Rebanhos rebeldes; Relógios; Teologia para peixes; Meditações metalinguísticas

Rebanhos rebeldes

Almas desesperadas eu vos amo.
Murilo Mendes, Mapa

Isto não é um poema.
Isto é uma compilação
de bilhetes suicidas.

Homens aflitos,
meus irmãos de lama,
emprestai-me

        vossos oráculos.

Anjos degredados das Américas,

ex-votos irrecuperáveis,
andrajos em romaria,
somos a membrana esticada sobre o fuste,
não o som que o tambor produz.

Gloriosas vozes da África,

    o que é o talento
        para os acumuladores compulsivos?

– Ave, parricidas sanguinários!
– Ave, renitente pedra de Sísifo!
– Ave, Imperator, morituri te salutant!

Totens – sem tabus – da Europa,

cujas fornalhas devoram
os melhores exemplares
das melhores estirpes
                e cospem

    peles & ossos & falos
            condecorados,

lede, na fachada
das repartições públicas
e nas sedes
das burocracias,
as austeras letras garrafais:

        ARBEIT MACHT FREI.

Sábios camaleônicos da Ásia,
Crusoés tatuados da Oceania,

Manoel de Barros está morto.
E morreu porque ainda preferimos
a funcionalidade dos manuais de especulação financeira
à beleza humilde

                das lagartas.

Inércia, meu único destino.
Inércia, o único destino dos homens
de meu tempo, de meus iguais.
Ao menos, conforta-me a fantasia de que os mártires também
teriam lamentado a partida definitiva do poeta se tivessem
idade suficiente para entender o que ela representa.

Gondwanas tresloucadas,
Laurásias perplexas,

em uma surrada tira de papel, designei-vos
algumas tarefas:

    1. arrancar da mão do professor misericordioso o giz;
    2. ressuscitar Lázaro;
    3. trocar a lâmpada queimada no quarto de hóspedes;
    4. do barro, fazer um deus que se admita negligente.

Sou aquele a quem tentam convencer
de que não sou,
uma palavra à qual se impõe

                univocidade.

Falsas Pangeias globalizadas,

deixai-me admirar, delirantes
como magníficas alucinações,

    as hecatombes.

Ei-las, à sombra imortal
das pirâmides do tempo,

    as hecatombes!


Relógios


All those times I was bored
out of my mind.

Margaret Atwood, Bored


Em cima do piano, eis um relógio. A cada rotação,
                seus ponteiros
                    me massacram.

    Alguém me fala sobre doenças
    e sobre consultas médicas, 
    sobre planos de saúde
    e sobre seguros de vida.

Alguém me fala sobre os preços dos remédios,
        que aumentaram por causa dos altos índices
                        de inflação.

            Alguém me fala sobre meus amigos;
e, ao que parece, quase todos já honraram
    o famigerado axioma bíblico: ao pó retornaram.

            Alguém me fala sobre reencarnação.

        E salienta que, de acordo com determinadas
                            [religiões,
o fenômeno do crescimento vegetativo a nível mundial
                explica-se
            com base na transmigração dos espíritos.

    Confesso: com o fim do espaço público,
    a ideia de um amplo câmbio interplanetário de almas
    (versus a intimidade de minha casa)
                    me tira o sono.

        Prefiro ser enganado pelas manchetes
        e pelos anúncios publicitários
        de meu próprio planeta.
        Prefiro os mortos
        de meu próprio planeta.
        Prefiro também os relógios cruéis
        de meu próprio planeta,

muito embora suas engrenagens,
gáveas de presas anônimas,
ainda conspirem por minha capitulação,
independentemente de qualquer teoria fabulosa
acerca do além-túmulo.

            A arquitetura da tabacaria
            é rude, quase vulgar,
            mas preciso reconhecer: tê-la,
            em sua frouxa metafísica, põe
            minhas cicatrizes em estado
            de graça.

    Olho para mim.
    Olho para meus mortos.
    Olho para o relógio em cima do piano.
    Que tédio.


