Pier Paolo Pasolini, "Os jovens infelizes"


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Tradução: João Coles


Um dos temas mais misteriosos do teatro trágico grego é a predestinação dos filhos em pagar pela culpa dos pais. Não importa se os filhos são bons, inocentes, pios: se os pais pecaram, têm de ser punidos. É o coro – um coro democrático – que se declara portador de tal verdade: e enuncia-a sem a introduzir ou ilustrá-la, como lhe parece natural. Confesso que este tema do teatro grego sempre o aceitei como algo alheio ao meu conhecimento, que aconteceu «algures» e «noutro tempo». Não sem alguma ingenuidade escolástica, sempre considerei este tema como absurdo e, por sua vez, ingénuo, «antropologicamente» ingénuo.

Mas mais tarde chegou o momento da minha vida em que tive de admitir pertencer, sem escapatória, à geração dos pais. Sem escapatória porque os filhos não só nasceram, não só cresceram, mas alcançaram a idade da razão, e o seu destino, portanto, começa a ser inelutavelmente aquele que deve ser, tornando-se adultos.

Observei com tempo nos últimos anos estes filhos. Ao fim e ao cabo, o meu juízo, por muito que me pareça também injusto e impiedoso, é de condenação. Procurei muito compreender, fingir não compreender, contar com as excepções, esperar por alguma mudança, considerar historicamente, isto é, além dos juízos subjectivos do mal e do bem, a realidade deles. Mas foi inútil. O meu sentimento é de condenação. Os sentimentos não mudam. São eles que são históricos. É isso que experienciamos, que é real (apesar de toda a insinceridade que possamos ter com nós próprios). Afinal – ou seja hoje, dias primeiros de 75 – o meu sentimento é, repito, de condenação. Mas posto que, talvez, condenação é a palavra errada (ditada, talvez, pela referência inicial ao contexto linguístico do teatro grego), tenho de a especificar: mais do que uma condenação, o meu sentimento é, de facto, uma «cessação de amor»: cessação de amor que, com efeito, não dá lugar ao «ódio» mas à «condenação».

Eu tenho algo de geral, de imenso, de obscuro a reprovar aos filhos. Algo que fica aquém do verbal: que se manifestem irracionalmente, no existir, ao «experienciar sentimentos». Agora, posto que eu – pai ideal – pai histórico – condeno os filhos, é natural que, subsequentemente, aceite de algum modo a ideia do seu castigo.

Pela primeira vez na minha vida consigo assim libertar da minha consciência, através de um mecanismo íntimo e pessoal, aquela terrível, abstracta fatalidade do coro ateniense que reitera ser natural o «castigo». Acontece que o coro, dotado de tanta imémore e profunda sabedoria, acrescentava que aquilo de que os filhos eram castigados era a «culpa dos pais».

Pois bem, não hesito nem um momento em o admitir; isto é, em aceitar pessoalmente tal culpa. Se eu condeno os filhos (por causa de uma cessação de amor para com eles), e portanto lhes pressuponho um castigo, não tenho dúvidas de que tudo isto acontece por minha culpa. Enquanto pai. Enquanto um dos pais. Um dos pais que não se tomaram como responsáveis, primeiro, do fascismo, depois de um regime clérico-fascista, falsamente democrático, e que, por fim, aceitaram a nova forma de poder, o poder dos consumos, a derradeira das ruínas, a ruína das ruínas.

A culpa dos pais que os filhos têm de pagar é, portanto, o «fascismo», seja nas suas formas arcaicas, seja nas suas formas inteiramente novas – novas sem equivalentes possíveis no passado? É difícil para mim admitir que a «culpa» é esta. Talvez por razões privadas e subjectivas. Eu, pessoalmente, sempre fui antifascista, e não aceitei nunca o novo poder de que realmente falava Marx, profeticamente, no Manifesto, acreditando que falava do capitalismo do seu tempo. Quer parecer-me que há algo de conformista e demasiado lógico – ou seja, de não-histórico – ao identificar nisto a culpa.

