nothing can go wrong for us, tell me

O coração parou, naquele dia o meu coração virou uma mancha preta, lodosa, morri, o táxi a escurecer na curva, não fazia sentido, tantas marteladas de nuca contra o travesseiro, sofri como um cão, o mundo, mundo nenhum depois de ti, chorei sem chorar, uma dor seca, demasiado aguda para lágrimas, verti um rio por dentro, recuperei ou tentei ou não tentei superar o teu desaparecimento, mordidelas noutras línguas e o nariz enterrado noutros decotes, não funcionou, não parava de pensar em ti, a tua boca, o teu cabelo, engolia em seco, ainda penso em ti, ainda só penso em ti, agora estás aqui, a minha mão pousada na tua, dizes que ficas, os lábios colados, dizes que não existe passado, que não existimos, que somos álbuns fotográficos, o teu rosto no meu ombro e sou o outro eu perfeito, o eu que mais ninguém conhece, belo, gracioso, Eva, és minha, a felicidade é isto, estes cinco segundos, és minha, e amanhã não sei, quem sabe, vejo carne e vermelho e pernas entrelaçadas e suor e unhas a furar a carne e a saia ao ar e nós escarranchados contra a parede, uma alegria, a baba, o ranho, tu no meu colo, a vida a fazer sentido.

Antes da iluminação, Mariano Alejandro Ribeiro

LONGEST WAY ROUND

aos solavancos
moving steadily toward my fate
se um dia deus quiser
teremos tempo para discutir
como meninos ricos, na esplanada
de um café
ao pequeno almoço
a fumar do mesmo cigarro e a ver
os pobres infelizes a passar no autocarro
e vamos pensar: “céus, graças a deus que não
somos eles”
ah ah ah ah
prima dona e mulher de saltos
um dia ainda vamos ler o ulisses
mas até lá
as palavras grandes são
tostas de queijo vegan na esplanada
e batidos de hortelã e espinafres
e na tua mala uma aversão antiga
uma versão antiga muito antiga
da crítica à razão pura ou então
da fenomenologia do espírito
ou então
do tractatus do outro
mas quem pensas que és

porque o caminho mais longo, amiga
longest way round, amiga
is the shortest way home
e até lá as flores não vão perfumar o passeio
mas sim
a cabeça dos fulanos do autocarro
não te julgues
o último dos moicanos
ainda terás de dar o teu lugar
à velhota bigoduda


DIZ BEIRUTE

Sonhávamos que éramos personagens
Num quadro de Hopper a ver
O nascer do Sol
Carregavas o teu casaco preto
Em jeito de governanta
Mas o que realmente me afligia
Era pensar
Que ser um gajo honesto acarreta
Custos
Que não sei como pagar

Se tu me falares em árabe e eu
Se eu te balbuciar qualquer coisa do meu calão argentino
Aí sim, talvez
Nos possamos entender
Comendo esparguete nesse típico antro que chamamos
Ópera para pobres
A acariciar as paredes de veludo e a cheirar
Um ao outro as roupas dos nossos pais
Amarrotadas na bagagem de
Imigrante
E agora que penso nisso
Tento esforçar-me para encontrar
Um rasto de estilo
Na retirada humilhante que foi
A invasão a Beirute
Tu ligaste-me no dia seguinte
[Há quem goste de recalcar fracassos]
Tu ligaste-me mas a tua voz era serena
Tu ligaste-me e disseste
«Leva tudo o que possas levar»
Olhei para cima
De facto, as cores do céu
Ainda estavam
Frescas

 

SWISH CANTO

Dar-se conta das moças a desfilar
Na marginal
E os miúdos no playground a jogar basquetebol
Sem t-shirt de troncos rijos e na pele
Fina
Tatuada
A serenidade da doutrina
Do budismo Chan

E ainda latinhas de cerveja e coca-cola a um canto e
Um rapazinho de chapéu a gritar
Gandharvas! Bikkus! Escorrega da Samsara
Não liguem às camones que pedalam
Ao som das correntes da bicicleta
Como espuma a bater
Nas rochas do cais
O suspiro do cansaço
Esse sim
O suspiro de me aperceber
Que assim que entrar em campo
Haverá
Atrás de mim
Equipa de fora

 

 