Teologia para peixes


Minhas nadadeiras, na forma de arpéus,
Enfrentam as surdas correntes do mar.
Arrastando grãos de sal e de areia,
Guelras e escamas seguem a riscar
As águas turvas, a noite cheia.

Dou meio giro, viro-me e miro,
No rosto do céu, sardas prateadas.
Abre-se a mim constelada cidade;
Porém, peixe genioso, prefiro as arcadas
Do santuário devotado à eternidade

Que os pescadores, funestos algozes,
Conhecem pelo nome de estaleiro.
Suas sólidas vigas de ferro fundido
Formam o mapa de um reino estrangeiro,
Abstração cartográfica de autor esquecido.

Confabulemos, companheiros de cardume:
O que são pontos acesos em infinita
Abóbada, isolados, intangíveis, distantes,
Se comparados ao espetáculo que agita
A razão de todos nós, os navegantes?

Pois se volto contra o inquebrantável
Colosso a ponta de meu atrevido nariz,
Tremo em ardoroso, íntimo clamor.
Suas luzes são raras crisálidas febris
A pender das pálpebras do Criador.

E que Criador seria esse, ó mar confidente,
Se me assalta a nítida impressão de que fora
O próprio estaleiro o artesão de todas as coisas?
Perdoe-me tamanho desabafo, mas a aurora,
Quando desponta, sujeita-me a tão duras inquisas.


Meditações metalinguísticas


[ a ]

Fazer poesia é observar a criança levar
a maçã madura à boca e mordê-la
com excepcional ímpeto.

Fazer poesia é dizer à criança da estrofe
anterior: menino, tome cuidado que,
se cair na roupa, deixa nódoa.

Fazer poesia é pendurar os versos
no varal, oferecê-los ao Sol, esperá-los secar;
e, depois, retirá-los, um a um, para sentir
o cheiro fresco de lavanda, que é efeito
do novo amaciante.

[ b ]

Fazer poesia é desfazer nós na garganta
e atá-los e desfazê-los novamente,
sucessivamente, remexidamente,
até a corda puir e sobrar apenas
a garganta.

[ c ]

Fazer poesia é sair à rua para cometer
pequenos delitos, como surrupiar
o volume de preço astronômico que
acumula poeira na estante da livraria.

[ d ]

Fazer poesia é desvendar a paixão
que esteia os sobreviventes
das grandes catástrofes
        – mistério telúrico.

[ e ]

Fazer poesia é saber a hora de parar de
fazer poesia é saber a hora de parar de
fazer poesia.


Cartas de Hamburgo

I
nada aqui falta excepto um encordoamento
de afinidades
a casa leva o seu tempo
ergue-se da secura de lágrimas
um lago de sal vertido
enche-se de empréstimos
doações objectos indesejados e a barca
que nela aporta sobe e desce o canal
sôb bátega vento ou tímida estrela
atravessou já países em cada a desilusão
se plantou no casco fungo em árvore
alastrando as suas fibrilas até estrangular
com paciência a via da vida

voga e vai vazia nas vagas
nenhuma amarra a sustém
caronte não pesa nas suas tábuas
ficou na margem guiando barcos de papel em poças
em cada inscreve um nome que se dilui
amigo pai mãe irmão irmã mortos
nomes como deus ar no oco do corpo
ou batida da língua nos dentes com sopro sibilado
tanto a carregar no porão e vai cheio de nada
e o poema que se escreve é uma onda que recorda
as falsas despedidas prolongando as declarações
com a duração do momento
fósforo para a noite da esperança


II


desafiei a verticalidade inerente ao género
ergui braços para envolver o mundo dar sombra
ao caminhante atear a chama dos sonhos do cérebro
de uma criança ser morada do rato pardo
do esquilo do corvo respigador

os meus séculos anelares suportam-se de tanto
desejo com hastes de aço mártires e amantes
inscreveram com estilete ou chama as suas promessas
muitas delas hoje estão junto do meu coração
ou calam-se esperando o vento como mensageiro

vi impávida pacífica neutra
a ascensão e queda do terror
e permaneço ainda atenta ao que perdura
disfarçado como o outono pelos lábios
das folhas no entardecer do verão

tenho o dever de preservar a dinâmica dos pulmões
e tantas de mim se deram ao milagre da escrita pública
persisto no parque da cidade menos esquecida
por esta mão falando por mim enquanto de si
anseio as minhas raízes se ponham a andar