Já ouço à minha volta o «escândalo dos pedantes» – seguido da sua chantagem – ao que estou para dizer. Já consigo ouvir os argumentos deles: é retrógrado, reaccionário, inimigo do povo, que é incapaz de compreender os elementos mais dramáticos de novidade que existem nos filhos, incapaz de compreender que estes são, ainda assim, vida. Pois bem, penso eu, desde que também eu tenha direito à vida – pois, mesmo sendo pai, não é por isso que deixo de ser filho. Além do mais, para mim a vida pode manifestar-se egregiamente, por exemplo, na coragem em desvelar aos novos filhos o que realmente sinto para com eles. A vida consiste antes de mais no impertérrito exercício da razão: incerto nos partidos tomados, e muito menos no partido tomado pela vida, que é um qualunquismo[1] puro. É melhor ser inimigo do povo do que inimigo da realidade.

Os filhos que nos rodeiam, especialmente os mais jovens, os adolescentes, são quase todos eles monstros. O seu aspecto físico é quase aterrador, e quando não é aterrador é incomodamente infeliz. Pelames horríveis, cabeleiras caricaturais, carnaduras pálidas, olhos apagados. São máscaras de uma certa iniciação bárbara. Ou então são máscaras de uma integração diligente e inconsciente, que não faz ter dó.

Depois de terem erguido contra os pais barreiras destinadas a relegar os pais ao gueto, os filhos encontraram-se eles mesmos enclausurados no gueto oposto. No melhor dos casos, estão agarrados aos arames farpados desse gueto, olhando para nós, todavia homens, como mendigos desesperados, que pedem algo apenas com o olhar, porque não têm coragem, nem talvez a capacidade de falar. Estes nem nos melhores, nem nos piores casos (são milhões) têm expressão alguma: só a ambiguidade feita carne. Os seus olhos em fuga, o seu pensamento perpetuamente alhures, têm demasiado respeito ou demasiado desprezo juntos, demasiada paciência ou demasiada impaciência.

Aprenderam algo mais do que os seus coetâneos de há dez ou vinte anos atrás, mas não o suficiente. A integração não é um problema moral, a revolta codificou-se. No pior do casos, criminosos puros e duros. Quantos são estes criminosos? Na verdade, podiam ser quase todos. Não há um grupo de rapazes que se encontre pela rua que não pudesse ser um grupo de criminosos. Estes não têm luz alguma nos olhos: os traços são traços contrafeitos de autómatos, sem que nada de pessoal os caracterize vindo de dentro.

A estereotipia faz deles traiçoeiros. O silêncio deles pode preceder a um trépido pedido de ajuda (que ajuda?), ou pode preceder a uma facada. Eles não são donos dos próprios actos, que é o mesmo que dizer dos seus músculos. Não conhecem bem qual a distância entre causa e efeito. Regrediram – sob o aspecto exterior de uma maior educação escolástica e de uma melhor condição de vida – para uma rudez primitiva. Se por um lado falam melhor, ou seja assimilaram o degradante italiano médio – por outro lado, são quase afásicos: falam velhos dialectos incompreensíveis, ou calam-se, lançando de quando em vez gritos guturais e interjeições todas elas de carácter obsceno.

Não sabem sorrir nem rir. Sabem apenas rir com desdém ou casquinar. Nesta enorme massa (típica, sobretudo, uma vez mais!, do inerme Centro-Sul) existem elites nobres, às quais pertencem naturalmente os filhos dos meus leitores. Mas estes meus leitores não quererão afirmar que os seus filhos são rapazes felizes (desinibidos ou independentes, como acreditam e repetem certos jornalistas imbecis, comportando-se como enviados fascistas num lager). A falsa tolerância também tornou significativas, no seio da massa dos homens, as mulheres. Elas são geralmente, pessoalmente, melhores: vivem efectivamente um momento de tensão, de libertação, de conquista (ainda que de modo ilusório). Mas no quadro geral a sua função termina ao ser regressiva. Uma liberdade «oferecida», com efeito, não pode vencer nelas, naturalmente, os hábitos seculares da codificação.

Claro: os grupos de jovens cultos (de resto, muito mais numerosos que em tempos) são adoráveis porque dão dó. Estes, por causa de circunstâncias que para as grandes massas são até agora somente negativas, e atrozmente negativas, são mais avançados, subtis, informados do que os grupos análogos de dez ou vinte anos atrás. Mas o que podem fazer da sua fineza e da sua cultura?