Os Intelectuais e o futebol

Cristiano Ronaldo, a nova aposta messiânica (tivemos de ir ao futebol depois de D. Sebastião se recursar reiteradamente a aparecer), atirou para a água o microfone de um repórter que o abordou. Este gesto de censura será desculpado ao “melhor do mundo”, porque temos mais coisas com que nos preocupar (apesar do optimismo institucional da nova retórica triunfalista) e porque não acreditamos muito na liberdade de imprensa, ou melhor, na liberdade tout court (somos espinosista sem o saber). Quanto a mim, vi naquele impulso mais uma prova do messianismo ronaldino, o enviado da Madeira mostrou-nos como podemos derrotar esse tablóide abjecto, perito em desinformação e em irradiar a ideia de que Portugal é constituído maioritariamente por assassinos e assassinados, estropiados, bêbados e tarados sexuais. Só critico Cristiano Ronaldo por uma coisa (ampla): não leu nem Immanuel Kant nem Proust, nunca hesitou entre Herbeto Helder e Fernando Pessoa, ignora todos os filmes de Tarkovsky, continua surdo à Paixão Segundo São Mateus, nunca quis comprar um Francis Bacon em vez de um Mercedes, não foi ao Louvre em vez de Ibiza ou ao Algarve.[1] É por isto que não acredito no cliché teológico do “melhor dos mundos possíveis” de Leibniz, se Deus comandasse a História, Ronaldo teria lido alguns clássicos, autores também eles perfeccionistas, e experimentaria desenhar uma tábua de categorias do futebol ou um silogismo do penálti.

Não acontecendo isto, por lapso do rígido desenvolvimento histórico com certeza, temos apenas mais um jogador de futebol que “abandonou a escola para seguir o seu sonho”. Cabe, portanto, aos cultivadores (é bem disto que se trata, cultivar) da língua e do pensamento procurar a genialidade do Messias. Antigamente, tudo era mais claro, o Estado Novo apostou numa trilogia identitária cujo vértice mais recente era o futebol (devido às transmissões em directo dos jogos da Selecção, enquanto os aparecimentos de Fátima se mantinham na era dos sinais de fumo e das peregrinações a joelho). Todos os portugueses, cultos e incultos, se compraziam em amar este desporto popular cheio de simbologia bíblica e sexual (“meter golo”, “jogador sacrificado”...). Com isto, o Estado corporativo e isolacionista (uma soberania solitária que agora se defende também à esquerda e em cada vez mais vox populi, veja-se o Brexit[2]) manteve durante décadas uma eficaz cortina de fumo que escondia um país miserável e iletrado.

O 25 de Abril denunciou esta alienação que impedia o proletariado de tomar consciência da sua condição revolucionária. No início, ainda se trocaram algumas idas ao estádio por comícios políticos, mas o jornal A Bola e os relatos de futebol (pouco televisionados nas décadas de 70 e 80) acabaram por desacelerar o desenvolvimento do materialismo dialéctico. Hoje, super-mediatizado, abafa qualquer espírito revolucionário dirigido pelos órgãos competentes do Apparatchik. Todavia, se por um lado parte da elite intelectual mantêm um desprezo inabalável no pontapé, e cabeçada, na bola, por outro há um compromisso de respeito crescente vinda de outra parte não despiciente da intelectualidade, habitando sobretudo na esquerda política (continua o debate sobre a possibilidade de haver verdadeiros intelectuais de direita).

Se abrirmos a análise ao planeta, durante muito tempo o futebol foi considerado uma espécie de peste emocional, anátema lançado por cérebros bem pensantes que só permitiam a inclusão de alguns desportos no reino do Espírito (por exemplo, o ténis, jogado de fato branco). Mas houve sempre quem resistisse a esta classificação bastante classista, Norbert Elias (1897-1990) considerava-o um espectáculo civilizado de “violência domesticada”. Se é verdade que o futebol alimenta o sexismo, o machismo, o racismo, a homofobia, o individualismo, o nacionalismo... para alguns pensadores ele parece ter um certo poder de emancipação, de criação colectiva pelo fortalecimento das ligações sociais. Talvez o primeiro intelectual de esquerda a celebrá-lo tenha sido Antonio Gramsci (1891-1937), vendo nele um “reino da lealdade humana exercida ao ar livre.” Eric Hobsbawm (1917-2012), historiador marxista, falava de uma “religião laica do proletariado”. Longe, portanto, do epíteto de “analfabetos em calções” que muitos lhe lançaram, e lançam. Opondo-se mesmo àquilo que Theodor Adorno disse em Minima Moralia: “Glorificar os infelizes pobres diabos leva a glorificar o maravilhoso sistema que faz deles o que são.”