III


considerai as efémeras e sua loquacidade
a emergência vital por sobre as águas
bailado de instante em sua potência
de olhos distorcidos posso dizer é isto
esta enchente de corpos seguindo
a prédica de Sankt Pauli
a vida tem dois momentos
o entardecer e a aurora entre sexta e domingo

deixo-me ficar sentada no patamar povoo
o público e o privado ou o meu e o vosso mundo
atento aos passos moendo dentes
sendo senão garrafas estilhaçadas sob os pés
estrelas irradiantes à luz passageira
o babelismo da rua acode-me emudecem-me
as seduções e o asco de quem me observa
na oscilação do longe ao perto

nunca estou tão por dentro
como quando a química me enleva
numa homeostasia de pequenas percepções
leio cada mínima variação dos poros
a temperatura as dilatações da menina-do-olho
todos os signos de um outro alfabeto
desenrolando-se em silêncio e no escandecer
dos corpos pela minha vista de muybridge

sou o arco sobre o qual assenta a ponte
da realidade o frio a tremura conhecem-me
a pouco e pouco toda e agora mais sou o sentido
dos sentidos da história da vida do pensamento
estou além escutem considerai
as efémeras à medida que o coração descobre
a linha tendendo para o zero e a manhã
chega no canto da sereia


IV


a proibição tinha lugar pelo jardim
abriam-se porém adendas ao fechar dos olhos
mão enrodilhada na certeza e o tempo
afundando os arroios do rosto
aí espelhou-se o lamento rangente de árvores
um timbre harmonizado com o tambor do corpo

de entre a lama e erva azul de gelo pespontava
a brutalidade do amarelo e branco de narcisos
a nervosa segurança de coelhos e esquilos
julgando os teus passos o fungar o aroma
do batôn cerzidor da fenda do inverno nos lábios
moldados para o beijo o silêncio o chamamento

também outros animais te observam
e vigiam os gestos com medo e desagrado
são como tu mas não retribuis a interrogação
buscas a familiaridade e segues sereno de olhar
perdido em aterragens de patos nos esforços da galinhola preta
mergulhada nas águas desses falsos lagos de superfície vidrada

o mofante riso das cotovias e o saltitar dos destemidos
corvos alegram-te o passeio pelo parque
estes momentos são-te importantes dizem-te
ser este o caminho do desnudamento começando
por te livrares do peso do julgamento do outro
até que a trama da mão se alargue a todo o corpo

ao saíres és confrontado com a suja rudeza
do alcatrão cintilante de vidro e beatas cuspo e vómito
o patético fausto das luzes da dome as buzinas a vozearia
os encontrões e os ainda mais inquisidores olhares ensurdecedores
forçando-te a esquecer e desistir dos alvitres do amor e do futuro
ao longo das ruas de Sainkt Pauli até à montanha de Hamburgo

passas pela efémera ainda presa no seu instante
com ranho a escorrer numa pose de estátua de Gomorra
sobes os degraus de madeira e linóleo vibrando sob o peso da música
interminável e nessa casa de empréstimo aguardas a sua chegada
e do embate da rua o seu olhar e o mundo que és nasce uma resiliência
aderindo e cercando o nó enrodilhado da certeza na mão