Portanto, os filhos que vemos à nossa volta são filhos «castigados»: «castigados», enquanto isso, pela sua infelicidade, e mais tarde, no futuro, quem sabe de quê, de quais hecatombes (este é o nosso sentimento, insuprimível). Mas são filhos «castigados» pelas nossas culpas, isto é, pela culpa dos pais. É justo? Era esta, na verdade, para um leitor moderno, a pergunta, sem resposta, do motivo dominante do teatro grego.

Pois bem, sim, é justo. O leitor moderno viveu uma experiência que lhe torna finalmente, e tragicamente, compreensível a afirmação - que parecia tão cegamente irracional e cruel – do coro democrático da antiga Atenas: ou seja, que os filhos têm de pagar pelos pecados dos pais. Efectivamente, os filhos que não se libertam da culpa dos pais são infelizes: e não há sinal mais decisivo e imperdoável de culpa do que a infelicidade. Seria demasiado fácil e, num sentido histórico e político, imoral, que os filhos se justificassem – naquilo que neles há de feio, repelente, desumano – pelo facto de que os pais erraram. A herança paterna negativa pode dar-lhes uma justificação pela metade, mas pela outra metade são eles os responsáveis. Não há filhos inocentes. Tiestes é culpado, mas também o são seus filhos. E é justo que sejam castigados também por aquela metade de culpa alheia da qual não foram capazes de se libertar.

Permanece sempre, todavia, o problema de qual é na verdade a tal «culpa» dos pais. É isto que substancialmente, ao fim e ao cabo, importa aqui. E é tão importante na medida em que, tendo provocado nos filhos uma condição tão atroz e um consequente castigo tão atroz, deve tratar-se de uma culpa gravíssima. Talvez a culpa mais grave cometida pelos pais em toda a história da humanidade. E estes pais somos nós. Coisa que nos parece incrível.

Como já aludi entretanto, devemos libertar-nos da ideia de que tal culpa se identifica com o fascismo velho ou novo, isto é, com o efectivo poder capitalista. Os filhos que hoje são tão cruelmente castigados pelo seu modo de ser (e no futuro, claro, por qualquer coisa mais objectiva e terrível), são também filhos de antifascistas e de comunistas. Portanto, fascistas e antifascistas, patrões e revolucionários, têm uma culpa em comum. Todos nós, de facto, até hoje, com um racismo inconsciente, quando falámos especificamente de pais e filhos, pensámos sempre que estávamos a falar dos pais e dos filhos burgueses.

A história era a sua história. O povo, de acordo connosco, tinha uma história à parte, arcaica, na qual os filhos, simplesmente, como ensina a antropologia das velhas culturas, reencarnavam e repetiam os pais. Hoje mudou tudo: quando falamos de pais e filhos, se por pais continuamos a presumir os pais burgueses, por filhos presumimos que sejam tanto os filhos burgueses como os filhos proletários. O quadro apocalíptico que esbocei acima, dos filhos, engloba burguesia e povo.

As duas histórias, portanto, uniram-se: e é a primeira vez que isto acontece na história do homem. Tal unificação sucedeu sob o signo e vontade da civilização do consumo: do «progresso». Não se pode dizer que em geral os antifascistas, e particularmente os comunistas, se tenham deveras oposto a uma unificação do género, cujo carácter é totalitário – pela primeira vez verdadeiramente totalitário – apesar de o seu carácter repressivo não ser arcaicamente policial (e quando muito recorre a uma falsa permissividade).

A culpa dos pais, portanto, não é apenas a violência do poder, o fascismo. Mas também: primeiramente, a remoção da consciência, por parte de nós antifascistas, do velho fascismo, termo-nos comodamente libertado da nossa profunda intimidade (Pannella) com este (termos considerado os fascistas «os nossos irmãos parvos», como diz uma frase de Sforza relembrada por Fortini); segundo, e sobretudo, a aceitação – tão culpada quanto inconsciente – da violência degradante e dos verdadeiros, imensos genocídios do novo fascismo.

Porquê tal cumplicidade com o velho fascismo e porquê tal aceitação do novo fascismo? Porque há – e eis o ponto da questão – uma ideia condutora sincera ou desonestamente comum a todos: ou seja, a ideia de que o mal maior do mundo é a pobreza e que por isso a cultura das classes pobres deva ser substituída pela cultura da classe dominante.

Noutras palavras, a nossa culpa enquanto pais consistiria no seguinte: em acreditar que a história não é nem possa ser outra senão a história burguesa.

