicamentos", dizem-me os médicos, não sabendo que me irritam. Ai se desconfiassem que a minha tranquilidade é aparente, que por mim esmurrava-os até virar-lhes a cara do avesso. Engulo seis comprimidos por dia, esses malucos julgavam que me acalmaria com seis comprimidos? Se me dessem anestesia de elefante, poderia ser que sim. Com seis comprimidos adormeço mais cedo e é só.  As vozes cá dentro fazem cada vez mais chinfrim. O que me tem aguentado é uma navalhinha que saco do bolso em situações de emergência. Os diabéticos precisam de insulina, eu preciso da navalhinha para me golpear. A vida é caótica e se choro no trabalho, na rua, a jantar com amigos, o que posso fazer? Se a culpa é insustentável, se o mundo é triste por minha causa (porque eu sou triste), a que recorrer? 

Filipe

Apesar de serem incontáveis os seus feitos e repetidas vezes ter dado provas de valentia – expedições aos quintais da vizinhança premiadas com o saque de muita fruta, a morte de pelo menos dois cães à pedrada, ter sido o primeiro a apalpar as mamas à Marisa, apenas para mencionar as mais gloriosas – era por vezes lamentado entre nós por levar nas trombas do pai. O cabrão do velho desta vez arreou-me bem, mas esta merda não vai ser sempre assim. Quem ri por último ri melhorE mostrava com orgulho as marcas da penitência. Suando de boas intenções o patriarca acendia mais um cigarro para acompanhar a cerveja. Sr. João Marques, eu já tentei de tudo, não há maneira de meter o puto na linha.

Haverá cavalos

Dou atenção a pormenores e a coincidências é a partir deles que tomo as minhas decisões. Por isso, já em viagem, surpreendi-me quando me dei conta que fazia propositadamente várias centenas de quilómetros para saber se ainda havia cavalos selvagens nos montes próximos a San Andrés de Teixido, que segundo o ditado galego vai de morto quen non foi de vivo, a norte do norte, numa zona em que a grande Ibéria não está entregue a abismos imaginários e sim a falésias reais onde o mar investe uma e outra vez.

Perto do destino abrandei e abri a janela. Estavam estacionadas algumas caravanas com matrícula francesa. De uma delas saíu um homem com óculos redondos muito pequenos e cabelo farto todo branco cuspindo para a gravilha os caroços de uma laranja. A paisagem apresentava-se como na infância e adolescência quando aos domingos de passeio subíamos os montes. Parei em sítios onde o horizonte se via desimpedido mas actuei como se não visse mais de cinco metros à frente dos olhos. Quando era jovem também não perdia um minuto a olhar o mar. Estava sempre presente. O tempo transcorreu e o horizonte continua a ser-me indiferente. Uma linha contínua que separa o mar distante do céu ainda mais distante. Um horizonte enganador, impossível de perceber. Há pessoas que se jactam de não acreditar em Deus, eu não acredito sequer no horizonte.

Ainda restavam cavalos. Adestrados, com selas e rédea curta. Uma palmada no lombo e eles afastam-se para o lado. Cavalos com nomes de personagem de banda desenhada, segundo escutei, outrora selvagens, para venda. Cavalos menos intratáveis, não acometem uns contra os outros e não molestam as éguas sem licença humana. Mas este ar que respiramos aqui fora, aqui realmente fora, não permite a total e forçada limitação da natureza. E por isso sei que não fiz centenas de quilómetros em vão. Não me vai permitir começar agora a acreditar no horizonte mas concede-me pelo menos uma renovada convicção de que os coices, por poucos que sejam, não cessarão nunca.

Poesia a murro

A paixão deixava-o muito pouco seguro de si e morria sempre de amor. A verdade é que ressuscitou várias vezes, nunca percebeu se para amar de novo ou se para de novo se matar.

Quando o escritor percebeu que era afinal a sua mão direita que escrevia, cortou-a e guardou-a no cofre, não fosse ela fugir.

Estava sempre maldisposto e a mulher aborrecia-se. Um dia não aguentou mais e pô-lo na ordem. Ele ficou tão bem-disposto que se foi embora para sempre.

Aguentou a dor durante muito tempo, até que a alegria acabou por invadi-lo, porém fê-lo tão intensamente que a dor se tornou insuportável.

Quando a necessidade de escrever o assaltava, saía e dava longos passeios a pé. Regressado, sentava-se e copiava tudo para a folha.