V


não te aproximes demasiado
destas águas escorrendo lamacentas
por elas cruzam a obra do homem
e a cada vez a terra é galgada pela luxúria
                            e o suplemento

a queda é vertiginosa
dois três passos e és sorvida
pelo depositado lentamente no fundo
raízes troncos restos de vida
o vidro o plástico o ferro
outras obras desnecessárias
                     um poema
uma carta ao pai pedra para saltar
na superfície quando nela nada
passa
         um olhar perdido no que passou
e verteu amargura nos dias vindouros
um suicida eufórico cães ledos correndo
pela areia fora em saltos
luminosos com o seu pêlo negro

as mãos doadas inoculando o doce
no coração amargo levado pelo olhar

ao redor tudo é aquoso
do céu ao rio e ao teu rosto
um tempo líquido que nos enleva
este e já nenhuma falua nos torna
até belém    a mentira da inocência
já não encontra morada
na boca           que fazemos aqui desenraizados
quanta terra há a percorrer

erigimos uma casa na solidão aguardando
uma visita e ninguém se aproxima destas águas


Crónica Minolta

misteriosamente feliz descia as ramblas
com um joan margarit em mãos pra te oferecer
não foi por falta de aviso não mas o meu peito
erguia-se estreito, justo à chama acesa
da minha camisa e eu sabia que
contra todos os oráculos
ao fundo estaria o teu abraço, o hálito a fideuà, 
um perfume amadeirado, alguma sugestão
modesta das nossas férias em Abu Dhabi.
com cuidado detive-me em pormenores
que a poucos interessariam, por exemplo, 
os enleios de flores nos teus dedos tingidos
de café e melados de donuts do dunkin’ coffee.
seguiam-se as minhas orelhas mareadas
pela caruma do frio, o meu cabelo oleoso de dias
de viagem, de horas dissipadas em aeroportos
com uma única certeza:
eu vim da califórnia pra te ver, 
do pacífico pra te beijar no mar de las baleares.

Amante à moda Antífona; Uma visita; Mãe; Fibra; Cinemascope

AMANTE À MODA ANTÍFONA

queria um perfume de longe
deu-lhe um atavio encarnado
pediu um ônix
trouxe-lhe as minúcias de um salmo
esperava um paiol
entregou-lhe um feixe de blandícia
sugeriu um cruzeiro
deu-lhe o eclipse
pediu um carro zero
deu-lhe uma safra inteira de sigilo



UMA VISITA

O ourives - vir de tão
longe - no centro da sala
despliega um céu de
rubro terciopelo e
a mãe em seus vestidos de
beleza simples não
escolher nenhuma
estrela



MÃE

estranho só agora
posso medir esse tempo em
que vivemos chamando um
pelo outro - aquela perenidade
menor a cada dia


FIBRA

Arranca do corpo a
camisa listrada levemente
defumada de suor e salga
Nas ranhuras da pedra
água e detritos de um
sabão de cor azul - 
tempo inestimável
Até prender-se à grade
da janela deixando que
a gravidade e o vento
refaçam esse afinco: arrancar
fio por
fio
a memória dura de esvair-se


CINEMASCOPE

Longe, sob a luz do deserto, move-se um coágulo mínimo de poeira, até então imperceptível e que, através de um raro concerto de intuição e estratégia, o protagonista - único ser que o distingue, tem certeza tratar-se de um desafeto.
Desvencilhado agora da indeterminação e da interferência difusa das imediações, esse ponto já se encontra sob a mira de um rifle prestes a alvejá-lo. E após um silêncio mais denso, tudo se resolve num só estampido que o eco se encarrega de multiplicar pelas entranhas do canyon.
Aos poucos a música retorna, enquanto ao longe o vulto se contorce fulminado por esse único projétil que atravessou a pradaria e foi se alojar num ponto vital.
Feito o acerto, o protagonista retorna ao lugarejo, onde passará agora a demonstrar sua destreza em planos mais fechados.


