Zozobra

Recuerdo que nunca he viajado a Europa.
Sin embargo mis ganas de huir son tan largas. 
Yo vengo de una ciudad que aún no nace en América. 
En el tiempo.
Estoy obligado a decir la verdad.
No sé escribir poemas. 
Dije que un día vendí mi cuerpo a Satán para escribir dramaturgia.
No poemas.
Mi padre escribió poemas como Emily Dickinson o Rimbaud.
Pienso que pudiese escribir un ensayo sobre él. 
Narré que un día leí como separaron Alemania.
Qué tuve miedo y me fui a leer otro tipo de historias cortas.
Explico que no conozco el significado del sexo o la poesía. 
Asumo el dolor como falta equiparable a mi destino.  
Quiero dar entender que nunca aprendí a escribir poemas.
Quizás círculos.
Manchas en el suelo.
Imagino que no salvaré al mundo. 
Lo repito constantemente en mis sueños.  
Quien me salve tendría que ser un poeta del movimiento Alt Lit.

Cortan los dedos de mi mano izquierda. 
Tiene color la mugre cuando se encuentra con la sangre.
Un musgo reverdece en mi pensamiento. 
Hay algo más que juntar las piezas de un rompecabezas.
Desarrollo un pensamiento crítico sobre un posible fin del mundo.
En la literatura. 
Hay un animal que se extingue por las noches.
Al nacer tuve un día infinito como el amor de mi madre. 
Cuando era niño supongo estaba muerto. 
Hablan de cortar las orejas.
Vuelvo a repetir.
Yo nunca aprendí a escribir poemas.
Quizás sea necesario cortar la garganta.


Dois poemas

a manhã rimou pobre  
de barcos e vertigens
ao invés disso um negro
cobrado à noite e o
vermelho arrancado ao
avesso do próprio corpo 

salvo o sangue
a delinear contornos nos
baldios de nenhum rosto
o teu rosto nos antípodas
mais as sombras suicidas
que se alongam aos pares
pelo esteio das entrelinhas

ou se jogam aos carris
(os carris de linhas lembras-
-te como no antigamente)
ignorando que apesar de tudo
apesar de a loucura desculpar
quedas desvarios mãos órfãs
gritos ruivos abraços rombos

apesar de tudo
basta lembrarmo-nos   
que nunca se desmorre. 

 


 

“Por um desvio semântico qualquer, que os filólogos ainda não estudaram, passámos a chamar manhã à infância das aves.”
                                                                                                                                                                                                                                          Carlos de Oliveira, Sobre o Lado Esquerdo


claves de sol no estendal
da pauta: a manhã como
partitura na partição do  
verso desde o reverso
ao anverso anterior

antigamente as mãos moídas
por escalas de acromáticos tons  
de staccato a legato o contínuo
vibrato no crepitar da semifusa

ao cordofone a apogiatura:
estilha ou estame de nylon
como ave em asterisco floco
pólen no algodão dos freixos
cuja ordem se tem confusa

a mesa ao centro a luz ao lustre
jarras de ébano violino aos molhos
depostos em memória de alguém
que talvez nunca tenha existido

o arco reteso às arcadas em
pórtico movimento: o lá afina
e desafina pela fisga do diapasão
símeis aves na manhã turva
a alma em f de aceradas cerdas
poalha resina ou rubato resignar
 
como nota em rima fusa
na trama que a malha cria
por arredios nós junto ao
dobre do bordão.

Cinco poemas de Tiago-Reis

“Esclarecendo que o poema
é um duelo agudíssimo
quero dizer um dedo
agudíssimo claro
apontando ao coração do homem.”

Luiza Neto Jorge


Que tua mão, espingarda
de canos cerrados. E as palavras
Letais, por alvejarem
o coração dos homens.


Poema dedicado aos seiscentos anos da Conquista de Ceuta

De pouco nos serve sabermos
as artes de marear, se
barco nenhum navega no horizonte.