In Lettere luterane

1 NT: o “qualunquismo” está associado ao movimento político Fronte dell'uomo qualunque (Frente do homem qualquer, ad litteram), que nasceu da revista homónima publicada em Dezembro de 1944 por Guglielmo Giannini. O “qualunquismo” caracteriza-se pela desconfiança nas instituições, nos partidos políticos, na classe política e na política em geral, que é considerada um obstáculo à autonomia e à livre escolha do indivíduo. No debate político, o termo “qualunquista” é geralmente utilizado de modo pejorativo. É uma atitude condenada por indivíduos politicamente activos na sociedade, como Pasolini, que sublinham os riscos da renúncia em participar num sistema democrático.

Pier Paolo Pasolini, "Versos do testamento"


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Tradução de João Coles


Versos do testamento

Solidão: é preciso ser muito forte
para amar a solidão; é preciso ter boas pernas
e uma resistência fora do comum; não se deve arriscar
uma constipação, uma gripe ou dor de garganta; não se deve temer
ladrões ou assassinos; se calhar caminhar
durante toda a tarde ou talvez toda a noite
é preciso sabê-lo fazer sem se dar conta; sentar-se não tem lugar;
uma espécie de inverno; com o vento que sopra sobre a relva molhada,
e as pedras entre o lixo húmidas e enlameadas;
não há qualquer conforto, isso sem sombra de dúvidas,
a não ser o de ter pela frente todo o dia e toda a noite
sem deveres ou limites de qualquer natureza.
O sexo é um pretexto. Por muitos que sejam os encontros
- e mesmo no inverno, nas ruas abandonadas ao vento,
entre as pilhas de lixo encostadas aos prédios distantes,
que são muitos – não são senão momentos da solidão;
mais quente e vivo é o corpo gentil
que unge de sémen e desaparece,
mais frio e mortal é o dilecto deserto em volta;
é esse que enche de alegria, como um vento milagroso,
não o sorriso inocente, ou a turva prepotência
de quem se vai embora; ele leva atrás de si uma juventude
enormemente jovem; e nisto é desumano,
pois não deixa rasto, ou melhor, deixa só um rasto
que é sempre o mesmo em todas as estações.
Um rapaz nos seus primeiros amores
não é senão a fecundidade do mundo.
E o mundo assim chega com ele; aparece e desaparece,
como uma forma que se transmuda. Todas as coisas permanecem intactas,
e tu poderás percorrer meia cidade que não voltarás a encontrá-lo;
o acto foi cumprido, a sua repetição é um rito. Portanto,
a solidão é ainda maior se uma multidão inteira
aguarda a sua vez: aumenta, de facto, o número de desaparecimentos -
ir-se embora é fugir – e o seguinte paira sobre o presente
como um dever, um sacrifício a cumprir pela vontade de morte.
Envelhecendo, porém, o cansaço faz-se sentir,
particularmente no momento imediato após a hora de jantar,
e para ti nada mudou: e então por um triz não gritas nem choras;
e isto seria enorme se não fosse apenas cansaço,
e talvez um pouco de fome. Enorme, pois significaria
que o teu desejo de solidão não mais poderia satisfazer-se
e então o que te espera, se o que não é considerado solidão
é a verdadeira solidão, aquela que não consegues aceitar?
Não há jantar ou almoço ou satisfação do mundo,
que valha um passeio sem fim pelas ruas pobres
onde precisamos de ser desgraçados e fortes, irmãos dos cães.

In Trasumanar e organizzar (1971)