'Só existe cultura plural. E no plural.' Sergio Maciel entrevista Guilherme Gontijo Flores

Guilherme Gontijo Flores, 2014 (Fonte: Gazeta do Povo)

Guilherme Gontijo Flores, 2014 (Fonte: Gazeta do Povo)

 

recentemente eu, sergio maciel, comecei uma série de entrevistas com poetas contemporâneos brasileiros. de algum modo, entrevistas sempre foram, para mim, algo um tanto interessante; como se aquela figura famosa cercada de uma aura intocável mostrasse a falibilidade humana a cada resposta. esta entrevista é a segunda parte dessa série, que começou com uma entrevista com a poeta adelaide ivánova, publicada no escamandro e se deu menos por motivos de curiosidade e vontade de descobrir as ideias do entrevistado do que para registrar boa parte das coisas que temos conversando informalmente nesses últimos anos. gosto de acreditar que isso se dará assim, como um registro onde se possa verificar, daqui certo tempo, as próprias crenças e contrastar, revisar, eventualmente. guilherme gontijo flores é professor de literatura & língua latina na universidade federal do paraná (UFPR), tradutor (traduziu, entre outras coisas, as elegias de sexto propércio; a anatomia da melancolia, de robert burton; as odes de horácio & os fragmentos de safo) & poeta (publicou em 2013 seu primeiro livro de poesia, brasa enganosa, que foi finalista do prêmio portugal telecom; em 2015 publicou suas tróiades – remix para o próximo milênio; em 2016, l’azur blasé ou ensaio de fracasso sobre o humor). sem mais, passemos às palavras do entrevistado.

Talvez esse seja o maior clichê de todas as entrevistas com poetas, mas eu ainda creio que todas as repostas dadas, ainda que também clichês, sejam sempre blocos de uma construção que gostaríamos de ver pronta de uma vez por todas. Quase repito aqui uma pergunta feita a Anne Carson, você tem uma definição pessoal sobre o que é poesia? Se sim, como a partir dela você concebe seus poemas, seu ato de escrita e o próprio papel de sua poesia?

Não tenho definição pessoal, mas vivo dela, e esse não-saber me fascina. Desde que comecei a estudar poesia, fui atrás de tradições diversas (poesia grega, romana, ameríndia, árabe, egípcia, persa, chinesa, japonesa, moderna, vanguardista, etc.) e vi que as definições, práticas e possíveis funções variam muito. Ela pode curar, matar, provocar transes, devires, seduzir, deslocar, enfim, é o meio mais radical de performar no humano por meio da linguagem (será que fiz uma definição?). Talvez seja por isso que tento, nos últimos anos, escrever para além do que me foi dado na minha tradição como dever da poesia; claro, isso não é nenhum sonho de novidade pura, mas de testar mesmo o que pode ser poesia pra mim. E talvez esse fazer que é uma busca seja o fazer poesia.

Se pensarmos em termos de um paideuma, qual relação você estabelece entre seus textos, suas traduções, suas performances e, até mesmo, sua profissão? A questão é: considerando seu interesse por um corpo-político, pela voz, pelos limites da questão do autor, para você, é possível traçar algum limite entre esses campos? É tudo obra de um mesmo corpo? Se sim, qual influência objetiva esses gestos exercem sobre os outros?

Gosto de sonhar um corpo que se desmonta e se desdobra, como nos sonhos as coisas e pessoas mudam porém permanecem as mesmas, ou estamos em locais que conhecemos por nome, mas nunca vimos na vida. Se for assim, há um contínuo disruptivo entre escrever um poema que assino como meu e escrever um poema que assino como tradução, e também em performar vocalmente essas produções, bem como os poemas em outras línguas ou poemas de outros autores. Sei que o sonho é já uma política, naquele sentido amplo que vem se perdendo em nosso país, e busco que essa pluralidade de vozes alheias (em tradução, intradução) que atravessam novos corpos pode ser um verdadeiro exercício de alteridade: sem o fetichismo teórico de termos que por vezes se esvaziam (alteridade é dessas palavras que, de tanto a repetirem na academia, talvez já diga muito pouco), mas que por ser mesmo experimental nos dá alterações.  Mas você me perguntou de influência objetiva, e eu realmente não sei responder. É claro que tenho poemas próprios que são feitos via tradução, portanto usurpações, diálogos intensos de vozes, alheamento da minha própria quem sabe. Por outro lado, também traduzo como quem precisa dessas traduções, como quem anseia ter escrito aqueles poemas já escritos e usa a chance da língua alheia como desculpa para criar na língua própria. Seria isso objetivo? A tradução como anseio criativo, e a criação como demanda tradutória?