Pereceremos
na tortuosa espera do cais.

 



“o paquete para Angola sem nenhum lenço a fungar”

António Lobo Antunes

No cais, nenhum daqueles lenços
lhe era dirigido.
E de solidão chorou
gesticulando adeus à Pátria imóvel.


Primavera em Auschwitz


“Quando pensamos em Auschwitz (…) pensamos sempre que
estava frio e chuva. Mas pior do que isso: 
havia dias lindos de sol e estava calor. E um céu azul.”

Daniel Blaufuks


Sem saber se
bênção ou indiferença
dias havia de sol
em Auschwitz.


Ao suicida, que preso esperando pela tortura. 
Encontrando uma saliência na parede da cela enforcou-se
(no filme “Roma, Cidade Aberta [1945] de Roberto Rosellini). 


Na cela uma luz se fez presença
iluminando na parede
a fuga.


Elogio dos críticos

0- Sempre gostei de críticos (nunca, que me lembre, lhes atirei setas), antigamente porque me guiavam no labirinto cinematográfico, nem sempre bem (a vida é acrobacia, certo?), mas eu acreditava neles e tudo se passava lindamente. Recentemente, porque alguns são uma caixa de ressonância inteligente das obras (ou produtos), e outros porque rasteiram oportunamente os acontecimentos-slogan que conquistaram parte da realidade pós-moderna, contribuindo para o “melhor dos mundos possíveis”. Além disso, o seu défice de senso comum afasta-os aristocraticamente da realidade prosaica, e quando são atacados podem viver a derrota como um belo fatalismo.

1- Um crítico deve estar para lá do autor (figura evanescente que apesar do enfraquecimento ontológico e político ressuscita constantemente para nos lembrar de que nem tudo o que se escreve é ou vertido directamente por um demiurgo ou o resultado sem porquê da escrita automática, alguns autores continuam a ganhar a imortalidade sem necessidade de morrer). Um crítico começa por perceber o texto (embora este “perceber” tenha pano para centenas de mangas), e a partir dele chega ao autor (mesmo quando não quer, neste caso o autor assombra-o). Desta forma, o crítico começa a sua aventura hermenêutica preso a um objecto que o precede, sem contencioso, ele entra na órbita da coisa que quer celebrar (ou aniquilar, embora os bons críticos raramente andem armados). Começa assim, mas depois acelera e vinga-se, esteticamente no mundo da arte, daquela precedência. Se o texto nasce primeiro, o crítico apanha-o rapidamente e cerca-o, às vezes soprando-lhe uma vitalidade que provoca rodopios, lançando-o em espiral até ao escaparate da glória, noutras ocasiões envolve-o num “abraço de urso”, ou ainda escalpeliza-o para revelar, com fanfarras às vezes, que a pilosidade craniana esconde sempre uma careca. Um crítico está, pois, feito para o predomínio, sem o esplendor, contudo, dos autores, certos autores, claro. De uma forma ou de outra, ele só subsiste no hospedeiro, mesmo quando o abandona, reeditando docemente a vitória de Pirro.

2- Agora, a sério (ou: “agora a sério”?). Sem os críticos profissionais (alguns até não são remunerados, mas evitemos mais explicações) o mundo da arte estaria menos monitorizado racionalmente, tudo, ou quase, ficaria nas mãos dos espectadores, que penso não serem especialmente lúcidos, sobretudo nos horizontes restritos de Portugal, onde os juízos de gosto se deixam contaminar pela piedade e pela vingança, onde, fora isso, o isomorfismo é a principal condição de possibilidade do prazer estético (no máximo, gosta-se do que se compreende à primeira; como acolher então qualquer tipo de vanguardismo, a essência da arte?). Não, o espectador não é melhor do que o crítico, muitas vezes, aliás, não passa de um crítico frustrado. Não o é, em primeiro lugar, porque geralmente não conhece tão bem o ecossistema onde a obra emerge e vive; depois, porque não desenvolveu a vertigem de crítico, isto é, um atirar-se à obra sem saber se regressa vivo dela, não se trata de catarse (salvífica, como sabemos), antes da continuação do velho impulso de Empédocles, lançando-se para o interior do vulcão do Monte Etna apenas porque queria saber o que se passava lá dentro; em terceiro lugar, falta ao espectador a visão periférica do crítico, o objecto da crítica está sempre acompanhado por estacas que o mantêm de pé (história, influências, omissões, projecções...), a análise de um filme exige conhecer-se quase toda a história do cinema, por exemplo; por último, um crítico deve ter vocabulário crítico, não tanto como o pletórico conceptualismo de António Guerreiro, mas o suficiente para estar dentro do tom discursivo da obra que aborda.