Versi del testamento

Solitudine: bisogna essere molto forti
per amare la solitudine; bisogna avere buone gambe
e una resistenza fuori dal comune; non si deve rischiare
raffreddore, influenza e mal di gola; non si devono temere
rapinatori o assassini; se tocca camminare
per tutto il pomeriggio o magari per tutta la sera
bisogna saperlo fare senza accorgersene; da sedersi non c’è;
specie d’inverno; col vento che tira sull’erba bagnata,
e coi pietroni tra l’immondizia umidi e fangosi;
non c’è proprio nessun conforto, su ciò non c’è dubbio,
oltre a quello di avere davanti tutto un giorno e una notte
senza doveri o limiti di qualsiasi genere.
Il sesso è un pretesto. Per quanti siano gli incontri
- e anche d’inverno, per le strade abbandonate al vento,
tra le distese d’immondizia contro i palazzi lontani,
essi sono molti – non sono che momenti della solitudine;
più caldo e vivo è il corpo gentile
che unge di seme e se ne va,
più freddo e mortale è intorno il diletto deserto;
è esso che riempie di gioia, come un vento miracoloso,
non il sorriso innocente, o la torbida prepotenza
di chi poi se ne va; egli si porta dietro una giovinezza
enormemente giovane; e in questo è disumano,
perché non lascia tracce, o meglio, lascia solo una traccia
che è sempre la stessa in tutte le stagioni.
Un ragazzo ai suoi primi amori
altro non è che la fecondità del mondo.
E’ il mondo così arriva con lui; appare e scompare,
come una forma che muta. Restano intatte tutte le cose,
e tu potrai percorrere mezza città, non lo ritroverai più;
l’atto è compiuto, la sua ripetizione è un rito. Dunque
la solitudine è ancora più grande se una folla intera
attende il suo turno: cresce infatti il numero delle sparizioni –
l’andarsene è fuggire – e il seguente incombe sul presente
come un dovere, un sacrificio da compiere alla voglia di morte.
Invecchiando, però, la stanchezza comincia a farsi sentire,
specie nel momento in cui è appena passata l’ora di cena,
e per te non è mutato niente: allora per un soffio non urli o piangi;
e ciò sarebbe enorme se non fosse appunto solo stanchezza,
e forse un po’ di fame. Enorme, perché vorrebbe dire
che il tuo desiderio di solitudine non potrebbe essere più soddisfatto
e allora cosa ti aspetta, se ciò che non è considerato solitudine
è la solitudine vera, quella che non puoi accettare?
Non c’é cena o pranzo o soddisfazione del mondo,
che valga una camminata senza fine per le strade povere
dove bisogna essere disgraziati e forti, fratelli dei cani.

In Trasumanar e organizzar (1971)

"Erlkönig" de Johann Wolfgang von Goethe

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Tradução: J. Carlos Teixeira

Rei dos Elfos

Quem cavalga tão tarde, pela noite e ao vento?
É o pai com o seu filho;
Ele segura a criança nos braços,
Ele agarra-a firmemente, ele mantém-na quente.

“Meu filho, o que esconde o teu rosto amedrontado?” –
“Não vês, pai, o Rei dos Elfos?
O Rei dos Elfos, com coroa e cauda?” –
“Meu filho, é só uma linha de névoa.” –

“Tu, bela criança, anda, vem comigo!
Belos jogos jogarei contigo,
Flores coloridas na praia,
A minha mãe com roupas douradas!” –

“Meu pai, meu pai, e não ouves,
As promessas que Rei dos Elfos me sussurra?” –
“Fica calmo, acalma-te, meu filho;
Entre as folhas secas sibila o vento” –  

“Queres, belo menino, vir comigo?
As minhas filhas cuidarão bem de ti;
As minhas filhas conduzem a dança da roda noturna,
E embalam-te, e dançam e cantam para adormeceres.” –

“Meu pai, meu pai, e não vês ali
As filhas do Rei dos Elfos naquele lugar sombrio?” –
“Meu filho, meu filho, eu vejo bem:
Os velhos salgueiros parecem tão cinza.” – 

“Amo-te, a tua bela forma encanta-me;
E se negares, usarei a força.” –
“Meu pai, meu pai, agora ele agarra-me!
O Rei dos Elfos feriu-me.” – 

O pai aterroriza-se, cavalga velozmente,
Segura nos braços a criança em dores,
Chega à corte a muito custo e em derrota;
Nos seus braços, a criança estava morta.

in Die Fischerin (1782)


Erlkönig

Wer reitet so spät durch Nacht und Wind?
Es ist der Vater mit seinem Kind;
Er hält den Knaben wohl in dem Arm,
Er hält ihn sicher, er hält ihn warm.