Há um maniqueísmo meio besta no mundo que quer dividir as coisas entre livro impresso e digital, revista literária e blog, poesia e canção &c. Partindo dessa dicotomia que o povo faz, quero saber se você acha que há alguma diferença estética ou formal, não política, se é que é possível separar essas coisas num discurso, entre poéticas masculinas e femininas. E, se há, como lidar, então, com as poéticas de um corpo-poético trans, como o de Georgette Dee, por exemplo?

Cada vez mais acho que nossa obsessão categórica diante do mundo é um perigo, no pior dos sentidos. Até hoje, por exemplo, não conseguimos dar a devida atenção às literaturas que não se restringem ao livro como meio (penso nas poéticas online em várias línguas, nos pixos, nas poéticas orais de povos minoritários, e até mesmo na canção - veja o bafafá do Nobel dado a Dylan). Sobre o canto de Georgette Dee, ou como faz-se poesia a partir desse corpo trans, certamente eu não sei responder um modelo do “como lidar”.  Talvez possa apenas propor uma abertura para ouvir, de fato ouvir o que se fala naquele corpo, porque ele ressignifica tudo, como todo corpo ressignifica (outro dia andei pensando no termo “assignificar”, como “a-significar”, tirar do sentido e “ad-significar”, dar uma assinatura: assinar como dar o sentido do corpo, que extrapola o sentido de uma linguagem pura, para pensarmos a linguagem como corpo). Num livro que terminei de escrever com Rodrigo Tadeu Gonçalves, nós comentamos uma canção cantada por Dee: nela, ouvimos o desejo “Zehn Frauen muss ich sein” (“Dez damas quero ser”, na minha tradução). Bom, o poema é um experimento ficcional de Erich Kästner; mas no corpo de Dee é impossível não pensar que sua sexualidade está em jogo no poema, ele, quando é cantado por Dee, torna-se um discurso do corpo que se apresenta politicamente. E nós precisamos ouvir esse poema de quem deseja ser uma mulher. Freud se perguntava “O que quer uma mulher?”, e nós precisamos nos perguntar também “O que é querer ser mulher?”. Certamente não haverá resposta fácil, mas há como ouvir.

O que mais te atrai em termos de poética hoje? Quais poéticas contemporâneas, tanto nacional quanto estrangeira, têm tomado mais o seu tempo? Quais poetas? E por quê?

Quando penso em contemporaneidade, sigo os passos de Eliot, Pound e dos concretos. Há um sincronismo panhistórico em jogo. Nesse sentido, a poesia contemporânea que mais me fascinou nos últimos tempos sãos escritos em língua náhuatl (dos astecas) feitos pelos espanhóis ainda no século XVI. É uma poesia viva e poderosa que me diz muito sobre o massacre indígena em curso no Brasil ainda agora, que me lança a pensar sobre problemas de antropologia, poética, tradução, performance, etc. Mas tenho lido muitos contemporâneos no sentido estrito, dentro e fora do Brasil. Em vez de citar nomes, eu diria apenas a um certo filão lamentatório que insiste em afirmar que não há poesia interessante no presente: deixem o mimimi e vão ler as obras, vão procurar as obras; essa reclamação deixa claro que eles não viram um décimo do que está por aí, não vasculharam as pequenas editoras, os sites, os blogs, as revistas, etc. Pelo contrário, arrisco dizer que vivemos um momento impressionante, sobretudo na poesia brasileira, com uma potência de poéticas muito diversas e, ao mesmo tempo, capazes de conviverem como há muito tempo não víamos.

Aproveitando o gancho da pergunta anterior, se você tivesse que indicar vinte livros de poesia contemporânea, publicados nos últimos dez anos, quais seriam?

Bom, você insistiu né? Vamos lá, vinte livros dos últimos dez anos, só no Brasil, sem pensar muito no assunto. Quando terminei já tinha em mente mais pelo menos uns 10 autores que ficaram de fora.

