Antologia Dialogante de Poesia Portuguesa Escolha e apresentação de Rosa Maria Martelo Porto: Assírio & Alvim, 2020.

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E talvez assim se tenha tornado esse rio subterrâneo que corre na literatura portuguesa, com a sua aluvião de melancolia e música. Podem tentar abafá-lo com acordos ortográficos, políticas educativas, poemas de festival ou de carreira, mas felizmente é muito difícil calar um rio. E o marulhar do seu caudal continua a pressentir-se noutros tempos, noutras vozes.

Inês Dias.

 

“Na poesia, / natureza variável / das palavras, / nada se perde / ou cria, / tudo se transforma: / cada poema, / no seu perfil / incerto / e caligráfico, / já sonha /outra forma.” (OLIVEIRA, 2011, p. 27): O poema “Lavoisier” de Carlos de Oliveira, poeta particularmente querido a Rosa Maria Martelo, poderia ser também um ponto de partida para esta antologia poética. Antologia Dialogante da poesia portuguesa reúne 102 poemas de 44 poetas cujos textos são ordenados numa sequência cronológica que convoca nove séculos de escrita, de Martin Codax a Golgona Anghel, esta antologia mostra-nos um diálogo vivo, ininterrupto e plural: “Podemos pensar a história da poesia, da arte, como um extenso diálogo? Podemos entender a experiência da leitura como um vínculo intersubjectivo, uma forma mediada de amizade? E poderemos entender a escrita como uma prática imergente deste tipo de leitura?” (2020, p. 10) A pergunta de Rosa Maria Martelo encontra também um eco e vibração próximos em algo que a poeta Inês Dias afirma na antologia Refracções Camonianas em poetas do século XXI[1]: “Ninguém existe sozinho, nem escreve sozinho. Existimos e escrevemos com outros vivos, mas também com outros mortos, pois mortos e vivos constituem o mesmo pó, uns e outros, como nos lembra Padre António Vieira num dos seus sermões. É uma corrente de luz, esta, passada de mão em mão – e, se os ossos se tornarão impreterivelmente cinza, o fogo permanecerá”. É uma questão de atenção ativa a esse fogo impessoal que a Antologia Dialogante de Poesia Portuguesa celebra enquanto contacto e assonância de diferentes vozes. Enquanto criação do texto através da releitura, da reescrita, da homenagem e da correção. Fazem por isso todo o sentido as palavras de Manuel António Pina que Rosa Maria Martelo recolhe na sua apresentação: “Isto está cheio de gente / falando ao mesmo tempo / e alguma coisa está fora disto falando disto / e tudo é sabido em algum lugar”. (2020, p. 8) Contra o fundo do diálogo, da gente falando ao mesmo tempo, contra o fundo do ruído, interessa reter um fio de diálogo vivo, uma corrente de luz, uma incorporação que nos faz crescer conjuntamente e concretamente (algo que não se apaga). Só esse diálogo fica naquilo que tem de impessoal e coletivo. Outra vez em contacto com Carlos de Oliveira um poema não para de nascer e de se transformar, e nisso a voz torna-se plural e só podemos falar verdadeiramente também com a voz dos que nos antecederam. A atenção a esse diálogo vivo faz de Antologia Dialogante de Poesia Portuguesa um texto central para aprofundar as relações intertextuais da poesia portuguesa  e para perceber o seu contacto com a tradição, diálogo que se faz de rupturas e  de continuidades, cada texto como uma homenagem hipertextual a outros textos sem os quais não poderia existir, uma homenagem dinâmica, transformadora em que a leitura implica uma releitura e reescrita, e nisso é de vital importância o sentido de uma leitura viva que Rosa Maria Martelo privilegia: na sua origem, a palavra legere possuía a conotação de escolher (eleger), nesse sentido ler é para o conjunto dos poetas representados um processo ativo, de escolha em que leitura é acima de tudo um processo ativo e vigilante, de reescrita, em que a polaridade leitura/escrita perde os seus contornos para se manifestar como parte de um processo criador e unitário de transformação e revitalização da linguagem. Em Antologia Dialogante de Poesia Portuguesa, Rosa Maria Martelo mostra um olhar atento, empático e original a esse diálogo, feito de nuances, linhas que se cruzam, aderências, e iluminações de um contacto textual que é também um contacto físico, o sonho da palavra como parte do tecido do mundo.

Iluminar esse diálogo torna-se assim vital, o exercício proposto é por isso de uma iluminação que pede que paremos e consideremos cada um desses vínculos que se põem em evidência e os vejamos como parte de um processo dinâmico, continuo indissociável da procura de novas formas, um ato que nos faz crescer. De uma outra forma Elias Canetti nos afirmaria que “o poeta é o guardador de uma metamorfose” (CANETTI, 1979, p. 241). Mostrar como o poema sonha já com outra forma, também ela física, é parte inerente da natureza deste livro, que nos mostra a importância de ler como um processo de escolha, uma forma múltipla geradora de empatia e uniões, cabe-nos pensar nesse fio, segurar um pouco nele, e lê-lo devagar é uma forma de homenagem e por isso uma forma de bendição.

 

Referências Bibliográficas:

 

CANETTI, Elias. The conscience of words. New York: The Seabury Press, 1979.

MARTELO, Rosa Maria. Antologia Dialogante de Poesia Portuguesa. Porto: Assírio & Alvim, Documenta, 2020.

OLIVEIRA, Carlos de. Trabalho Poético. Porto: Assírio & Alvim, 2011.

DIAS, Inês. em Refracções camonianas em poetas do século XXI. Coimbra: Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2021. [Em fase de publicação].


[1] Texto em fase de publicação, organizado pelo Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos da Universidade de Coimbra.