“Mein Sohn, was birgst du so scheu dein Gesicht?” –
“Siehst, Vater, du den Erlkönig nicht?
Den Erlenkönig mit Kron' und Schweif?” –
“Mein Sohn, es ist ein Nebelstreif.” –

“Du liebes Kind, komm, geh'mit mir!
Gar schöne Spiele spiel'ich mit dir,
Viel bunte Blumen sind an dem Strand,
Mein'Mutter hat manch güldnes Gewand.” –

“Mein Vater, mein Vater, und hörest du nicht,
Was Erlenkönig mir heimlich verspricht?” –
“Sei ruhig, bleibe ruhig, mein Kind,
In dürren Blättern säuselt der Wind.” –

“Willst, feiner Knabe, du mit mir gehn?
Meine Töchter sollen dich warten schön;
Meine Töchter führen den nächtlichen Reihn,
Und wiegen und tanzen und singen dich ein.” –

“Mein Vater, mein Vater, und siehst du nicht dort
Erlkönigs Töchter am düsteren Ort?” –
“Mein Sohn, mein Sohn, ich seh es genau,
Es scheinen die alten Weiden so grau.” –

“Ich liebe dich, mich reizt deine schöne Gestalt,
Und bist du nicht willig, so brauch ich Gewalt.” –
“Mein Vater, mein Vater, jetzt fasst er mich an,
Erlkönig hat mir ein Leids getan!” –

Dem Vater grauset's, er reitet geschwind,
Er hält im Arme das ächzende Kind,
Erreicht den Hof mit Müh' und Not,
In seinen Armen das Kind war tot!

in Die Fischerin (1782)

Charles Bukowski, "ar e luz e tempo e espaço"

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Tradução: João Coles


“ - sabes, das duas uma, ou tinha uma família, ou um emprego, alguma coisa
esteve sempre no meu caminho
mas agora
vendi a casa, encontrei um lugar, um estúdio enorme, devias ver o espaço e
a luz.
pela primeira vez na minha vida vou ter um lugar e tempo para
criar.”

não, fofo, se vais criar
vais criar trabalhando
16h por dia numa mina de carvão
ou
vais criar num quarto minúsculo com 3 crianças
enquanto sobrevives da
segurança social,
vais criar com parte da tua mente e do teu
corpo estourados,
vais criar cego
deficiente
demente
vais criar com um gato a subir-te pelas
costas enquanto
toda a cidade treme de um terremoto, de um bombardeamento,
de uma inundação e de um incêndio.

fofo, ar e luz e tempo e espaço
não têm nada que ver com isso
e não cries nada
excepto, talvez, uma vida duradoura para encontrares
ainda mais
desculpas.

in The Last Night of the Earth Poems

 


air and light and time and space 

“ - you know, I've either had a family, a job, something
has always been in the way
but now
I've sold my house, I've found this place, a large studio, you should see the space and
the light.
for the first time in my life I'm going to have a place and the time to
create.'

no baby, if you're going to create
you're going to create whether you work
16 hours a day in a coal mine
or
you're going to create in a small room with 3 children
while you're on
welfare,
you're going to create with part of your mind and your
body blown
away,
you're going to create blind
crippled
demented,
you're going to create with a cat crawling up your
back while
the whole city trembles in earthquakes, bombardment,
flood and fire.

baby, air and light and time and space
have nothing to do with it
and don't create anything
except, maybe, a longer life to find
new excuses
for.

in The Last Night of the Earth Poems

Raymond Carver, "Vocês não sabem o que é o amor (uma noite com Charles Bukowski)"