Para noticiar uma nova tolerância dos intelectuais em relação ao futebol, o jornal francês Libération, de 16 deste mês, traz um artigo cujo título resume uma nova visão do mundo do futebol pelos adeptos do pensamento elaborado: “Desprezo intelectual, desprezo de classe: durante muito tempo o futebol foi uma paixão vergonhosa para os belos espíritos. Hoje, ela ter-se-á tornado um novo conformismo.” O artigo insiste na velha polarização, mas inclina-se, não fosse ele de esquerda, para o reconhecimento: 1) refere as críticas por ser mais uma forma de alienação; 2) mas realça a nobreza, quase revolucionária, por se tratar de um desporto que quis desviar-se das leis evolucionistas e, numa “bizarria antropológica”, centrar a sua acção no pé em vez de na mão. Além disso, citando Jean-Philippe Toussaint (Football, Minuit, 2015), “Diante de uma partida de futebol, o futuro está fundamentalmente irresoluto. É esta qualidade de suspense que faz com que, à maneira de um divertimento evocado por Pascal, o futebol nos mantenha radicalmente à distância das nossas preocupações do quotidiano, das misérias da nossa condição e da morte.” Ainda no campo da quase sagração, agora com Robert Maggiori (jornalista filosófico no Libération e adepto da Juventus): “Todos os desportos reproduzem mais ou menos os quatro pólos da actividade humana: o jogo, a guerra, a arte e o trabalho. Mas o futebol é o único que os sublima a todos.”

E é por isto que não tendo uma força revolucionária, o futebol, no ganho inelutável de reconhecimento social que parece adquirir, se tornou um verdadeiro novo conformismo cheio de intensidade emocional.

[1] Em boa verdade, um futebolista que lesse Kant ou Proust, que tivesse uma cultura alargada e refinada, não podia ser futebolista, ter-lhe-ia faltado tempo de treino para apreender e incorporar (tornar corpo) fintas e remates, corridas e paragens, saltos e quedas. Parece, pois, inevitável, que um jogador de futebol tenha de ser culturalmente (“alta cultura”) limitado.

[2] O belo projecto de um continente unido, solidário e pacífico ficou mais frágil depois deste divórcio.

Paris – Retour a magenta

À memória de Noel Jesus Leopoldo

Quando N. lhe contou o que o levava ali, a directora da agência de modelos não queria acreditar no que estava a ouvir. N. queria alugar uma modelo com determinadas características para fazer um serviço no hospital. Teria de acompanhar um homem com a vida a prazo, o seu pai, nos seus últimos momentos de vida. A modelo teria de se manter ao lado do doente, que queria morrer com a visão de um rosto feminino que tivesse determinadas características, e quando a droga letal fosse administrada, bastava que se erguesse, o olhasse nos olhos, e sorrisse da forma mais natural possível.

A mulher procurou fazê-lo compreender as dificuldades inerentes àquele trabalho, pois se por um lado as características físicas eram muito restrictivas, por outro, nem todas as pessoas que se enquadrassem naquele perfil teriam o sangue-frio necessário para lidar com uma situação tão melindrosa.

R. ficou a olhar para o homem enquanto este virava costas para ir embora. Depois de um minuto de estupefacção, começou a fazer telefonemas. O primeiro foi para a secretária, a quem pediu o catálogo geral com o portefólio de todas as modelos da empresa. O segundo foi para um psicólogo seu amigo. Não podia mandar uma rapariga qualquer. A circunstância não admitia qualquer falha. Iria colocar todo o seu empenho na prossecução daquela tarefa tão pouco usual.

Na véspera do dia aprazado, N. recebeu um telefonema da agência. Era da própria directora.

Já temos a modelo.

-   Sabia que conseguiria. Mande as fotos, por favor…só o rosto.

A mulher entrou acompanhada de uma enfermeira e apertou a mão aos poucos familiares presentes. Tinha a bata hospitalar vestida, mas irradiava uma beleza carismática. N. apreciou o trabalho da directora. Levou a modelo pela mão e sentou-a junto do pai, que parecia estar a dormir, alheio àquela cena quase teatral em que ele era o protagonista. Depois de muita hesitação, acordou o pai e comunicou-lhe que tudo estava preparado. Olhou o médico, que confirmou com um ligeiro movimento da cabeça, e verificou que a modelo tinha os olhos pregados no chão, como se os resguardasse do sol, aguardando o momento em que a máquina fotográfica disparasse. N. aproximou-se do dispositivo de som e começaram a ouvir-se aplausos na gravação. Era o disco “Amália ao vivo no Olympia”. N. não deixou de pensar no contra-senso daquelas palmas, tendo em conta o contexto, mas percebeu a escolha do pai, pois este havia visto a artista no Olympia na década de 60, no ano daquela gravação. Ele próprio poderá ter contribuído para o aplauso.