2016Seiva veneno ou fruto, de Júlia de Carvalho Hansen

         Furiosa, Ana Rüsche

         Siga os sinais da brasa longa do haxixe, de cavalodadá (Reuben da Rocha)

2015           Os ilhados, de Ismar Tirelli Neto

2014           Transformador, de Dirceu Villa

         A duração do deserto, de Nina Rizzi

2013           Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas

         Quando a Terra deixou de falar (cantos da mitologia marubo, por Pedro Cesarino)

                   Lira de lixo, de Adriano Scandolara

2012           Ciclo do amante substituível, de Ricardo Domeneck

2011           Roça barroca, de Josely Vianna Baptista

         Os dias ímpares, de Sergio Blank

2010           Modelos vivos, de Ricardo Aleixo

2009           Monodrama, de Carlito Azevedo

         Yãmixop xunim yõg kutex xi ãgtux xi hemex yõg kutex: cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex (autores da Terra Indígena do Pradinho, org. final de Rosângela Pereira de Tugny)

2008           Tratado dos anjos afogados, de Marcelo Ariel

         Cinco lugares da fúria, de Pádua Fernandes

2007           Baque, de Fábio Weintraub

2006           Margem de manobra, de Claudia Roquette-Pinto

         Estamira, filme de Marcos Prado sobre essa mulher. Há também um livro.

O peso dos concretos na nossa vida é algo inegável. Houve, inclusive, quem tenha conseguido ver no seu primeiro livro de poesia algo haroldiano. Na condição de tradutor e poeta, como você lida com essa influência? Pra você há uma espécie de “angústia”? Que caminhos a crítica poética e tradutória deve tomar daqui pra frente?

Não sinto angústia. Haroldo de campos é uma figura fundamental, mas tenho pouca afinidade com sua poesia autoral; retorno sempre à sua escrita teórica e crítica, e sempre mesmo às suas traduções.

Mas que caminhos a crítica poética e tradutória deve tomar? Eu não sou prescritor de regras. Se for pra sugerir algo, diria que devem deixar de ser caretas, procurar correr risco.

Você tem algum poeta que permaneceu com você desde a primeira a leitura, que vem atravessando os anos ao seu lado e que, de alguma forma, te influencia?

Rimbaud foi minha primeira experiência poética de quase-maturidade. Eu devia ter uns 17 anos. Já tinha lido Bandeira, Drummond, Andrades, etc., que também continuam comigo, mas de modo muito diverso. Rimbaud, curiosamente, só cresce, embora eu o releia muito pouco. Outro que parece só ficar maior é Whitman. E Drummond. E cummings. E Ungaretti. E Horácio. E Safo. E Homero. Pronto, já exagerei, acho que carrego muita gente comigo.

Considerando que nosso tempo não mais cultiva, ao menos deliberadamente, a ideia de um gênio contemporâneo (porque ainda há por aí essa ideia do gênio em Shakespeare, Dante, Goethe e tantos outros clássicos, por exemplo) e que o rótulo de erudito é uma coisa bem ultrapassada, alguns diriam até impossível atualmente, como você lida e compreende as ideias de “cultura”, “clássico”, “tradição” e “conhecimento”, que sempre estiveram relacionadas a uma elite intelectual e econômica? Qual é a serventia dessas coisas no nosso mundo? Como você trabalha com enxerga e trabalha com a transmissão disso tudo na sua profissão de professor?

Só existe cultura plural. E no plural. O que a gente chama de educação, na nossa sociedade, deveria servir pra gerar um engajamento crítico na formação dos cinco sentidos, e esse engajamento é feito de dissenso, não de harmonia pedagógica. Mas, sabemos, não é bem o que acontece. Então, não acho que alguém tenha qualquer dever de conhecer “os clássicos”; mas dificilmente alguém vai perder tempo se parar pra olhar o que tem ali com calma. A tradição é assim, como diz a etimologia, um entregar através, um dizer para além, que a gente pode ou não repetir. Ou pode, como eu mesmo tento no mundo de letras clássicas, dizer de um jeito todo outro, que parece mesmo nem repetir quando bem repete. É outro sonho.