Tradução: João Coles

Vocês não sabem o que é o amor disse Bukowski
Tenho 51 anos e olhem para mim
estou apaixonado por uma miúda
Fiquei apanhado mas ela também ficou agarrada
portanto tudo bem e é assim que deve ser
Entro-lhes no sangue e elas já não conseguem livrar-se de mim
Elas tentam de tudo para dar à sola
mas voltam sempre ao fim e ao cabo
Todas elas voltam excepto
aquela que desanquei
Chorei por ela
mas tinha a lágrima fácil nessa altura
Não me dêem bebida da pesada
Fico intragável
Podia estar aqui sentado convosco e a beber cerveja toda a noite
seus hippies
Podia beber dez litros desta cerveja
e nada é como se fosse água
Mas se me derem bebida da pesada
começo a deitar pessoas pela janela fora
Atiro qualquer pessoa da janela
já fiz isso
Mas vocês não sabem o que é o amor
Vocês não sabem porque nunca
estiveram apaixonados é simples
Tenho esta miúda estão a ver ela é belíssima
Ela chama-me Bukowski
Bukowski diz ela com uma vozinha
e eu digo O que foi
Mas vocês não sabem o que é o amor
Estou a dizer-vos o que é
mas vocês não me estão a ouvir
Não há aqui ninguém
que reconhecesse o amor se ele irrompesse na sala
e vos rebentasse o cu
Antes costumava pensar que as leituras de poesia eram uma derrota
Oiçam tenho 51 anos conheço a vida
eu sei que são uma derrota
mas disse para mim mesmo Bukowski
morrer à fome é uma derrota ainda maior
Portanto aqui estamos nós e nada é como devia ser
Aquele fulano como é que ele se chama Galway Kinnell
vi a foto dele numa revista
Tem uma bonita fronha
mas é professor
Santo Deus conseguem imaginar
Mas vocês também são professores
e já aqui estou eu a insultar-vos
Não nunca ouvi falar deste
nem daquele
Todos eles são térmitas
Talvez seja do ego já não leio muito
mas esta gente que constrói
reputações em cinco ou seis livros
térmitas
Bukowski diz ela
Porque é que ouves música clássica o dia todo
Vocês não conseguem ouvi-la dizer isso
Bukowski porque é que ouves música clássica o dia todo
Isso surpreende-vos não é
Jamais diriam que um sacana dum desgraçado como eu
pudesse ouvir música clássica o dia todo
Brahms Rachmaninoff Bartok Telemann
Porra eu não conseguiria escrever aqui
Demasiado silêncio demasiadas árvores
Eu gosto da cidade é esse o meu lugar
Ponho música clássica a tocar a cada manhã
e sento-me à frente da minha máquina de escrever
acendo um charuto e fumo-o estão a ver
e digo Bukowski és um homem de sorte
Bukowski passaste por tudo
és um homem de sorte
e o fumo azul paira sobre a mesa
e olho da janela para a Delongpre Avenue
e vejo as pessoas a andar calçada a cima e calçada a baixo
e puxo o charuto assim
e depois pouso o charuto no cinzeiro assim
e respiro fundo
e começo a escrever
Bukowski isto é que é vida digo
é bom ser pobre é bom ter hemorróidas
é bom estar apaixonado
Mas vocês não sabem o que é
Vocês não sabem o que é estar apaixonado
Se a vissem compreenderiam o que quero dizer
Ela pensava que eu vinha aqui para o engate
Ela tinha a certeza
Ela disse-me que tinha a certeza
Foda-se tenho 51 anos e ela 25
e estamos apaixonados e ela tem ciúmes
é lindo meu Deus
ela disse-me que me arrancaria os olhos se eu viesse aqui para o engate
Isto sim é amor
E o que é que vocês sabem disso
Deixem-me que vos diga uma coisa
conheci homens na prisão com mais estilo
do que pessoas que vão às universidades
e a leituras de poesia
São sanguessugas que vêm ver se
as meias do poeta estão sujas
ou se cheira mal dos sovacos
Não os vou desapontar
Mas quero que se lembrem do seguinte
só há um poeta nesta sala hoje à noite
só um poeta nesta cidade hoje à noite
talvez só haja um verdadeiro poeta neste país hoje à noite
e esse poeta sou eu
O que é que vocês sabem da vida
O que é que vocês sabem de alguma coisa
Qual de entre vocês já foi despedido
ou já bateu na namorada
ou já levou da namorada
Fui despedido da Sears Roebuck cinco vezes
Despediam-me e depois contratavam-me de novo
Trabalhei para eles como repositor quando tinha 35 anos
e depois fui demitido por roubar bolachas
Eu sei como é já lá estive
Tenho 51 anos e agora estou apaixonado
Esta miúda diz assim
Bukowski
e eu digo O que foi e ela diz
És um grande merdas
e eu digo querida tu compreendes-me
Ela é a única pessoa no mundo
homem ou mulher
de quem admito isso
Mas vocês não sabem o que é o amor
Todas elas voltam para mim ao fim e ao cabo
todas elas voltaram
salvo a tal de quem vos falei
a que desanquei
Estivemos juntos durante sete anos
Bebíamos muito
Vejo alguns dactilógrafos nesta sala mas
não vejo nenhum poeta
Não me surpreende
É preciso ter estado apaixonado para escrever poesia
e vocês não sabem o que é estar apaixonado
é esse o vosso problema
Dá-me um bocado disso aí
Isso mesmo sem gelo
Está bom está óptimo
Vamos lá começar com isto então
Eu sei o que disse mas só tomo um
Sabe mesmo bem
Ok ora vamos lá acabar com isto
e que ninguém fique à beira
de uma janela aberta

in Beauty Will Save the World
(1972)