A modelo manteve-se quieta e de rosto no chão, como quem se concentra para ouvir um poema. A gravação continuou. N. combinara com o pai que o momento certo seria quando este erguesse o braço. O filho saltou para as faixas pedidas pelo pai e quando se ouviu a artista cantar

Cantando dou brado
E nada me dói
 Se é pois um pecado
Ter amor ao fado
Que Deus me perdoe

um braço tão decidido quanto possível ergueu-se da cama. Sem que houvesse necessidade de alertar a modelo, esta levantou-se com firmeza e aproximou o rosto do homem, mais do que N. acharia possível. O pai abriu os olhos e viu um rosto que parecia ter sido esculpido naquele momento, e uns olhos castanhos e raros, brilhantes e escuros como os de uma sevilhana. As pestanas pareciam um pequeno leque que abria e fechava, acompanhando o ritmo cardíaco. Os olhos quentes e negros arrastavam-no para outro tempo. Deixou-se levar pelo Boulevard Magenta. Michelle. Levado pela mão entre risos e beijos. Um corpo cosido ao seu sob a intermitência de um néon. Um beijo com sabor a Paris. Paris condensada nuns lábios com sabor a Sena. Os traços do rosto não podiam ser igualados por um mestre. O cabelo era escuro, liso e comprido e podia sentir-se o aroma do mel e de frutos exóticos. O homem fixou-se no rosto. Quis erguer o braço mas não conseguiu. Percorreu-lhe os contornos sinuosos com o olhar. O cabelo era igual. Michelle. A pele era imaculada e tinha a textura da seda. A modelo aproximou-se mais dele e deu-lhe a mão. N. ficou siderado. O homem reabriu os olhos e viu aquele rosto belo junto da sua cara. Sentiu o perfume insinuante e uma voz que ecoava cada vez mais longe. Olhou-a no fundo dos olhos quentes e negros. Michelle estava ali com ele, de regresso a Magenta. Paris cabia toda naquele olhar.

A modelo sorriu com doçura e amor, beijando-lhe os lábios com a leveza de uma borboleta. Ele fechou os olhos e não voltou a abri-los.

As Aventuras do Senhor Lourenço (§23 entre Deus e Marx)

(cont.)

Tudo se precipitou, como acontece num ribeiro seco depois de uma forte chuvada. Uma torrente superficial de críticas e desdém chocava constantemente com Lourenço, arrastando-o contra esquinas afiadas. Impossível de parar: “esperem”, “vamos pensar”, “analisem melhor”, “vejam as contradições da notícia”..., dizia Lourenço, mas a loucura geral queria, por tudo e por nada, despedaçá-lo. Um Zé Ninguém tinha subido ao estrelato e agora caía. Bem feito! Justiça ícara ou bode expiatório redentor.

Antes vivia na solidão do anonimato, do “ninguém quer saber”, depois chegou ao estrelato admirativo, agora era apontado por todos os dedos, com e sem unhas de gel, alguns amarelos do cigarro, envelhecidos quase todos (os alunos vivem num magnífico “who cares?” em relação aos adultos), com aquelas rugas de pele cansada e veias salientes, quase a explodir, de um azul mal camuflado. Ainda falava um pouco comigo e com o Joaquim, mas este iconoclasta militante tinha-se subitamente interessado por coisas vagamente holísticas, juntando-se a uma colega viúva, rija, que dava Religião e Moral. Isaltina, era esse o seu nome, quase fora freira, mas um pedreiro que fazia arranjos no convento desvirginou-a, meio à força meio consentido, perto do altar de Nossa Senhora, e ela esteve tão perto de reproduzir o êxtase de Santa Teresa de Ávila que forçou o macho a assumir para o resto dos dias a responsabilidade de dormir com ela. Começou então a sua vida secular de professora e mulher casada, embora sempre com “um pé perto de Deus”, como costumava dizer.

