O inferno (não) são os outros

René Descartes foi um revolucionário, retirou a Deus (isto é, ao ecossistema religioso que dominada os costumes, a política e a ciência) o critério da verdade e colocou-a no ser humano (não foi assim tão linear, e Deus, mas um Deus de razão mais do que de paixão, continuou a desempenhar um papel importante na inteligibilidade do mundo). Com ele, o ponto de partida de toda a verdade possível passou a ser, como sabemos, o cogito. O ego cogito, centro da subjetividade transcendental, transformou-se, nas palavras de Edmund Husserl, no «terreno último e apoditicamente certo de juízos, no qual toda e qualquer filosofia radical deve ser fundamentada».[1] E o juízo apodítico fundador remetia para a identidade do sujeito, o célebre cogito ergo sum, se penso existo enquanto este ser pensante, que pode, é verdade, assemelhar-se a outros seres pensantes, mas a primeira evidência é a deste eu pensante, identidade autogerada e autocertificada.

Não será Immanuel Kant a revogar radicalmente a centralidade do ego, embora o configure em três faculdades (prática — moral —, estética e pura — entendimento), que estão aquém e além do sujeito histórico e, num certo sentido, novidade relativamente a Descartes, da própria humanidade (somente uma espécie racional entre outras possíveis). Temos de esperar por Georg Wilhelm Friedrich Hegel (parcialmente contemporâneo de Kant) para que a verdade (agora mais dependente da racionalidade história do que da do indivíduo) e a identidade se definam a partir de novas condições de possibilidade.

Interessa-me aqui falar sobretudo da identidade, é a partir dela que veremos se o inferno são, ou não, os outros. E com Hegel abre-se, de facto, a possibilidade de o inferno estar noutrem. É bastante conhecida a dialética do «senhor e do escravo» (ou «servo»), ela resume todo um pensamento que explicitamente, e talvez pela primeira vez, coloca outrem na construção da subjetividade. A consciência deixa de ser a consciência de si, como no cogito cartesiano, ela só é autoevidente pelo reconhecimento de outrem, só ele me permite reconhecer-me. Como senhor ou como escravo, embora este processo de subjetivação seja um pouco mais complexo do que isto, porque uma certa liberdade, dentro do fatalismo histórico, mantém aberta a possibilidade de recusar ou modificar a forma como me reconhecem.

Seja como for, esta inter-relação eu-outrem como centro do processo de subjetivação foi uma das ideias mais férteis da modernidade. A sociologia, a psicologia, a psicanálise, a filosofia, a antropologia… não seriam, em grande parte, as mesmas sem ela. Na filosofia temos, por exemplo, Michel Foucault (pouco hegeliano, diga-se), a pensar o poder como relações de poder, a ação que uns têm sobre as ações dos outros. Mais do que os modelos jurídicos ou institucionais do poder, sempre dominados pela ideia de Estado, Foucault mostra (sobretudo em ensaios curtos ou entrevistas das décadas de 1970 e 1980, muito menos em Vigiar e Punir ou no curso do Collège de France sobre biopolítica) como o poder emerge, numa ontologia da aparição e desaparição, das relações eu-outrem. E se é verdade que há, e deve haver, instituições, elas são mais o resultado das micro-relações de poder do que a sua causa. Noutros termos, as instituições adequam-se às relações de poder que estabelecemos diariamente uns com os outros. É por isso que a democracia, diz ele, não pode emergir em qualquer lado, nem a democracia nem o fascismo.[2] Nessas relações, para que o múltiplo prevaleça sobre o uno, haverá sempre liberdade e resistência (sem isto serão relações de domínio), sendo, pois, mais agonísticas do que antagónicas.

No seguimento da dialética hegeliana (sem vos poder assegurar que as influências são diretas), Michel Tournier, em Vendredi ou les Limbes du Pacifique[3], mostra-nos como sem alteridade não se pode afirmar a identidade (Crusoe não era antes de aparecer Sexta-Feira). Mas talvez tenha sido Jean-Paul Sartre um dos melhores continuadores de Hegel. Para este filósofo francês, quando somos olhados por outrem, ficamos, aparentemente, sem defesas relativamente a «uma liberdade que não é a [nossa] liberdade. É neste sentido que podemos considerar-nos como “escravos”, na medida em que aparecemos a outrem»[4]. Isto leva Sartre a assegurar que a existência do outro coloca, de facto, um limite à minha liberdade. Dirá em Huis Clos (1943/44): «O inferno são os outros». Mas isso não anula a liberdade, podemos escolher como viver o «inferno», mesmo se «o pecado originário é o meu surgimento num mundo onde há o outro»[5].

Uns dias atrás, numa crónica de Michel Eltchaninoff para o Le Magazine Littéraire, encontrei um magnífico prolongamento da discussão sobre se o inferno são, ou não, os outros. Numa carta da década de 1930, Maurice Merleau-Ponty, autor da Fenomenologia da Percepção e amigo de Sartre, dá uma lição de engate (termo da época, cá e lá) a este último. Escreve o seguinte, no seguimento de um avanço erótico mal sucedido de Sartre em direção a uma tal de «C» : «Não és nenhum Apolo, tu próprio o dizes, mas és cativante, enérgico e engraçado (mesmo quando imitas o pato Donald). Podias conquistá-los a todos. Já agora, sabes que a Castora [Simone de Beauvoir] te preferiu a mim — parece que me achou demasiado simpático. Mas a tua filosofia de sedução está errada. Estás obcecado com o olhar e a posse do outro, o que sabes ser impossível. Colocas-te num confronto agonístico: gostas dela, cabe-te a ti conquistá-la. Ou o contrário. Acredita, ela compreende-o perfeitamente. Ou cede, mas ficará sempre ressentida com a tua vitória, ou... foge.»

O que fazer então, para que ela não fuja? Resumo: anula-se o sujeito (seria Sartre capaz de tal?) e desenha-se um mundo no qual outrem, neste caso a «C», queira viver, não apenas queira, mas sinta que não pode viver noutro sítio que não naquele, se desejar ser feliz. Um mundo de coisas encarnadas (a «chair» de Merleau-Ponty), embora sem qualquer privilégio para as pessoas. Parece fácil. Mas requer imaginação e, sobretudo, a mitigação do eu, modéstia em vez de bazófia. O que seria um grande desvio ao cogito ergo sum, que conduz sempre ao imperativo do eu (mais ou menos inchado, no caso de Sartre estaria no limiar da explosão), e, principalmente, a inversão direta de «O inferno são os outros». É, aliás, assim que Merleau-Ponty termina a carta: «O inferno não são os outros».

Uma carta como prolegómenos de uma nova teoria da dialética senhor/escravo.

[1] Meditações Cartesianas e Conferências de Paris, trad. Pedro Alves, Lisboa: Edições 70, p. 29.
[2] Ver «L’intellectuel et les pouvoirs», in Dits et Écrits II, 1976-1988, Paris: Gallimard/Quarto, p. 1570, 2001 [1984].
[3] Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico, trad. Fernanda Botelho, Lisboa: Relógio D’Água, 1992.
[4] O Ser e o Nada, trad. Victor Gonçalves, Lisboa: Edições 70, 2022, p. 346.
[5] Idem, p. 500.