You don't know what love is (an evening with Charles Bukowski)

You don't know what love is Bukowski said
I'm 51 years old look at me
I'm in love with this young broad
I got it bad but she's hung up too
so it's all right man that's the way it should be
I get in their blood and they can't get me out
They try everything to get away from me
but they all come back in the end
They all came back to me except
the one I planted
I cried over that one
but I cried easy in those days
Don't let me get onto the hard stuff man
I get mean then
I could sit here and drink beer
with you hippies all night
I could drink ten quarts of this beer
and nothing it's like water
But let me get onto the hard stuff
and I'll start throwing people out windows
I'll throw anybody out the window
I've done it
But you don't know what love is
You don't know because you've never
been in love it's that simple
I got this young broad see she's beautiful
She calls me Bukowski
Bukowski she says in this little voice
and I say What
But you don't know what love is
I'm telling you what it is
but you aren't listening
There isn't one of you in this room
would recognize love if it stepped up
and buggered you in the ass
I used to think poetry readings were a copout
Look I'm 51 years old and I've been around
I know they're a copout
but I said to myself Bukowski
starving is even more of a copout
So there you are and nothing is like it should be
That fellow what's his name Galway Kinnell
I saw his picture in a magazine
He has a handsome mug on him
but he's a teacher
Christ can you imagine
But then you're teachers too
here I am insulting you already
No I haven't heard of him
or him either
They're all termites
Maybe it's ego I don't read much anymore
but these people who build
reputations on five or six books
termites
Bukowski she says
Why do you listen to classical music all day
Can't you hear her saying that
Bukowski why do you listen to classical music all day
That surprises you doesn't it
You wouldn't think a crude bastard like me
could listen to classical music all day
Brahms Rachmaninoff Bartok Telemann
Shit I couldn't write up here
Too quiet up here too many trees
I like the city that's the place for me
I put on my classical music each morning
and sit down in front of my typewriter
I light a cigar and I smoke it like this see
and I say Bukowski you're a lucky man
Bukowski you've gone through it all
and you're a lucky man
and the blue smoke drifts across the table
and I look out the window onto Delongpre Avenue
and I see people walking up and down the sidewalk
and I puff on the cigar like this
and then I lay the cigar in the ashtray like this and take a deep breath
and I begin to write
Bukowski this is the life I say
it's good to be poor it's good to have hemorrhoids
it's good to be in love
But you don't know what it's like
You don't know what it's like to be in love
If you could see her you'd know what I mean
She thought I'd come up here and get laid
She just knew it
She told me she knew it
Shit I'm 51 years old and she's 25
and we're in love and she's jealous
Jesus it's beautiful
she said she'd claw my eyes out if I came up here
and got laid
Now that's love for you
What do any of you know about it
Let me tell you something
I've met men in jail who had more style
than the people who hang around colleges
and go to poetry readings
They're bloodsuckers who come to see
if the poet's socks are dirty
or if he smells under the arms
Believe me I won't disappoint em
But I want you to remember this
there's only one poet in this room tonight
only one poet in this town tonight
maybe only one real poet in this country tonight
and that's me
What do any of you know about life
What do any of you know about anything
Which of you here has been fired from a job
or else has beaten up your broad
or else has been beaten up by your broad
I was fired from Sears and Roebuck five times
They'd fire me then hire me back again
I was a stockboy for them when I was 35
and then got canned for stealing cookies
I know what's it like I've been there
I'm 51 years old now and I'm in love
This little broad she says
Bukowski
and I say What and she says
I think you're full of shit
and I say baby you understand me
She's the only broad in the world
man or woman
I'd take that from
But you don't know what love is
They all came back to me in the end too
every one of em came back
except that one I told you about
the one I planted We were together seven years
We used to drink a lot
I see a couple of typers in this room but
I don't see any poets
I'm not surprised
You have to have been in love to write poetry
and you don't know what it is to be in love
that's your trouble
Give me some of that stuff
That's right no ice good
That's good that's just fine
So let's get this show on the road
I know what I said but I'll have just one
That tastes good
Okay then let's go let's get this over with
only afterwards don't anyone stand close
to an open window