Jerusalém Celeste

A meio da tarde continuava estendido na cama enquanto a ventoinha a girar no tecto fazia que me refrescava. Decidia quais os próximos lugares a visitar em Jerusalém. Os primeiros locais já tinham surgido e não através de uma decisão planeada. Subi aos terraços de St. Marks Road para uma impressão geral. Uma luz branca pintava todos os terraços. Avistei pela primeira vez a cúpula dourada da mesquita de Omar. De forma estratégica posicionavam-se homens equipados com shotguns. Lembrei-me de Amos Oz. O escritor israelita vive no sul de Israel e já escreveu diversas vezes sobre o fanatismo: politico, religioso, sentimental. Lembrei-me também de Machado de Assis que aconselhava evitar todo o tipo de ideias fixas para esquivar tragédias das quais não se podiam antecipar as consequências. Voltei ao nível do chão e caminhei por David Street, a rua mais concorrida e comercial da cidade velha. Um bom ponto de partida. Um amplo intercâmbio de inutilidades elevado a um expoente de celebração. Mas a distração acidental tem um efeito passageiro e por isso não deixa marca. Preferia as pedras; as pisadas do chão e as que edificavam. Perante essas pedras via-me melhor que nunca.

E logo o bem-estar imediato: na primeira incursão a Jesusalém Este, num local diminuto, almoçei falafel acompanhado de vários copos de sumo de limão com menta. O filho do dono do local, que teria à volta de dez anos, estava sentado perto de mim. Olhava-me com os braços enfiados entre as pernas. Baixava e levantava os olhos conforme ganhava a timidez ou a curiosidade. Parecia querer dizer num acabado pensamento ocidental e adulto: o meu pai obriga-me a não ter dez anos. Prestava-se a ajudar o pai em qualquer tarefa. Levantei-me e o rapaz também se levantou. Olhava para mim como se tivesse medo que eu caísse. Estava atento a qualquer cambaleio. Subitamente o rapaz pareceu-me um perigo em potência, outro profeta que imporia as suas próprias leis dogmáticas – leis para impedir a queda, leis para a salvação eterna. Outro profeta forjado nas ruas da cidade antiga. Para me reconciliar com a figura do menino-adulto dei-lhe umas moedas, propondo que é mais fácil corromper que propôr a descrença nas grandes verdades tendo como único argumento a existência aborrecida e pacífica. O sorriso do rapaz pareceu-me outra vez inofensivo e inocente. Regressando às lajes polidas das ruas arrependi-me de colocar na cara de uma criança tantas cores juntas, claramente reflexos meus, imagens que aparecem com a mesma frivolidade com que desaparecem.

No tecto a ventoinha rodava sem descanso. Rodava e não me servia o ar que movimentava mas sim o ruído constante do pequeno motor que me deixava cada vez mais próximo do sono. Quase sonhando, decidi que na minha primeira incursão planeada havia de subir o monte das oliveiras; poderia estar por ali alguma família a celebrar um funeral e eu a certa distância talvez pudesse assistir. E a mesma conclusão, desperto, acordado, uma e outra vez: uma vida que decorre entre a doença e a convalescença. E nos longos períodos de convalesça a confiança renovada de que a última cura foi a melhor de todas. De facto, uma espécie de atrevimento febril na hipótese nula da possibilidade de recaída.

Íris negra

A partir de: Yukio Mishima, O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar e Enrique Vila-Matas, Suicídios Exemplares, «As Noites da Íris Negra»

 

Norubu acabara de pegar no almoço frio embrulhado em papel que a mãe preparara, antes de sair para a loja, em Motomachi. Os restantes elementos do grupo, o Chefe, o n.º1, o n.º 2, o n.º 4 e o nº 5 esperavam-no junto à linha férrea. Ele era o n.º 3, e tinha 13 anos. Os pais, como sempre, julgavam que eles iam nadar para Kamakura.

Vaguearam durante algum tempo. Alcançaram o Cais Ymauchi, em Kanagawa, fora da cidade. Encontraram um desvio ferroviário coberto de folhas e ferrugem, atrás de um hangar onde se lia «Propriedade Camarária», com vista para uma escola abandonada, com vidros empoeirados e partidos, e cadeiras que pareciam ter sido arremessadas para cima das mesas. O local ficava a céu aberto, e Norubu receva que Ryuji, o animal fantástico saído do mar que à noite dormia com a mãe, aparecesse novamente. Voltaram para trás. Mais à frente, encontram um armazém com uma enorme porta preta e um tanque onde, ao espreitar, podia ver-se um pedaço de mangueira rasgada. Sentaram-se aí para ter a reunião do costume, e discutir questões como a inutilidade da Humanidade e do não sentido da Vida e da sociedade, que não passaria de um banho romano misto, e da escola, onde um punhado de homens cegos dizia-lhes o que deviam fazer. Comeram sanduíches com vegetais crus e pastéis à sobremesa, e beberam chá gelado de garrafas térmicas, enquanto treinavam, ao olhar uns para os outros, a ausência de paixão absoluta.