3- Se me permitem uma conclusão simples: o crítico pode ser um padre que baptiza ou excomunga a obra, mas no essencial ele ajuda o espectador a compreendê-la melhor, e nenhum aspira, apesar de aqui se utilizar alguma terminologia teológica, a substituir a omnisciência divina.

Post scriptum: 

a) Depois de escrever este elogio, li numa crítica de vinhos (sempre me fascinaram as notas de provas vinícolas, poemas aplicados, com papilas gustativas e castas à mistura), feita por Manuel Carvalho e Pedro Garcias para um suplemento do Jornal Público (Fugas), de 26/11/2016, esta bela e precisa nota de intenções: “A crítica que fazemos na Fugas cumpre exactamente esse objectivo de mediação. Como toda a crítica, é subjectiva e vincula apenas quem a faz. Vale o que vale. As notas que atribuímos correspondem a uma avaliação individual, sempre influenciada pelo nosso gosto, e não têm a veleidade de ser definitivas. Na verdade, devem ser sempre relativizadas.”

b) Sei que a minha tese luta contra as reacções virulentas do estruturalismo da década de 60 (prolongadas na actualidade nos campos mais analíticos) ao reino da interpretação. Susan Sontag, estilo heroína pirómana, atacou este reino que, no seu entendimento, nada mais era do que o ressentimento dos medíocres e impotentes contra os génios artísticos. Propunha, pois, substituir a hermenêutica (arma dos imbecis), por um “erotismo artístico”, cujo objectivo seria revelar a obra em si e não o seu sentido, sempre contaminado pela interpretação, diz em “Against Interpretation”: “In place of a hermeneutics we need an erotic of art.” Com isto, os críticos seriam banidos da civilização (e os autores escondidos atrás das obras), substituídos por apontadores neutros (deliramos, bem sei) que iluminariam as zonas nevrálgicas das peças para guiarem os espectadores até ao óbvio das forças espasmódicas que compõem o belo e a verdade.

 

Una forma de arder, 11: Marco Antonio Raya

ÁRDENAS

Toda esa placenta bastaría
para cobijarnos y no ser uña
y uno con la alambrada.

Hermano, anoche
soñé.

Sacábamos un suero dulce
de los ojos de nuestros caballos. Y mi madre
venía a limpiarte las legañas.
Pero ese no eras tú.

 

SWINOUJSCIE

Pasan los días, brotan los embriones y son de fieltro,
goteros del animal que reposa dentro de la carcasa,
que rompe las aguas y aletea:

todo es espuma
cuando las ballenas se pudren a sus pies.


Marco Antonio Raya (Montilla, Córdoba, 1978).

Es Arteterapeuta y Terapeuta Ocupacional. Cree en la escritura como fármaco, en el dibujo como costura, en la fotografía como invocación. La creación como resistencia mínima. Ha colaborado en proyectos como Revista Kokoro o Nanoediciones y en diversas antologías. Tiene un pequeño altar donde guarda los avatares de Maillard, Kristof, Jota-Pérez, Lem, Moore, Plath o McCarthy. Estos dos poemas pertenecen a MONO, su segundo poemario. 

www.marcoantonioraya.com