Na época, eu percorria territórios políticos ligados à extrema esquerda, gerindo bolchevicamente uma cozinha comunitária. Todos as manhãs havia uma reunião geral, demorada, para se votar a ementa do dia seguinte, e os impasses e dissensos eram mais do que muitos, às vezes quase se chegava a “vias de facto” entre vegans e vegetarianos ou marxistas geométricos e maoístas moralistas. Na verdade, quase todos tinham uma roda dos alimentos moderada, mas não prescindiam da tenacidade revolucionária, tudo era razão para competirem sobre quem era mais democrata participativo. Quem me conhecia tinha dificuldades em compreender aquele novo estilo de vida, o próprio Lourenço, normalmente incapaz de julgar os outros, esboçava uma admiração crítica e justificava a minha guinada cívica com a crise dos 40 ou um rabo de saia particularmente apetitoso. Mas, como muitos outros, só tinha ido à procura de uma veracidade que me protegesse da dispersão pós-moderna sufocante. Se quiserem, transformei-me provisoriamente num fundamentalista.

– Mas o que é que se passa contigo? – Perguntou-me, logo na manhã de segunda-feira, Lourenço.

– Não se passa nada, o Joaquim é que anda metido em sarilhos.

– Tu estás pior, agora acreditas na verdade política?

– Não é bem isso, retorqui, e tu fazias melhor em preocupar-te com essa de “traidor cobarde”.

– Nunca te disse que era herói, que tinha feito aquilo deliberadamente, sempre fui modesto, não te armes em inquisidor de esgoto.

– Certo, Lourenço, certo, mas podias ter sido mais assertivo a desmentir a liberdade do teu mergulho sobre o badameco do bombista.

– Discutimos isso muitas vezes, pensei que concordávamos numa concatenação de acasos que me fizeram agir sem eu querer.

– Tens razão, desculpa-me, tenho andado tão ocupado, sempre a discutir e votar, e vou ter um Skype daqui a pouco, antecipo os gritos do costume sobre a ementa de amanhã.

– Mas por que razão não largas isso, estás armado em mártir?

– Não, Lourenço, não meu amigo, tu procuras a harmonia indolente no dolce far niente, ou dolce essere niente, eu estou fascinado pela Verdade, quero encontrar uma fórmula que dê sentido a tudo o que faço e penso. Quero sentido, estou farto de absurdos, como a tua história, por exemplo, tu és um absurdo, tudo o que te aconteceu é um absurdo. Virei-me para o neo-marxismo porque ele é uma espécie de religião do texto, semelhante em muitos aspectos às restantes três. Não se pode pôr em causa a Verdade (revelação analítica) de O Capital, e mesmo o Manifesto, com o seu estilo panfletário, está ancorado na Verdade. Pode parecer-te uma regressão dogmática, Lourenço, mas faz-me um bem do caraças acreditar na Verdade. Se não fossem as discussões intermináveis sobre a ementa e a falta de depilação das raparigas, creio que era um homem feliz.

– Mas tu eras todo interpretação, recordo-me de que quando te encontrei citavas frequentemente o “não há factos, apenas interpretações”, de Nietzsche.

Não sabia bem o que responder. Sim, gostava imenso daquela sentença, linha de irmandade com o Joaquim, mas depois fiquei mais perto da sagração incondicional do texto, como quando o encenador e dramaturgo Jorge Silva Melo defende a inquestionabilidade do texto teatral, condição de toda a produção teatral, imperativo estético inviolável, no fundo mais uma forma de bibliomania. Peguei no Joaquim para me defender.

– Lourenço, que diferença vês entre eu procurar a verdade e o Joaquim o divino?

– Não sei se vejo diferenças, não é, aliás, essa a questão. O Joaquim anda entretido com a Isaltina, acho que lhe faz bem, até já não cheira tão mal da boca. Tu meteste-te com fundamentalistas que sonham com uma nova ordem total.

– Sim, respondi. Mas nós queremos emancipar as pessoas, não dar-lhes uma droga espiritual que as faz crer na felicidade de pacotilha.

– Ei! Foste ao baú ideológico buscar essa ideia, não?

– Goza, Lourenço, goza que deves ter muitas razões para achares que és melhor, já reparaste no buraco negro onde está enfiado?

– Sim, sei bem onde estou, mas não conjuro nada com adesões idiotas, morrerei de pé, sem me vender.

– Olha, isso também é de um baú qualquer, e de um pretensiosismo piroso.

E foi assim que quase nos chateamos. Entretanto, talvez Lourenço tivesse razão, hoje já me deixei de verdades e democracias participativas, regressei ao cepticismo e às interpretações, talvez porque tenha encontrado uma colega que faz amor comigo duas vezes por semana, sem discutir as posições, uma em casa dela outra na minha. Sempre à tarde, para não termos de dormir, e acordar, juntos. E é incrível como adoro os múltiplos orgasmos que facilmente ela consegue ter, fechando sempre os olhos e pedindo complacência a Deus, não a Marx.