Naquele dia, o Chefe tinha conseguido obter fotografias que mostravam duas pessoas a fazer sexo em posições diferentes, e explicou-as detalhadamente, para provar que não havia nada de especial naquilo. Enquanto falava, Norubu pensava na mãe, que espreitava através do buraco na parede, despida junto ao toucador, de olhos vazios como que arrasados pela febre, e com os dedos perfumados entre as coxas. Depois, o n.º 4 lembrou-se de que ainda não haviam encontrado um gato, razão por que ali tinham ido. Ao fim de algum tempo, viram um, e embora parecesse uma ratazana escanzelada, servia perfeitamente.

Passou de mão em mão, porque todos queriam sentir o seu coração, quente, batendo contra o seu peito nu, molhado. Quando finalmente chegou a vez de Norubu, o gatinho foi agarrado pelo pescoço e imediatamente lançado contra um cepo. Não morreu logo, por isso Norubu agarrou-o e lançou-o uma vez mais contra o cepo. Das narinas e da boca do gato escorria um sangue vermelho escuro, a língua, torcida, estava colada ao céu. Não sentira nada. A prova estava vencida.

O Chefe calçou as luvas e procurou uma tesoura no bolso da camisa. Furou a pele do peito do gato e fez um corte vertical. Debruçado sobre ele, começou a puxar a pele com as duas mãos, até chegar a uma superfície branca e macia, uma vida interior parada, branco lustrosa.

Não estamos ainda suficientemente nus.

 

*

 

Chegaram finalmente a Costa Brava, à aldeia de Port del Vent, onde o pai de Vitória, homem de notável mau feitio, que ela nunca chegara a conhecer, passara os últimos meses de vida. Disseram-lhe que morrera ao tropeçar no alto da igreja da aldeia, quando fazia de personagem secundária num filme rodado ali.

Vitória quisera ver o lugar. Na pousada onde ficaram instalados, conheceram Catão, o dono (com um nome que, segundo ele, dizia do imenso amor que os pais tinham à antiguidade clássica), que de imediato se ofereceu para lhes mostrar o cemitério onde estaria o pai. Catão mostrou-lhes Bonet, Sabdell e Norberto Durán. No túmulo do primeiro, pescador da aldeia, lia-se «Não te impeça o caminho da liberdade. Se te apraz, vive; se não te apraz estás perfeitamente autorizado para voltar ao lugar de onde vieste». No de Sabdell, poeta, cujo corpo desaparecera na mar, «Joan Sabdell. Nos dias ímpares, a vida afogava-o muito. Nos dias pares, a vida parecia-lhe uma faca sem lâmina a que falta o cabo». E no de Durán, médico da aldeia, «Nunca a fruta é tão saborosa como quanda passa; o maior encanto da infância encontra-se no momento em que acaba». Em comum, a inscrição tumular C.D.M.S.S.C. – «Morreu com dignidade. A sua sombra passa.» Todos eles tinham feito parte de uma organização secreta – a Sociedade da Noite da Íris Negra – cuja máxima era: desaparecer digna e serenamente após uma grande festa de espírito e após uma vibrante homenagem à amizade e ao amor à filosofia, à maneira de um Catão ou de um Séneca, cujas mortes seriam o mais perfeito exemplo e modelo do suicídio clássico e sereno, profundamente mediterrânico.

O pai de Vitória fora o primeiro a matar-se, a saltar para o vazio, do alto do campanário. Na altura ninguém esperava aquilo. Não tenham pressa, costumava dizer-lhes. O suicídio é um acto afirmativo, podem praticá-lo assim que o desejarem, qual é a pressa? Tenham calma. O que torna suportável a vida é a ideia de que podemos escolher quando escapar.

Catão e Uli, o irmão, homem de cabelos curtos e brancos e a cara muito sulcada, e com aspecto de passáro, que coxeava ligeiramente do pé esquerdo, eram os únicos que ainda estavam vivos. Uli vivia atormentado, por ainda não ter tido coragem de se matar.

Acordámos e estava tudo branco

Folheamos o álbum de família, suas imagens têm a secura térrea das fotos que se arquivam nos registos dos cárceres largando nostalgias por sais de prata. Nelas balizados os devidos marcos cronológicos: as núpcias, a viagem transatlântica, o primeiro filho, o dia em que nevou pela primeira e última vez na nossa cidade. São os marcos que hoje nos escapam: não sabemos como representar as núpcias desenlaçadas antes de fundida a aliança, a viagem em pouca terra, o filho incriado, os dias sem fenómenos. Deixámos por isso de dar continuidade às imagens. A linhagem desemboca onde cessámos a representação. O álbum termina nessa fotografia do dia em que nevou pela primeira e última vez, a paisagem registada como um campo sobre cujas flores um manto branco havia descido sem razão. Fenómeno único, de uma beleza de parábola, nesta cidade do Sul, datado com precisão para que se dissesse neste dia acordámos e estava tudo branco. Uma transformação externa a envolver por dentro. A uniformidade oblíqua de telhados cobertos de neve só interrompida pelas irregularidades das clarabóias. E as coisas sendo então concebidas sob o véu da neve, já mordaça. Pergunto-me em que quartos, em que lucarnas se continuou a pintar com cores pardas as telas atiradas contra as paredes. Pergunto-me quem eram os que se retiravam, incapazes de representar a vida, cristalinamente, sob a imposição do branco.

O dilúvio achega-se


Um conjunto de velhotas/testemunhas de jeová rogou-me pragas por não me ter disponibilizado para lhe abrir a porta. Justificações como “estou de cuecas” ou “estou a tentar concentrar-me para ter pelo menos dez minutos de paz a ver pornografia” não comoveram as senhoras. “O senhor vai pagar pelos seus pecados.” Os meus pecados, presumo, resumiam-se a não as ter autorizado a prosseguir um discurso que começara com a frase: “Temos notícias gravíssimas sobre o mundo.” As velhotas não sabiam com quem se tinham metido. Detesto que me roguem pragas, a última que o fez foi a minha sogra e ficou com o nariz torto. Decidi assustá-las saindo nu à rua, mas elas não só apreciaram como correram na minha direcção como se fossem víboras famintas. A minha sorte foi ter fechado a porta a tempo. Vinguei-me de outra maneira: estiquei a mangueira e cá vai água pelas escadas. Uma das defensoras da moral partiu a dentadura após choque frontal contra o mármore que diariamente tenho de pisar para chegar a uma moradia a que num país civilizado se daria o nome de caixa de fósforos. Tentando resistir à força da água, a outra das religiosas lesionou-se no calcanhar de aquiles e teve de ser logo encaminhada para o hospital mais próximo. Ainda assim, restavam cinco testemunhas de jeová, cinco velhotas que não me saíam da porta. Ameacei violar a minha tia à frente delas. Garanti que espancaria o puto se não desandassem. "Depois do dilúvio, que venha o sangue", grasnou uma delas. Puxei uma faca do lava-loiça e gritei que as matava e escarrei na porta de modo a dar um toque realista à ameaça. Qual quê, as velhotas uivavam e zurravam e pediam vinho e água e sexo e homens fornicadores. Atirei-lhes os restos do frango assado do dia anterior e elas, demoníacas, deglutiram o repasto em menos de um minuto. Em desespero, peguei num martelo e abri a porta. Não sei o que me aconteceu depois. Acordei todo ferido, cheio de marcas de mordidelas e a cheirar a um rodízio de perfumes que só me recordava o mata-moscas que a minha avó usava lá na aldeia. Sei agora que sou um criminoso procurado e por isso já me pus a mexer num autocarro para Espanha. Abri ontem um jornal cuja manchete era a seguinte: "Predador viola cinco idosas em zona fina da cidade."

Alexandre

Alexandre era ainda mais gordo do que Filipe.  Gabava-se: Lá nos acampamentos é uma diferente todas as noites. O seu uniforme de escuteiro e as queixas, quando jogavam à bola, de que tinha o rabinho assado haviam-lhe granjeado fama de larilas. Só se for uma pila, mariconço. E os rapazes riam. Alexandre ria também. Era um tipo alegre. Acompanhava a mãe à missa, acompanhava a mãe às compras. Um bom menino. Quando tirava más notas – e não o podiam acusar de falta de afinco – era sempre a mesma ladainha: se o teu pai fosse vivo isto não acontecia.